RIP: PETER BROOK (1925-2022)

FERNANDO EICHENBERG

Tive a chance de entrevistar o grande diretor de teatro Peter Brook, que nos deixou no sábado 2 de julho de 2022, aos 97 anos bem vividos, em três oportunidades: duas delas para a revista Bravo! e outra para o Teatro Sesc. Aqui o resultado de nossos encontros, publicado no primeiro volume de meu livro de entrevistas ‘Entre Aspas vol.1″ (LP&M).

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Em outubro de 1990, o diretor de teatro Peter Brook foi entrevistado no programa Le Bon Plaisir, da rádio francesa France-Culture. “O senhor aceitou essa entrevista mesmo tendo declarado um dia que jamais responderia as perguntas dos outros, só daria respostas as suas próprias interrogações. E então?”, questionou a jornalista Béatrice Clérc. O sábio Brook, já apelidado de Buda por seus atores, tratou de se explicar: “Tenho um primeiro princípio fundamental: nunca se apegar ao que dissemos no passado. Quando dizemos algo, é num dado momento, e no dia seguinte poderá ser exatamente o contrário. As contradições existem, mas se na vida adicionarmos todas elas, chegaremos a uma certa verdade”. Brook – na época, pelo menos – seguia ainda uma segunda conduta, também revelada a sua entrevistadora: “Meu outro princípio é o de nunca sentir que é preciso dizer a verdade aos jornalistas. Eles têm uma profissão que é a de fazer perguntas. Se as respondemos é em função das circunstâncias. Assim, por exemplo, diante de você, tratarei de ser relativamente honesto, não mais do que isso”.

         Oito anos depois, numa entrevista a Susannah Herbert, do jornal britânico The Daily Telegraph, afirmou: “Tudo o que é teórico, no fundo, não me interessa. Cada teoria, cada idéia, deve ser testada e redescoberta passo a passo. É exatamente isso que faz o teatro: ele atinge a verdade pela experiência”. No início da conversa, Brook contou seu sentimento de terror na véspera de sua primeira grande montagem de uma obra de Shakespeare, Love’s Labour’s Lost, em Stratford-upon-Avon, cidade santuária em que nasceu o célebre dramaturgo. Ele havia previsto tudo nos mínimos detalhes, cada movimento dos atores fora indicado por meio de flechas desenhadas em pedaços de papel. Tudo parecia no lugar, quando, de repente, ele disse: “Está tudo errado. Recomecemos tudo do zero”. A partir desse dia, Peter Brook nunca mais preparou nada em definitivo. Vencida diante do relato, a jornalista inglesa se desfez de todas as perguntas que havia preparado para a entrevista. “Você vê, é exatamente isso que estou querendo dizer. Um processo vivo acaba de nascer entre nós!”, disse, satisfeito, o entrevistado. Susannah Herbert concluiu: “Por surpreendente que seja descobrir – passados dez minutos de entrevista – que atuamos no ‘processo teatral’ de Brook, sua alegre insistência em mostrar, mais do que em demonstrar, em fazer do menor acontecimento uma parábola de sua arte, ensina mais do que a árida enumeração de suas produções”.

         Quando me dei conta, lá estava, igualmente prestes a participar do “processo teatral” de um dos maiores nomes do teatro contemporâneo. Peter Brook sentado em face, à sombra da copa de uma árvore no parque do Théâtre du Soleil, palco no qual ensaiava os novos atores de Le Costume (O Terno), sua primeira peça exibida no Brasil. Assisti a um dos ensaios públicos do espetáculo. O diretor instalou-se em meio à platéia, uma caneta e um bloco de papel na mão. Minha atenção se dividia entre o espetáculo e seu criador. Enquanto anotava correções de rumo na peça, vez ou outra, em partes cômicas, ele ria. Ria como um espectador que estivesse assistindo a peça pela primeira vez.

Peter Brook tinha 7 anos de vida quando encenou pela primeira vez  Hamlet, de William Shakespeare. Durante uma tarde inteira, seus pais assistiram à proeza do pequeno Peter Stephen Paul Brook, que protagonizou a famosa peça do dramaturgo inglês auxiliado por marionetes confeccionadas em papelão. “Meus pais procuravam a toda hora um pretexto para escapulir”, conta. O precoce diretor elaborou, inclusive, um programa para a avant-première vespertina, devidamente intitulado: “Hamlet por P. Brook e W. Shakespeare”. A vocação manifestada na infância não tardou a amadurecer. Aos 20 anos, já era diretor de teatro profissional. Aos 22, em Stratford-upon-Avon, dirigiu o ator John Gielgud em Medida por Medida. Era apenas o começo de seu longo percurso de experiências, pesquisas e descobertas teatrais. O primeiro grande sucesso ocorreu em 1955, com a montagem de Titus Andronicus, interpretada por Laurence Olivier e Vivien Leigh. Pelas suas mãos passaram ainda atores como Orson Welles, Glenda Jackson, Paul Scofield ou Jeanne Moreau. Peter Brook conviveu com os maiores dramaturgos de seu tempo – Bertold Brecht, Samuel Beckett, Jean Genet -, trabalhou com Jean-Claude Carrière e Ted Hughes e foi amigo e admirador de Jerzy Grotowski e de seu Teatro Laboratório.

