R. BADINTER (1928-2024)

©Richard Dumas /VU

FERNANDO EICHENBERG / PARIS

Tive o privilégio de encontrar Robert Badinter, o homem que aboliu a pena de morte e a guilhotina na França, em três ocasiões, todas elas em seu apartamento face ao belo Jardim de Luxemburgo, em Paris. Dois desses encontros foram entrevistas. O terceiro, no entanto, ocorrido em 2019, foi bastante singular. Havia solicitado mais uma entrevista, centrada em questões de justiça internacional. Ele recusou, argumentando que não tinha nada de novo a falar, e que não queria discorrer sobre temas que pudessem provocar polêmica na França, mesmo que suas palavras fossem publicadas em um jornal brasileiro . Mas me convidou mais uma vez para vir a seu apartamento para simplesmente conversar. Às 9h de uma manhã de verão ensolarada, lá estava eu a soar sua porta. Ele me recebeu em seu gabinete, vestindo terno e gravata. Então com 91 anos, seu corpo aparentava frágil e sua voz enfraquecida, mas conversamos alegremente por mais de uma hora. Em boa parte do tempo, foi ele quem me entrevistou, indagando, estupefato, sobre a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil. Mas não deixei de fazer as perguntas que me interessavam. E também falamos de amenidades. Ao final, insisti que ele permistisse que usasse suas palavras em um texto para o jornal, mas se manteve  irredutível na recusa. Foi a última vez que o vi. Nesta sexta-feira, 9 de fevereiro, soube com tristeza de sua morte, aos 95 anos.

Aqui abaixo o texto que escrevi no meu livro de entrevistas “Entre Aspas vol. 2” (L&PM), de nosso primeiro encontro.

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“Vocês vão cortar vivo esse homem em dois?” Com a voz grave e eloqüente, o indicador apontado em seqüência para a face de cada um dos jurados, Robert Badinter procurava salvar a vida de seu cliente, Patrick Henry, 23 anos, julgado pelo seqüestro e morte de um menino de 8 anos. No derradeiro intento de poupar o réu da pena capital, naquele janeiro de 1977, o advogado de defesa acrescentou: “Chegará o dia em que a pena de morte será abolida, e então vocês dirão aos seus filhos que mataram um homem. E vocês verão seus olhares”. O discurso surtiu efeito: apesar das pressões das ruas, o acusado escapou da guilhotina e foi condenado à prisão perpétua. Anos mais tarde, em 9 de outubro de 1981, o Diário Oficial da República publicava o decreto de abolição da pena de morte na França, assinado pelo então presidente François Mitterrand. Uma vitória de seu ministro da Justiça, empossado quatro meses antes: Robert Badinter. A cruzada, finalmente, terminara.

Antes de entrar para a História como o homem que extinguiu a pena de morte no país da guilhotina, Robert Badinter sentira o amargo gosto da inepta sentença. Em junho de 1972, todo seu esforço para inocentar Roger Bontems do crime de assassinato foi infrutuoso. Depois da recusa da graça presidencial por parte de Georges Pompidou, Badinter acompanhou, na madrugada agendada, o preso desenganado no percurso até o mórbido altar. Lá, assistiu ao carrasco soltar a pesada lâmina, projetada para, num átimo, separar cabeça e tronco.

Sentado numa poltrona do gabinete de seu belo apartamento com vista privilegiada para o Jardim de Luxemburgo e a abóbada do Panteão, Badinter retorna no tempo. Com as salientes sobrancelhas em circunflexo e o olhar esfíngico sobrevoando as copas das árvores, ele revela: “Depois daquele dia, nunca mais fui o mesmo. E, sobretudo, nunca mais encarei a Justiça da mesma maneira”. Depois daquele dia, seu inimigo número um fora eleito: a pena de morte. Para combatê-la, fez uso da arma com a qual goza de perfeita intimidade: a palavra.

Nos meses seguintes à derrota que lhe foi infligida no tribunal, Badinter despejou em 230 páginas um relato solitário, cru e humano do trágico embate contra o veredicto fatal. O resultado foi o livro A Execução. Era apenas o começo. Como lhe haviam prevenido as palavras do cardeal Lustiger, arcebispo de Paris: “No futuro, quando a abolição da pena de morte impedir a execução do autor de um crime abominável, será você que, no inconsciente coletivo, tomará o lugar do assassino”. Como ministro, Badinter recebeu torrentes de cartas de ameaças de morte a sua família. Diante de sua casa, assistiu a manifestações pedindo sua demissão.

Passados os seus 70 anos, tanto suas pernas como seu pensamento conservam uma agilidade madura e uma ousadia juvenil. Badinter abandonou as quadras de tênis, uma de suas predileções, mas continua calçando esquis em montanhas íngremes e nevadas. Há alguns anos, retomou as aulas de piano abandonadas nos tempos de infância. De sua tribuna no Senado, para o qual foi eleito em 1995, ele utiliza todo seu vernáculo na defesa da justiça e dos direitos humanos.

