Entrevista: Ben Harper

Fotos: © Fe Pinheiro / Styling: Sonia Bedere

FERNANDO EICHENBERG – O GLOBO

PARIS – Ben Harper chegou para a entrevista, agendada no bar do hotel parisiense Maison Souquet, com seu tradicional gorro cobrindo a cabeça, exibindo suas tatuagens maori nos braços, e suado, segurando uma longa prancha de skate. A garçonete se ofereceu para guardar o volumoso objeto, mas ele mesmo o ajeitou encostado à parede. “Ando de skate por três ou quatro horas, quatro vezes por semana”, contou, ao acomodar a corpulência de seus quase 1,90 metros de altura na estreita poltrona de veludo vermelho. “Não sou um pai acabado. I’m rockin’ and rollin. O ritmo de meu coração é de 39 batidas por minuto à noite. Com o skate e meu coração, let’s go”. De pronto, mostrou um aplicativo em seu celular que mensura a cadência cardíaca e a perda de calorias. “Para ficar no meu peso, preciso queimar diariamente 450 calorias. No final do dia, chego até 375 calorias apenas caminhando, então, antes de ir para a cama, corro um pouco e está feito. Veja, agora mesmo meu coração está em 70 batidas por minuto, o que é baixo para essa hora do dia. Ao despertar, o aplicativo dá uma nota para o seu dia anterior e o seu sono, se você teve uma boa performance, ganha uma coroa, e aí estou pronto para encarar a nova jornada. É louco!”, diz, rindo.

Às vésperas de completar 54 anos (no dia 28), gozando de plena saúde física e musical, o multi-instrumentista, cantor e compositor americano Ben Harper é um homem apaixonado e um pai amoroso que tem preferido viver em compasso francês, deslizando seu skate pelas ruas de Paris. Decepcionado com certos rumos tomados pelos Estados Unidos, principalmente em relação ao persistente racismo, à cultura das armas e às recentes restrições impostas ao direito ao aborto, decidiu mudar de ares. Há pouco, comprou um apartamento na capital francesa, nos arredores do bairro Pigalle. Por enquanto, alterna períodos entre sua morada parisiense e a casa em Los Angeles, na Califórnia, mas a ideia, depois que obter um visto permanente, é se mudar para a França. “Os Estados Unidos não são meu lugar favorito. Não sinto falta da vida de lá. Loucura, não? Por vezes, é tudo como um programa de tevê de reality show gigante. Há o bom e o ruim por toda a parte. Não estou buscando o país Utopia, somente um lugar que ressoe profundamente em mim. Vim para Paris pela primeira vez em 1988, com 18 anos, 200 dólares, um passe de trem e um violão, e me apaixonei pela cidade. Se tivesse dinheiro, teria me mudado para cá naquela época”, confessa.

A França também o acolheu musicalmente, e costuma-se dizer que Ben Harper é mais conhecido em solo francês do que em sua terra natal. O namoro debutou nos anos 1990, quando seu álbum Welcome to the cruel world (1994) vendeu mais de 300 mil exemplares no país e seus concertos esgotavam os ingressos. “É verdade”, assume. “A França é o país número um para a minha música. No Spotify, os Estados Unidos estão em primeiro lugar, depois vem o Brasil. Mas isso é um pouco enganoso, porque aqui o Deezer é muito importante, e se você o somar, a França fica no topo. Algo aconteceu aqui, não sei como. Grandes cidades sempre têm problemas de cidade grande. Mas sempre soube, no minuto em que desci do avião em Paris pela primeira vez, que um dia viveria aqui. Músico ou não, eu poderia vender frutas na rua. Minha mulher e eu sonhamos com isso há muito tempo, e ver que, hoje, se torna uma realidade, ainda é difícil de acreditar. Muitas vezes, é preciso falar muito sobre o que se deseja para que aconteça. Eu, pelo menos, faço isso”. 

Os valores que definem seu lugar no mundo também estão presentes em sua música. Seu engajamento é marcante em muitas de suas canções, como é o caso da recente We need to talk about it, do álbum Bloodline Maintenance (2022), uma mescla de blues, funk e gospel que aborda as profundas cicatrizes deixadas por séculos de escravidão. “Isso é algo que me vem naturalmente, embora não seja somente o que faço”, observa. “Estive recentemente na Tunísia. Postei nas redes sociais como amei estar na Tunísia. Comentaram que a Tunísia era terrível para pessoas negras. Pensei comigo mesmo: se for somente a lugares que são bons para negros, será uma viagem muito curta. Os desafios estão por todo lado, e só se tem uma vida para combater aquilo que você é contra. Só uma vida”, justifica.

Ben Harper já fez seu teste DNA de herança genética e descobriu que é “branco, negro, judeu e indígena”. A mistura é definida por ele como uma “verdadeira sinfonia” de várias características se exprimindo ao mesmo tempo, levando-o a agir como um “condutor de orquestra biológica”. “É algo excitante desempenhar o papel de maestro biológico, torna as coisas muito interessantes. Ninguém é uma só coisa. Mas muitas pessoas são muitas coisas, suas árvores genealógicas possuem uma infinidade de ramos. Eu tento tirar o máximo de minha própria sinfonia étnica”, resume.