Seu currículo acumula montagens que se tornaram lendárias, tão diversas quanto vasta é sua curiosidade e intensa sua paixão pelo teatro. Co-diretor da prestigiada Royal Shakespeare Academy, o diretor inglês não foi alçado à cena internacional graças apenas a suas inovadoras leituras do teatro elisabetano ou por suas singulares adaptações de autores como Arthur Miller, Bernard Shaw, T.S. Eliot, Ibsen, Tchekov e Tenesse Williams. Ele é o diretor do inimitável Mahabharata, epopéia hindu da criação do mundo contada num espetáculo de nove horas de duração, exibido em quatro continentes e depois traduzido em filme. Sua assinatura aparece ainda em Marat/Sade, de Peter Weiss, Orghast, de Ted Hughes, em originais montagens das óperas Don Giovanni, de Mozart, ou Carmem, de Bizet, e nas peças investigativas e/ou críticas como US e A Lenda dos Pássaros e numa extensa lista que vai de A Tempestade, de Shakespeare, à adaptação do livro de Oliver Sacks em  L’Homme qui. Peter Brook é ainda o cineasta de Encontros com Homens Notáveis, Moderato Cantabile ou Rei Lear.

          Os ingleses até hoje lamentam o abandono da terra natal pelo filho pródigo, considerado como um dos mais criativos diretores de teatro vivo. Em 1970, Brook atravessou o Canal da Mancha para se instalar definitivamente em Paris, onde fundou o que viria a ser a incubadora de suas futuras criações, o Centro Internacional de Pesquisas Teatrais. Em 1974, encontrou o lugar ideal para desenvolver seus projetos, o Théâtre des Bouffes du Nord. Abandonado desde 1952, o teatro, escondido num antigo prédio do bulevar de la Chapelle, era uma sala em ruínas. Ele ressuscitou o local mantendo a precariedade, o despojamento das instalações, os vestígios centenários e aproximando os atores do público. O cenário íntimo estava montado para que dali pudesse brotar o teatro minimalista e experimental brookiniano. A capital francesa se tornou sua base, mas também catapulta para o mundo. Explorador resoluto, ele levou seu grupo multiétnico de atores para representações nas ruas, em cafés ou ginásios esportivos, em aldeias africanas, em bares e praças públicas dos Estados Unidos ou em recônditos lugares do Irã, enfim, em qualquer local que não lembrasse um teatro tradicional. Sua viagem de três meses e de 15 mil de quilômetros pela África lhe mostrou o caminho do teatro shakesperiano. Nessa aventura on the road, Brook experimentou o que chamou de carpet show: o palco de sua trupe itinerante constituía-se de um singelo tapete. “Constatamos que a melhor maneira de estudar Shakespeare não era olhando as reconstruções dos teatros elisabetanos, imaginando como era o Globe, mas simplesmente fazendo improvisações sobre um tapete. Shakespeare fazia teatro para um espaço indefinido”, diz. Não por acaso, seu livro que se tornou uma referência no meio teatral tinha o título de O Espaço Vazio. Para Brook, o teatro é um espaço vazio a ser preenchido. Bastam uma pessoa que atravessa um espaço, e uma outra que a observa, e todas as condições estão formadas para o milagre do teatro, diz. Simples. Mas Peter Brook não busca a simplicidade, e mesmo condena aqueles que o fazem como forma. Seu trabalho emerge como decorrência de um natural aprendizado: “Para fazer teatro, para examinar e compreender o teatro, precisa-se apenas de uma coisa: a matéria humana”.

Ao longo dos anos, ele colecionou centenas de percepções sobre o teatro e seu trabalho que sinalizam a continuidade de suas experimentações: “O teatro deve ser o espelho da vida. A idéia do teatro político que leva à revolta é loucura, como é falsa a idéia de encher o público de otimismo. O teatro deve acrescentar uma força revitalizante”; “Cada cultura exprime uma parte diferente de nosso atlas interior: a verdade humana é global e o teatro é o lugar onde esse quebra-cabeça pode ser reconstituído”; “Colocar os atores num espaço vazio é metê-los numa situação semelhante a uma experiência de laboratório: procuramos alguma coisa na vida, e os colocamos sob uma forte luz para vê-los melhor”; “Um texto medíocre pode dar origem a apenas algumas formas, enquanto um grande texto, uma grande partitura de ópera são verdadeiros centros de energia”; “Sempre nos surpreendemos pela quantidade de formas inesperadas que podem surgir dos mesmos elementos, e a tendência humana a refutar isso é uma redução do universo”; “O diretor de teatro precisa de uma única ideia – a qual ele deve buscar na vida, não na arte -, fruto de sua interrogação sobre o que um ato teatral acrescenta ao mundo, por que ele existe”.