Robert Badinter é uma das cabeças mais respeitadas na França. Não por acaso, foi o escolhido para presidir as comemorações do cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, realizadas em dezembro de 1998, em Paris. Ao aceitar o convite, impôs uma única condição: se fosse para promover a retórica, preferia ceder o lugar a outro mestre de cerimônias. Ele sabe que a hipocrisia reina, e mesmo os ditadores vociferam preceitos humanitários enquanto promovem sangrias em porões obscuros. “Há uma inflação de discursos sobre os direitos humanos. A questão foi vulgarizada, mais uma gota ao mar não teria nenhuma utilidade. Mas, nessa hipocrisia, há uma homenagem do vício à virtude”, diz.

Sua idéia não era soprar as cinqüenta velinhas de um bolo disforme, mas fazer um corajoso balanço. Desde 1948, ano da assinatura da declaração, no Palácio de Chaillot, ainda sob os escombros da Segunda Guerra Mundial, Badinter acredita que foram registrados enormes progressos no campo da defesa dos direitos humanos no mundo. Mas em relação ao ideal a ser alcançado, muito ainda há por fazer. “É como o reino de Deus sobre a Terra, é um trabalho contínuo”, observa, não sem um certo tom de ironia. Entre os aspectos positivos, ele sublinha o fim do apartheid na África do Sul, das ditaduras na América do Sul, do bloco totalitário da União Soviética, a queda do Muro de Berlim, a valorização dos instrumentos jurídicos e a tomada de consciência dos direitos da mulher.

Allegro ma non tropo: a lista do dever de casa é maior. “Os compromissos assumidos em 1948 não foram mantidos”, nota. Segundo ele, a globalização da economia constitui hoje um dos maiores desafios para os direitos humanos. “A globalização prioriza a curva dos lucros das multinacionais e não a condição dos homens. O planeta anda em duas velocidades: de um lado, o mundo dos ricos, de acesso cada vez mais difícil”. Badinter enfileira as razões da vergonha do final do século 20. Cerca de 1,3 bilhão de seres humanos sobrevivem com menos de um dólar por dia. Mais de 30 mil crianças morrem diariamente de fome ou de doença. “O problema da exclusão social é uma realidade no Brasil, mas também, em outra medida, na Europa ocidental ou nos Estados Unidos, onde 16,5% da população vive em situação de pobreza, por exemplo. Nossa preocupação hoje é o apartheid mundial”, diz.

Se em 1948 a Declaração Universal nascia como base para a reconstrução do mundo ressurgido das cinzas do nazismo e prestes à adentrar a guerra fria, décadas depois, às portas do terceiro milênio, as preocupações se espalharam por outros temas. “Os direitos humanos, hoje, são também a problemática do gênio criador do próprio homem, a manipulação genética. Igualmente, são o desenvolvimento da comunicação por meios eletrônicos, o progresso científico e tecnológico, a degradação do meio ambiente”, diz. Atento às desigualdades e ameaças da modernidade, Badinter, no entanto, não descuida de uma antiga nota desafinada no cântico dos direitos humanos: a impunidade dos crimes contra a humanidade. Uma ferida anterior àquela aberta pela execução de Roger Bontems na guilhotina. Seu pai, Simon Badinter, um judeu russo que emigrara da Bessarábia para a França, foi detido pela Gestapo na cidade de Lyon, em 1943. Seu destino seria o mesmo de tantas outras vítimas do Holocausto: as câmaras de gás de Auschwitz. Acaso da história, o carrasco alemão Klaus Barbie foi extraditado para ser julgado na França no período em que Badinter ocupava o Ministério da Justiça. No decorrer do processo, o ministro viria a descobrir que quem assinara a ordem de prisão de seu pai fora o mesmo Klaus Barbie.

Robert Badinter acredita que a literatura é capaz de ajudar cada um a percorrer o caminho de sua vida. Ele é igualmente um combatente da razão. Mas, quando faz digressões sobre a questão dos direitos humanos, costuma se apropriar de uma definição do secretário-geral da ONU, Kofi Annan: “Não é necessário explicar o que significam os direitos humanos a uma mãe asiática ou a um pai africano que tiveram seu filho ou sua filha torturados ou assassinados, violados ou enviados para um campo de concentração. Eles sabem bem melhor do que todos nós”.  Por concordar com outra afirmação do secretário-geral – “vivemos num mundo no qual um homem tem mais chances de ser julgado se assassinar uma pessoa do que se matar 100 mil” -, Robert Badinter foi um dos maiores instigadores da criação do Tribunal Penal Internacional de Haia, o primeiro desde Nuremberg, que hoje julga os crimes de guerra cometidos no conflito da ex-Iugoslávia. Segundo ele, o elemento primordial para a afirmação dos direitos humanos hoje é a formação da Corte Penal Internacional permanente, cujos princípios foram estabelecidos na Conferência de Roma.