Musicalmente, no entanto, embora tenha várias influências ­— do rock ao jazz, passando pelo gospel, o reggae e o folk —, ele assume o blues como seu DNA predominante. “O blues me atrai”, admite. “É onde realmente sinto a conexão mais profunda com o som. Gosto de vários outros tipos de música, mas foi o blues que determinou o nascimento de algo muito excitante para mim. Eu amo. O blues me levou embora. E fiquei fascinado pela transformação da música africana em blues. Sempre me interessei em saber quando e como isso aconteceu. Ninguém que desceu dos navios (negreiros) falava inglês, somente suas línguas nativas. E se deu essa transição, que gerou algo extremamente original”.

Apesar de o gospel, de inspiração prevalente cristã, também emergir em suas criações, sua relação com a religião é menos evidente: “Acredito mais na fé do que na religião”, afirma, com convicção. “Religião pode fazer coisas maravilhosas para as almas de muitas pessoas, não sou contra. Não sou contra nada, e não defendo tudo. Desde que não seja lavagem cerebral, faz bem, faz mal, e como todo o resto, é experiência humana. Eu gosto de ciência e de provas, mas também de imaginar que haja algo além disso. Mas há pessoas que usam a religião para muitas coisas ruins. Abusam do poder religioso, político, financeiro. Tenho um casal de amigos pastores, em uma igreja de Minneapolis, e tudo o que fazem em nome da religião é para ajudar as pessoas, não tentam convertê-las. Eles me dão fé. Acredito que há maneiras de se ter fé sem ser um fanático”. Sua mulher, de família católica, costuma levá-lo para a missa de Natal, o que ele não deixa de apreciar: “É lindo. Sinto algo. E está ok. Eu tenho muito espaço em mim”, diz.

Do Brasil, onde possui um público cativo, suas lembranças são as melhores. Sua parceria com Vanessa da Mata na canção Boa sorte/Good luck (2007) se tornou um sucesso. Certa vez, chegou a dizer que essa música havia mudado sua vida. “Para mim, Vanessa da Mata é rainha. Um dia ela me ligou e disse: ‘Amo sua música, você gostaria de fazer algo juntos?’. Quando ouvi a canção, não hesitei. Toquei Boa sorte recentemente em Portugal, e o público cantava junto, freneticamente. Tenho de aprender a cantar o trecho em português. Essa música foi um arraso. Se você tem um hit, não importa onde, é um hit. E é tão difícil emplacar um. Temos de fazer outra canção juntos”. 

Ben Harper se casou três vezes — com Joanna Harper, Laura Dern e a atual mulher, Jaclyn Matfus ­— e tem sete filhos — do mais velho, Charles, com 26 anos, a mais nova, Mona, de apenas três. “Fui pai nos meus 20 anos, nos 30, nos 40, e agora nos 50. Desde os anos 1990, não houve uma década em que não tive um filho. Louco pensar isso. Somos uma família muito unida. Todos os meus filhos são muito próximos entre eles. E conversamos quase todos os dias, é algo muito bonito. Estivemos todos juntos aqui neste verão em Paris, por duas semanas. É muito excitante ter essa conexão. A cada dia eu os amo mais.”. O pai de Mona diz não ser o mesmo em relação àquele que viu Charles nascer. “Eu me acalmei como pessoa, era muito apressado, sempre na estrada, nos 300 dias do ano. Minha vida hoje está mais tranquila e me sinto diferente”. Além do mais, os filhos, afirma, o obrigam a rejeitar o pessimismo na vida: “Eles exigem um otimismo interno constante. Meus filhos me ensinaram a ser otimista”.

Seu último álbum, White Open Light, o 17° de sua carreira, lançado este ano, foca nas relações românticas e no amor incondicional, como “um tipo de diário” com vários capítulos. “Independentemente do que ocorreu nos meus casamentos, nunca abdiquei de acreditar no verdadeiro amor. Normalmente, é uma dança. E nunca desisti dessa dança. Para mim, há uma conexão entre o verdadeiro amor e a luz mais brilhante, a luz que cresce em comunhão, família, aprimoramento pessoal, autoconhecimento”, diz. Sua mais recente relação, com a advogada especialista em direito social Jaclyn Matfus, é a mais longa que já teve: “Meu primeiro casamento durou três anos e meio. No segundo, ficamos juntos por sete anos e meio, mas casados por três. No terceiro, estamos casados há oito anos. As pessoas me perguntam se este é meu terceiro casamento, e respondo que não, é o meu último. Neste dezembro, fará nove anos que estamos juntos. Tivemos um casamento íntimo, e no nosso décimo aniversário de casados organizaremos uma enorme festa, provavelmente aqui em Paris”, revelou.

E hoje, qual o sentido da música para Ben Harper? “Essa é uma ótima questão. A música é uma oportunidade permanente e está constantemente me desafiando, e de uma forma diferente em comparação com outras artes. Na música, o silêncio está ali à espera, desafiando-o a fazer algo dele. E prossigo em direção a este mistério”.

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