Antes daquele que seria nosso primeiro encontro (outros dois se sucederiam: mais uma vez em Paris, motivado por uma nova versão de Hamlet,e em Duisburg, na Alemanha, para a estréia mundial de Tierno Bokar), me perguntara: como entrevistar esse imenso personagem, dono de uma longa e rica biografia? É claro que também preparara algumas perguntas. Muitas, para ser exato. Sabia também que não teria o tempo desejado para abordar todos os mistérios e explorar todas as possibilidades do nobre entrevistado. Sabia que logo a entrevista seria aspirada no “processo” brookiniano. E a primeira pergunta, evidentemente, foi dele. Conversamos sobre a versão de Orfeu, feita pelo cineasta Cacá Diegues. Mas, em seguida, foi minha vez de questioná-lo e de ouvi-lo. Ao falar, suas mãos pareciam tecer fios invisíveis. A modesta estatura e os vivazes olhos de um azul transparente que se recusam a piscar, acompanhados, por vezes, de um sorriso maroto, fazem, de uma certa forma, lembrar um simpático Buda. Peter Brook nos deixa sem culpa de bocejar diante de uma peça reputada. Se você vai ao teatro e se entedia, não esconda seu sentimento, aconselha. No fundo, ele é um grande gourmet: “Uma sala de teatro é como um restaurante cuja responsabilidade é a de saciar seus clientes. Há um só critério: os espectadores deixam o teatro com um pouco mais de coragem, um pouco mais de energia que tinham quando entraram? Se a resposta é sim, é porque a comida é boa”. Peter Brook cansou dos grandes espetáculos e dos efeitos especiais. Seu teatro foi reduzido ao humano – se é que se pode chamar isso de redução. Seu trabalho é guiado por duas preocupações, o tédio e a centelha. É preciso evitar o primeiro e provocar a segunda. Como na vida. Mas, afinal, Peter Brook não cansa de repetir, sem que nunca pareça um clichê, que “teatro é vida”, mas não a vida real. A vida condensada.

Ao final da entrevista, após as despedidas, permaneci observando seus passos curtos e curiosos em direção à porta do teatro. Imaginei Peter Brook aos 7 anos, manipulando marionetes shakesperianas diante de seus pais, enquanto ele sumia pelo pórtico numa sempiterna juventude, repleto de idéias e projetos, transbordando entusiasmo pelo teatro, pelo humano, pela vida.

Para o senhor, toda forma é mortal desde que se torna uma forma, mas apesar de várias mudanças no seu percurso teatral, afirma que sempre houve certa continuidade. Não houve rupturas?

Creio que, na vida, as formas são muito fascinantes, sedutoras. Ao mesmo tempo, quanto mais trabalhamos, não importa qual seja a área, mais nos damos conta de que as formas são sempre exteriores. Mesmo a forma mais profunda é exterior. Mesmo se você diz “Deus”, a palavra não é a realidade. No meu próprio trabalho, sempre me convenci de que a forma é um veículo. As formas mudam, as formas dos prédios, das poltronas, a relação entre luz e figurinos. Mesmo as cores, que num momento parecem corretas, dez anos depois já não parecem a mesma coisa. Comecei trabalhando com todas as formas. Adorava fazer grandes espetáculos, com grandes luzes e direção complexa, efeitos e tudo mais. Pouco a pouco perdi todo interesse por outra coisa que não seja veiculada pelo ser humano. Nesse sentido, não é uma pesquisa teórica de uma forma que se chama simplicidade. Desencorajo todo jovem diretor que procura saber como fazer para ser simples. Se buscamos a simplicidade, estamos liquidados. Acaba por se tornar uma forma, um formalismo, mesmo se dizemos: “Não quero uma forma”. Para alcançar o que pressentimos ser o essencial, é preciso eliminar muito, como você fará com a minha entrevista. Você está me encorajando a dar, por todos os lados, todo tipo de material, e para chegar a algo que seja vivo no papel será obrigado a simplificar, lapidar, fazer relações e, finalmente, todo seu trabalho será algo sensível, tenho certeza, mas de eliminação. Os dois caminhos são “fazer em demasia” ou “não fazer o bastante”. São sempre essas duas vias. Com uma se faz demais e, com a outra, mostramos: “Não, não é necessário”. Se tentamos muito rapidamente eliminar tudo, vamos na direção errada. Se fazemos em demasia, ficará saturado.

Em 1960, o senhor disse que “todas as formas de teatro atravessam uma crise profunda”. O senhor repetiria o mesmo hoje?

Sim, podemos dizer o mesmo hoje. Mas é uma boa coisa. Acho que somente um idiota teria coragem, hoje, de dizer quais serão as formas da sociedade em pouco tempo. Com a velocidade das mudanças, não podemos prever. Para o melhor ou o pior, as formas devem se adaptar. A forma é a malha entre um conteúdo e a sociedade imediata. Mesmo os futurólogos não poderão prever para que formas vamos e em que velocidade. O conhecimento tecnológico está muito avançado. Talvez caminhemos para um mundo precário ou completamente destruído. A forma do teatro, talvez, será, mais do que o teatro de rua, o teatro de ruínas. Os dois são possíveis.

O teatro deve evitar o tédio e provocar a centelha. Isso continua uma prioridade nas suas criações?

O teatro é uma centelha. Há o tema eterno e a vida não eterna. Uma coisa estável e outra que muda todo o tempo. Por isso insisto sempre nessa necessidade de respeitar a relação com o espectador. O público é o testemunho de uma face da realidade que é a vida em transformação. As formas mudam dia após dia, em torno do acontecimento, e não são as mesmas em diferentes lugares. A presença do público representa o efêmero. A qualidade da peça depende do tema real, algo estável.