Durante as comemorações parisienses do cinqüentenário dos Direitos Humanos, Badinter apareceu de braços dados com o Dalai-Lama; denunciou as atrocidades no Afeganistão, na Argélia, em Ruanda; criticou a China por aplicar a pena de morte em número superior ao registrado em  todo o resto do planeta, e lamentou o fato de os Estados Unidos se recusarem a assinar o pacto sobre os direitos econômicos, sociais e culturais de 1966. Nos bastidores, solicitava aos oradores convidados que fossem incisivos nos discursos, para alfinetar uma platéia às vezes oficial e burocrática.

Na época, não escondia sua satisfação com a detenção do general chileno Augusto Pinochet, em Londres. “Foi uma grande vitória!”, exclama. “Bastante simbólica, porque Pinochet, com aqueles seus óculos escuros e olhar sombrio, encarna o exemplo do ditador fascista que tortura e assassina”. Sua lógica é simples: “Os ex-chefes de Estado gozam de uma imunidade concernente ao que está inscrito no exercício de suas funções. Ora, não é função de um chefe de Estado ordenar assassinatos em massa, reservar estádios de futebol para espetáculos de torturas ou abrir campos de concentrações. A decisão da corte inglesa é um grande passo para uma jurisprudência”. A impunidade dos crimes contra a humanidade, para ele, é uma obscenidade. “A obscenidade faz parte da condição humana”, reconhece. “Mas a luta não terminou. Não há paz durável sem justiça. Não podemos permitir que criminosos contra a humanidade passem seus dias felizes graças a uma anistia qualquer. Pinochet foi apenas o início. Os demais ditadores, agora, passarão a ter um sono menos tranqüilo. A consciência pesada é a base dos direitos humanos”.

Robert Badinter é um homem preocupado com a Justiça. “Desde Napoleão, a Justiça francesa mergulhou numa cultura de reverência, para não dizer obediência, em relação ao poder político”, diz. Mas a subserviência parece ter sucumbido aos novos tempos. “Assistimos a um poder crescente dos juízes nas democracias modernas”, aponta. O problema, segundo ele, é a regra de que todo poder deve ser contraposto a um outro poder. Nesse ringue, ele coloca o poder da mídia. “A história ensina que, em face ao excesso da mídia, o único contra-poder é o da Justiça. Perante um erro ou um mau funcionamento da Justiça, é a opinião pública, portanto a imprensa, que se interpõe como primeira proteção. Mas quando justiça e jornalistas caminham de mãos dadas, nos encontramos na presença de um poder singular, ao mesmo tempo forte e irresponsável”, explica.

Rober Badinter se define como um social-democrata. “Foram os países de tendência social-democrata que conseguiram levar mais longe o respeito às liberdades”, diz. Inquieto e irrequieto, de alma curiosa e espírito inventivo, o advogado, professor e ex-ministro aprecia experiências inusuais. Não só escreveu a quatro mãos com sua mulher, a historiadora e filósofa Elisabeth Badinter, um livro sobre o Marquês de Condorcet – o filósofo Condorcet, vale lembrar, foi privilegiado com a indicação de sua obra para o índex da Santa Sé -, como também se aventurou na dramaturgia, um antigo sonho. Na peça C.3.3., encenada nos palcos de Paris, em 1995, Badinter dedicou sua pena a um texto sobre o julgamento do escritor irlandês Oscar Wilde, que amargou dois anos de trabalhos forçados na prisão por práticas homossexuais. Como ministro, aliás, ele defendeu na Assembléia Nacional, em dezembro de 1981, a supressão do delito de homossexualidade do código penal francês, uma herança da República de Vichy. “É hora de reconhecer tudo o que a França deve aos seus homossexuais”, disse na ocasião, para assombro do grupo de deputados conservadores.

Badinter crê na indivisibilidade e universalidade dos direitos humanos. Otimista por convicção, e não por ingenuidade, ele assegura: “Os direitos humanos permanecem como o horizonte moral do nosso tempo”. Na sua sala de trabalho no apartamento na rua Guynemer, imagens de Diderot e D’Alembert dividem espaço com o decreto de abolição da pena de morte, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e uma carta manuscrita de François Mitterrand. Em horas vagas, ele relembra uma frase do irreverente Oscar Wilde: “É preciso ir sempre além”. Em outras, rememora um desabafo do escritor Émile Zola, autor do célebre manifesto Eu acuso: “Um pouco de justiça sobre a Terra teria me dado prazer”. Badinter jamais poderá ser rotulado como um homem indiferente ao seu tempo. Por isso, Robert Badinter também pode citar Robert Badinter: “Não sou partidário do silêncio”.

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