FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS — As eleições legislativas francesas abalaram o cenário político do país. O resultado das urnas compromete a governabilidade do segundo mandato do presidente Emmanuel Macron, agora sem maioria parlamentar absoluta e obrigado a costurar uma nova estratégia de alianças políticas. A Reunião Nacional (RN), da líder de extrema direita Marine Le Pen, terá de provar na prática seu novo e surpreendente status, ao passar de apenas oito para 89 deputados na Assembleia Nacional. É O Mesmo desafio para o renascimento da esquerda como principal força de oposição, por meio da coligação Nova União Popular Ecológica e Social (Nupes). Sem esquecer o elevado índice de abstenção, persistente reflexo da desconfiança do eleitorado e de uma fraturada realidade política e social.
Mesmo elegendo a mais numerosa bancada do Parlamento, com 245 deputados, a coligação presidencial Juntos ficou distante da maioria absoluta (289 do total de 577 cadeiras), apontando Macron como o grande derrotado do pleito. Habituado nos últimos cinco anos a governar com plenos poderes parlamentares, o presidente terá de se acomodar a esta nova realidade, buscando aliados circunstanciais, segundo os projetos a serem votados.
Com margem de manobra
Para Luc Rouban, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), a nova composição da Assembleia Nacional, inédita na 5° República (desde 1958), vai confirmar a direitização liberal da política de Macron.
— É sua única opção hoje. Ele não tem outra escolha além de uma política de direita liberal para agradar os deputados dos Republicanos (partido conservador, com 61 deputados), de quem necessitará o apoio para obter uma maioria absoluta e passar seus projetos de reforma.
O analista não acredita em “paralisia” ou em “ingovernabilidade”, palavras que emergiram após a contagem final dos votos. Macron permanece com uma “margem de manobra”, mas será obrigado a negociar e adequar seus projetos de lei às demandas de suas eventuais novas alianças. Mesmo que o presidente dos Republicanos, Christian Jacob, tenha afirmado que não aceitará “pacto, coalizão ou acordo”, defendendo a independência política, membros do grupo já defendem uma proximidade com o campo presidencial.
Para Jean-Yves Camus, diretor do Observatório das Radicalidades Políticas, governar com maioria relativa não será fácil para Macron, mas não impossível:
— Para cada texto a ser aprovado, existe a opção de uma maioria de ocasião, que pode ser variável, seja com a direita dos Republicanos ou com os social-democratas em dessintonia com a Nupes. É viável, mas também perigoso. Se os Republicanos concordarem em ajudar o governo, certamente suas exigências serão bastante altas. Macron foi criticado por exercer o poder de forma jupiteriana, sem ter estado suficientemente à escuta dos franceses e querer passar suas reformas a todo custo. Isso poderá acabar.
No remanejamento ministerial que deverá ocorrer, tanto por conveniência política como por necessidade, já que Macron havia imposto a regra de que cada membro do governo derrotado no pleito legislativo renuncie a seu posto — e foi o caso para três deles —, não se exclui a possibilidade de que seja chamado algum representante dos Republicanos. Entre os nomes que deixam o governo por derrota nas urnas estão as ministras da Transição Ecológica, Amélie de Montchalin, e da Saúde, Brigitte Bourguignon. Além disso, líderes emblemáticos do macronismo não conseguiram se reeleger, o que foi considerado como um forte sinal de sanção ao campo presidencial.
Le Pen como líder
No lado oposto, a RN celebrou o feito da extrema direita, hoje com a maior representação parlamentar de sua história. Le Pen anunciou sua renúncia à presidência do partido para assumir a liderança da bancada na Assembleia. Para Camus, o resultado coloca uma enorme pressão sobre o grupo político.
— Não basta ter 89 deputados, é preciso saber o que eles farão de seus mandatos. Todos adotarão a linguagem e atitudes na linha da “desdiabolização” promovida por Le Pen? A RN é hoje um partido forte, mas solitário. Não bastará fazer discursos de tribuna, mas elaborar propostas de lei que mostrem aos franceses que não se trata unicamente de um partido protestatório, de oposição e cólera, mas com capacidade de governar. Há muito caminho a ser percorrido.
As eleições majoritárias em dois turnos nunca favoreceram a RN, mas desta vez o jogo mudou. Para Rouban, Macron caiu em sua própria armadilha, primeiro em diabolizar Marine Le Pen na eleição presidencial, e depois em usar como refrão de campanha nas legislativas que uma vitória de Jean-Luc Mélenchon, líder da esquerda radical França Insubmissa e da coligação Nupes, seria “o caos”. Le Pen teria se beneficiado da frente antimacronista que se desenvolveu nos últimos anos e da “diabolização” de Mélenchon no pleito para o Parlamento — na ausência de uma frente republicana, muitos candidatos da RN venceram o duelo face ao adversário da Nupes no segundo turno.
— A ambição da RN, hoje, é se tornar o grande polo de oposição de direita. Sempre foi considerada pelos burgueses como um partido proletário, não muito frequentável, mas isso tem mudado. Muitos têm sido atraídos por seu lado soberanista.
Na análise de Camus, o sucesso da RN também se deve ao fato de Marine Le Pen ter concentrado suas campanhas — presidencial e legislativa — em temas prioritários do cotidiano dos franceses.
— A questão do poder aquisitivo se tornou ainda mais essencial hoje do que era há seis meses. A guerra da Ucrânia provocou a alta dos preços para as classes médias e populares. Além disso, a RN fez uma forte campanha em regiões rurais onde a presença do Estado e do serviço público desapareceu.
Viável, mas unida
No campo da esquerda, uma nova força de esquerda foi viabilizada no plano eleitoral, mas a Nupes, com 131 parlamentares, sofre de sua frágil coesão política. Mélenchon propôs que os partidos membros da coalizão constituíssem um mesmo grupo na Assembleia, o que foi prontamente recusado pelos demais.
— A Nupes é uma bricolagem, globalmente seus eleitores não partilham dos mesmos valores — diz Rouban. — Há muitas diferenças em relação a temas como a Europa, a laicidade ou a energia nuclear, só para citar alguns.
Mas, entre todos, lembra ele, o maior partido hoje no país é o abstencionista, com um índice de 53,77% no segundo turno das legislativas.
— A crise democrática continua presente. Há muita abstenção do lado dos jovens e das categorias populares. A Assembleia reflete a crise da democracia, pois com esse elevado nível de abstenção não se pode dizer que seja o reflexo da diversidade de opiniões.