Pouco antes de dar como pronta uma peça, o senhor apresenta o espetáculo, ainda inacabado, numa escola, para ver a reação de crianças. Por quê?

Simplesmente porque as crianças não têm idéias preconcebidas, reagem diretamente. Por exemplo, um Shakespeare: diante de um público que tem o hábito de assistir à peça, 80% não está emitindo respostas em relação ao que se passa, mas sim fazendo comparações a cada instante. Seja com outras montagens da mesma obra, sons que já ouviram ou com a interpretação da peça e sua própria interpretação prévia no nível teórico. Isso é terrível. A criança é esperta, pronta a responder ou não responder diretamente ao que está diante de seus olhos.

O senhor se refere a métodos de atingir o espectador. Quais são eles?

Não quero tocar o espectador. É preciso com urgência se desvencilhar dessa idéia de que aqueles que fazem o espetáculo estão lá para passar uma idéia, uma mensagem, numa relação superior. A idéia de que nessa relação há um elemento de desprezo. Algo como “nós somos mais inteligentes, mais sensíveis, politicamente mais espertos”. Nosso trabalho é uma exploração extremamente íntima, na qual tentamos, às vezes utilizando métodos, atingir a possibilidade de partilha. Se o ator toca o público é porque o público toca o ator, e cria-se um ciclo, um feedback.

Em décadas recentes, um tipo de teatro mais imagético dominou a cena, tendo Bob Wilson como seu maior expoente. O que o senhor acha dele e de outros diretores contemporâneos como Peter Stein ou Ariane Mnouchkine?

Por princípio, nunca faço comentários sobre colegas. Mas no caso desses três nomes que você citou, são pessoas de quem gosto muito. Quando vou ver o trabalho deles, felizmente é muito diferente do meu. Não é meu desejo que haja uma só forma. A única coisa que conta é a qualidade. E esse três representam um alto nível de qualidade. Me recordo da primeira vez que assisti a um espetáculo de Bob Wilson. Foi uma revelação. Era exatamente o que deve fazer o teatro, varrer completamente todas as respostas que tínhamos, porque estamos diante de algo diferente. Foi espantoso.

O senhor mesmo afirmou que há um risco de as pessoas irem ao teatro por dever, por ser um sinal de ascensão social, por exemplo. Uma certa “cultura perigosa”, a que o senhor se refere, submetida a aspectos comerciais, não estaria em ascensão, em detrimento da “cultura viva”?

Tudo isso é verdade. Mas, ao mesmo tempo, é preciso admitir que denunciar e se queixar não adianta muito. É preciso ver o que podemos mudar. Às vezes, podemos mudar realmente alguma coisa; outras, apenas um pouco. É preciso que cada um faça o que pode no seu campo – e cada campo é obrigatoriamente limitado -, para fazer o contrapeso, em vez de se lançar junto com todos aqueles que crêem que denunciando tudo vai mudar. Claro que não se pode criticar aqueles que denunciam. Mas veja o jovem chinês que se postou diante dos tanques na praça Tienanmen: o gesto foi mais importante. A qualidade do gesto é que é importante. Se trabalhamos em qualquer área artística, e somos honestos, estamos na contracorrente. Não importa qual seja a corrente, será uma contracorrente. Mesmo se vivêssemos numa utopia, o teatro deveria estar aí para ser a anti-utopia. É indispensável. Se o teatro estiver morrendo, o que não é o caso hoje, um pequeno grupo de pessoas, que deseja trabalhar honestamente, deve estar presente para ser contra a morte do teatro. Se o teatro estiver sendo absorvido pela mídia, muito bem, não se deve condenar isso, é a grande corrente. E a grande corrente é o teatro-espetáculo, como antes da queda do Império Romano, quando o teatro era baseado no espetáculo, nos gladiadores. Hoje, há um movimento na direção de se fazer grandes espetáculos tecnológicos, como no cinema. E, assim como no cinema, há a necessidade de uma contracorrente. O teatro deve ter sua contracorrente. Sabendo-se que, numa outra época, nos anos 60, havia esta denúncia do teatro como forma elitista. O que era válido na época está totalmente fora de moda hoje. Aqueles que acreditam que o teatro é um pequeno movimento elitista é como pensar que um pequeno restaurante serve comida obrigatoriamente de uma forma elitista. Um espetáculo da Broadway pode ser difundido no mundo inteiro e, em seguida, vem o DVD, e diante de tudo isso, mesmo um teatro de três ou cinco mil lugares é um pequeno fenômeno elitista. É preciso varrer todas estas concepções e retomar a idéia de um grupo de ação, pessoas que aceitem gerar uma contracorrente.

Suas viagens de representações e experiências teatrais tiveram uma preferência pela África e pelo Oriente. Por que, por exemplo, a América Latina tem pouco espaço nas suas preocupações artísticas?

Há uma resposta muito simples para essa questão: nós não somos, felizmente, como a Unesco. Nosso trabalho é íntimo, e não de todo representativo. Se sentíssemos necessidade de fazer fair play com todos os países do mundo, não pararíamos nunca. Há um outro princípio: não se pode agradar a todo mundo. Na verdade, me interessa muito tudo o que vi e o que conheço das culturas sul-americanas, mas, ao mesmo tempo, devo dizer que há certos complementos que estão mais próximos da fonte. A fonte africana está na África. O fenômeno africano se desenvolve, hoje, nessa forma de cultura mestiça, misturada, que encontramos nos Estados Unidos, em Londres ou Paris. Para mim, leva de imediato à África do Sul. A África é uma imensa riqueza. Como cultura, é muito mais densa, mais rica do que admitem a maioria dos ocidentais, que admiram a Ásia porque lá há belos objetos. Como os colecionadores admiram os objetos, lhes dá a impressão de uma grande civilização. A civilização africana é quase invisível em relação às expressões exteriores como os objetos e as construções e é uma cultura tão sofisticada, tão rica, espiritual e complexa quanto as outras. Por um lado, podemos dizer que a África é um todo. É verdade, há uma cultura africana. Mas, ao mesmo tempo, não é verdade, no sentido de que a cada 30 quilômetros há uma outra língua, outra cultura. Os dois seguem juntos. Como há a América do Sul e também zonas diferentes dentro dela.

Por que o interesse especial pela África do Sul?

A África do Sul possui algo único hoje. Por um lado, ela tem essa cultura urbana, a cultura de nossos dias. Para nós, nossa cultura natural, como agora quando falo para o seu gravador, é uma cultura de cidades. Você, eu, quase todo mundo, fomos educados bastante distantes de nossas próprias raízes. A África rural começa a ser contaminada pela revolução industrial, mas não de todo. Mas na África do Sul temos um ponto de equilíbrio, hoje algo excepcional. De um lado há, por causa da riqueza do país, um desenvolvimento urbano tão grande quanto em Chicago, Nova York, São Paulo e outras grandes cidades. É parte desses fenômenos das cidades do século 20. Vemos isso mais acentuado em Johanesburgo do que em outros locais. Se você compreender essa cidade, entenderá as outras capitais. Nada se parece com Johanesburgo, que é tão grande quanto Chicago. Em contrapartida, os habitantes estão ainda muito próximos da fonte de sua verdadeiras tradições. Hoje, alguém que vive totalmente nesse cotidiano de assassinatos, metralhadoras, o jazz, a música, a televisão da cidade, e tudo o mais tem também sua família que ainda mantém a cultura tradicional.

Em Tierno Bokar, o senhor fala de duas questões dos nossos tempos: a violência e a intolerância. Como o sr. as vê?

Está muito claro que tudo o que para nós é totalmente insuportável no mundo é totalmente inevitável. É exatamente como se você põe fogo em algo. É da natureza das coisas que esse fogo se propague. Não se pode mudar a natureza. Se você compreender profundamente a natureza do ser humano, não há nenhuma razão para ser surpreendido. Nenhum sistema, nenhuma idéia pode alterar a natureza do ser humano, que possui em si, ao mesmo tempo, como se diz na religião, o anjo e o diabo, imagens um tanto fora de moda. Isso foi melhor posto pelo hinduísmo, no qual vemos a força da destruição e a força da criação como parte do ser humano. Este ciclo – o que é criado é destruído, e o que é destruído vai renascer -, é o novo permanente de toda a história humana, com todos seus sonhos idealistas, os novos sistemas, que chamamos marxismo, democracia, fascismo, economia. Há uma troca. Na medicina, por exemplo, se inventa um antibiótico, e mesmo os micróbios encontram uma forma de se adaptar ao medicamento e continuar a destruir. Isso quer dizer que, enquanto nesse sistema inevitável não aparecer uma força de uma outra natureza, outra materialidade, não haverá surpresa, nada poderá mudar, haverá sempre altos e baixos. Esse movimento de altos e baixos existe em cada país. Na vida de cada indivíduo, há momentos em que se está um pouco melhor e, em outros, menos. Hoje temos sol e depois vem a chuva, e sabe-se que a chuva não vai durar para sempre e o sol vai retornar. Mas, assinalo, no centro da religião há algo que faz parte da natureza do ser humano, que é uma abertura a uma outra qualidade de existência, a qual não podemos nomear ou descrever. No centro da experiência, sabemos que, além do que podemos ver e tocar, há algo que ultrapassa tudo e diante do qual somos ignorantes. E diante dessa ignorância há uma possibilidade de se abrir a uma outra coisa. Isso se chama a experiência religiosa. Mas, a tragédia da humanidade ainda é que, no seu conjunto, o que está além da compreensão é algo insuportável, por causa da vaidade do homem, que quer tudo controlar e compreender.

Qual deve ser o nível de compreensão das grandes religiões?

A religião que, hoje, é a mais próxima da nossa capacidade de compreender é o taoísmo. O que é o tao? O tao não tem forma, cor ou gosto. Não podemos encontrá-lo em lugar algum. Então, o que é? Não podemos dizer. Isso se pode entender. Mas nas outras religiões, rapidamente tudo é vulgarizado ao nível jornalístico. Tierno Bokar diz: é preciso falar a cada pessoa segundo seu nível de entendimento. Se você fala a uma criança, não começa dizendo que o tao é algo “além de”. Começa dizendo: “Há alguém como teu pai, que te olha”. É Papai Noel. Mas há um momento em que se deve abdicar disto por idéias mais puras. Nas escolas de matemática ou de física, começa-se com um, dois e três, e depois se alcançam níveis cada vez mais elaborados. Na religião, é como se você pegasse uma fruta. No primeiro nível, você vê o exterior da fruta. Mais você a descasca, mais alcança a fruta em si. A fruta esconde ainda no interior o caroço. No interior de si mesmo, há essa coisa profunda, para a qual não se têm palavras. Da mesma maneira, no budismo, no cristianismo, no Islã, chega-se a um nível de experiência em que não há mais palavras ou definições. Num momento de Tierno Bokar, surge a pergunta: “O que é Deus?”. E Tierno Bokar responde: “Deus é o embaraço das inteligências humanas”.

Deus permanece como um embaraço das inteligências humanas nesses tempos turbulentos?

Exceto por diversão ou para nos deprimir numa conversa, de nada serve analisar o conflito em Bagdá e apontar o responsável, porque isso também ultrapassa toda definição. Mas temos necessidade de algo que, para mim, é determinado pelo vazio e o silêncio, as coisas mais raras na vida contemporânea. No teatro, tentamos em L’Homme Qui, ao final, descartar qualquer interpretação. Em Mahabharata, havia a idéia de quebrar com tudo o que é bom ou mau. E aqui, a idéia é muito simples, temos dois homens, Tierno Bokar e Hamallah, que buscam a pureza. A pureza da experiência. Numa hora, é preciso escolher entre o compromisso e a fidelidade ao que se sente como essencial. Finalmente, o que queremos no teatro não é dar o argumento, mas ter numa peça, com a presença e os gestos do ator, a música, etc., a possibilidade de sentir outra coisa, sem tentar impor uma doutrina. E dizer, o que é muito importante para o mundo, hoje, que o puro Islã, como o puro cristianismo, o puro budismo e o puro hinduísmo são a mesma coisa.

Tierno Bokar utiliza uma metáfora para afirmar a existência de três verdades – “a minha verdade, a sua verdade, e a verdade”. Que verdade o senhor busca por meio do teatro?

A resposta é bastante simples: a grande beleza da forma teatral está em poder dar, simultaneamente, todos esses pontos de vista. Eu daria uma só definição da verdade: quando estamos na presença dela, nós o sabemos. Ninguém pode descrever. No teatro, por exemplo, onde tudo é relativo, não temos nunca “a verdade”. Mas a primeira aproximação da verdade no teatro está nos momentos de silêncio, nos quais se sente que centenas de pessoas, subitamente, abandonam a idéia de “sou eu, sou eu, sou eu” e vivem juntos um momento. Essa é a verdade teatral. Não se pode ser enganado: quando o momento chega, ela está lá.

O senhor acredita que a palavra está dispersa, desprezada no teatro ou mesmo na vida, hoje?

Desprezada eu não diria, porque todo mundo a utiliza, e de qualquer maneira. Ela é vulgarizada. No Japão, por exemplo, “zen” é uma palavra muito especial. Após anos e anos de dura experiência alguém pode alcançar a experiência direta de compreender o que ela significa. É algo de nível elevado, que exige esforço, sofrimento e dedicação para saber do que se trata. No momento em que se tenta descrever o que é o “zen”, ele desaparece. Hoje, no metrô parisiense, você vê a palavra “zen” para cremes de beleza, viagens: “Faça viagens de férias zen, com o creme bronzeador zen”. Aqui vemos a passagem secreta, como a palavra divina se vulgariza. A mesma coisa ocorre com a palavra “ícone”. Para a religião ortodoxa, “ícone” era algo da época bizantina. Para os primeiros cristãos, era algo extraordinário. Hoje, leio nos jornais que uma pop star de 16 anos é o novo ícone. É algo irracional. Hoje qualquer pessoa é um “ícone”. Vamos na direção de uma decadência absoluta.

Cada vez que o senhor começa a criar um novo espetáculo, lhe é feita a mesma pergunta: por que esse tema agora? O senhor nunca responde concretamente, mas vou tentar mesmo assim. Por que Hamlet agora? É, como o senhor diz, “pura convicção” ou o “obscuro pressentimento?

Sim, é o obscuro pressentimento. Conscientemente, procuro não aprisionar o teatro numa forma de repertório, no sentido de que o teatro deve ser um espelho dos vários aspectos da vida. É por isso que logo depois de ter produzido Mahabharata fiz essa peça sul-africana, Woza Albert!, na qual dois atores encarnam toda a sociedade do apartheid. Porque, de um lado, em Mahabarata não há nenhum contexto social relacionado à vida de hoje, mas sim os temas profundos que atingem a totalidade da humanidade, o sentido da guerra, do conflito e de como viver o conflito; mas no nível do método não há nenhuma relação com a vida de todo dia. Woza Albert! é exatamente o contrário: exprime um sofrimento profundamente real, imediato, atual, na África do Sul. Senti a mesma coisa depois de ter feito peças sobre o cérebro, ao tratar esse tema de uma maneira completamente atual. E agora, depois de uma temporada sul-africana, que revela experiências vividas no sofrimento, pensei em retornar a algo que esta fora de todo o resto, que é Shakespeare. Seus temas atingem sempre um público muito diverso, com um suporte extraordinário, que é sua forma de ver o mundo pela sua cultura, e é por isso que quero montá-lo em inglês. Já montei quatro peças de Shakespeare no Bouffes du Nord, mas nunca em inglês. Não poderia fazer essa montagem na Inglaterra, porque trabalhamos com um grupo internacional; e lá isso é inconcebível.

No espaço de dois anos, o senhor criou versões de Hamlet  em inglês e francês, eliminou passagens, reconstruiu cenas, alterou a ordem dos elementos para tentar chegar ao texto essencial. Podemos dizer que, além de eternamente contemporâneos e universais, os versos também eram livres de movimento?

O objetivo ao encenar Hamlet foi de retirar as camadas que séculos de interpretação colaram não somente na peça, mas também no imaginário coletivo. Para conseguirmos isso, foi preciso um trabalho de eliminação. Ao montar a peça uma segunda vez, ainda eliminamos coisas que há um ano pareciam indispensáveis. Tudo para atingirmos, realmente, o que chamo de tragédia. A tragédia é uma forma de falar de relações essenciais. Há o essencial, e depois é preciso uma boa iluminação e a decoração. Tentamos encontrar o coração dessa imensa obra. Por meio da forma, tentamos buscar o núcleo essencial. Na música, a língua inglesa é tão diferente da língua francesa quanto do português. Mas, talvez, existam poucas línguas tão distantes uma da outra como o inglês e o francês. O inglês não é uma língua racional, é uma língua de contradição, de paradoxo. A verdadeira poesia inglesa é feita de palavras que, normalmente, são conjugadas de um modo bizarro. Se você tentar fazer a mesma coisa em francês, chegará a algo que vai mesmo contra a própria natureza da língua. O grande valor da língua francesa é sua transparência. Mais do que em qualquer outra língua, há essa pureza, que leva à poesia. O francês tem a clareza da intenção, do pensamento. Quando colocamos essa clareza, essa limpidez, colocamos música. Se procuramos nessa direção, se o ator encontra uma verdadeira correspondência entre aquilo que o habita interiormente e as palavras que pronuncia, temos uma música. Uma outra música, mas é uma música.

O senhor deslocou, inclusive, o lugar do célebre monólogo to be or not to be, o “ser ou não ser”.

Essa é uma longa discussão. O lugar do monólogo permanece como um mistério na peça. Para os especialistas, há dois momentos, e um deles seria mais no início, seu lugar habitual. Mas nunca achei satisfatória essa posição, logo após o monólogo sobre o ator, quando Hamlet decide que vai pôr o rei à prova. Por exemplo, a presença do personagem Fortinbrás e de seu exército é não podemos incluir hoje, porque Shakespeare não conhecia a democracia. Para Shakespeare, só havia duas possibilidades, o bom ou o mau rei. A idéia de que uma sociedade pode existir sem um ditador não existia, porque não havia outro modelo social. Era preciso uma transição para Hamlet. A transição é reconhecer que tudo o que ele fez fracassou. Ele não matou o rei, mesmo se suas razões para isso eram válidas. Ele insultou e torturou sua mãe em troca de nada. Ele se matou, o que era contra sua natureza e, além disso, matou o pai da jovem que amava mais do que qualquer outra coisa no mundo. Ele é o fracasso de sua vida. E quando se está diante do fracasso de sua vida, o que resta? O suicídio. Para mim, a grandeza desse monólogo está na passagem de alguém que, no começo, tem a idéia de se matar e que, depois, finalmente se dá conta de que há uma coisa mais importante para um homem, mais importante mesmo do que a reflexão, que é a ação, quando necessária. A partir desse momento, ele se torna cada vez mais adulto, até a cena antes do fim, quando vê que está diante do destino, e então reconhece que há uma só coisa: ir até o fim. Com calma, sem histeria. Há algo presente em todas as peças de Shakespeare: depois da morte, a vida continua. A morte não tem a última palavra. Nas minhas versões, não vejo Horácio como alguém valente, forte, sem imaginação, o amigo leal. É um jovem sensível e aberto, que acompanha tudo o que se passa e, no fim, quando Hamlet lhe diz “é você que irá contar a minha história”, sente-se que nele está representada a continuação da vida.

O senhor diz que Hamlet é seguidamente apresentado como um ser anormal e que ele talvez seja o único realmente normal na peça. Hamlet é a dúvida?

Diria que Hamleté anormal. Mas não no sentido habitual da palavra. Normalmente, se utiliza “anormal” para se referir a algo grotesco, estranho, patológico, como um doente mental. Diria o contrário. O objetivo de todo homem é possuir e controlar todas suas possibilidades. Não há praticamente ninguém entre nós que consegue ser normal. Utilizo com freqüência como qualidade no teatro a palavra “natural”. Natural não significa naturalista. Quer dizer alguma coisa anormal. Muitas vezes, pessoas que me detestam me perguntam: “Por que você usa atores negros ou amarelos?”. Eu respondo que, numa sociedade normal, a coexistência de todas as raças e cores seria normal. Nossa situação racista, xenófoba, é uma condição de uma sociedade doente que é, portanto, anormal, no sentido patológico da palavra. Hamleté como a maioria dos jovens, hoje, gostariam de se sentir eles mesmos. Ou seja, alguém que ainda não está corrompido e que contém em si todas as possibilidades intelectuais, físicas, sexuais e que deseja explorar e compreender o que é a vida, a morte, o destino para, no fim, ser normal. Em Hamlet há uma natureza jovem pronta a ser desenvolvida, e ainda não estragada. Lê-se todos os dias nos jornais, por exemplo, sobre crimes terríveis. Um jovem de 18 anos acaba de matar sua namorada a facadas, porque ele havia assistido ao filme Scream. Já aos 18 anos, algo, seja geneticamente ou pela educação, foi danificado, e isso é trágico. O jovem tem o senso crítico, irônico, a inteligência rápida, o gosto verdadeiro pela vida, uma fascinação profunda e, ao mesmo tempo, um desgosto por tudo que cria esta incrível possibilidade que é o homem, essa versão da sociedade atual. Nesse sentido, sendo como a maior parte dos jovens, antes que a vida tenha bloqueado o crescimento e as possibilidades, Hamlet é, novamente, um herói de nossa época.

Por quê durante os ensaios de Hamlet  o senhor lembrou muitas vezes o ex-líder sérvio Slobodan Milosevic?

Com o ator inglês, durante os ensaios, é bastante útil arriscar na banalização do personagem, aplicando nele um modelo concreto de hoje. Para ter um aspecto de um personagem como o rei, podemos citar Pinochet, Milosevic, Stalin… Milovesic é interessante no sentido de que, durante as reuniões dos acordos de Dayton sobre a Bósnia os americanos ficaram seduzidos por ele. Aparentemente, ele era o mais sedutor, o mais engraçado e o mais inteligente. Quando terminavam as reuniões, eles se agrupavam em torno dele para escutar comentários vivos e engraçados de um homem sofisticado, que não era idiota. E, escondido no seu interior, havia esse homem de uma violência e um perigo aterrador. Era importante para o ator se dar conta de que não deveria interpretar um malvado, mas alguém que todo o mundo, e sobretudo a rainha, vê como um homem charmoso e sedutor. Mas a diferença é que Milosevic, pelo que podemos ver pelo seu processo de julgamento, não tem arrependimentos, ao contrário do personagem de Shakespeare. Veja o exemplo de Dostoievski, que criava personagens eslavos e russos que cometiam coisas atrozes e, ao mesmo tempo, se questionavam profundamente, quase com espiritualidade. O rei tem uma reflexão bastante profunda. Quando ele é confrontado ao mal que ele mesmo cometeu, há esse magnífico monólogo de Shakespeare. Se o escutarmos atentamente, não podemos ver o rei simplesmente como o personagem malvado de um melodrama. Vemos um ser humano que tem a lucidez de reconhecer que deseja se arrepender e que construiu uma vida interior que lhe impede totalmente de se arrepender. Isso é muito Dostoievski.

O senhor diz que há o teatro e há Shakespeare, “o milagre”.
Shakespeare é um fenômeno, porque sentimos que ele tem uma abertura e generosidade com o mundo que ultrapassa o ponto de vista que dá a personalidade a um autor. Não é por acaso que, entre todos os grandes autores, Shakespeare seja o mais anônimo deles. Depois de tantos séculos, ninguém conseguiu criar um verdadeiro perfil de Shakespeare, que permanece um desconhecido.

Para o senhor, Shakespeare fazia teatro para um espaço indefinido. O senhor mesmo teria descoberto isso durante sua viagem à África, nas experiências com o carpet show, com um simples tapete como palco.

Shakespeare trabalhou no espaço que lhe era oferecido. Hoje, se você mesmo quiser escrever um roteiro de cinema, será obrigado a levar em consideração o vídeo, a câmera. Não podemos, hoje, criar um filme para a técnica que ainda não foi inventada. Certamente, em 100 anos, o equivalente do cinema será substituído por uma outra forma que não podemos, hoje, conceber os aspectos concretos. Shakespeare não era capaz de conceber o teatro lúdico do século 20, porque ele não tinha modelos. Quando eu lia jornal em papel, não poderia imaginar que um dia poderia ler na Internet. Em Shakespeare havia essa forma de um teatro ao ar livre. Havia um décor fixo, de poucos elementos, e um público em volta. A relação era mantida inteiramente por meio da imaginação. A grande diferença entre esse teatro, o Globe, e o teatro que o sucedeu, dos séculos 17 a grande parte do século 20, é essa ausência de décor. Quando não há décor e as imagens passam pela imaginação, a mudança de imagem tem uma velocidade incrível, ainda mais rápida do que a passagem de uma cena a outra no cinema. As imagens se formam e desaparecem como numa conversa. A reconstrução do Globe, em Londres, foi algo impressionante, mas não é o essencial. Hoje, não temos necessidade de reproduzir esses elementos, mas de reproduzir um espaço sem definição, com o público em volta e em contato, olhando para uma imagem. Quando começamos a fazer o carpet show na África, tínhamos no século 20 as mesmas condições do teatro elisabetano. Quando era o caso de encenar um texto de Shakespeare em Paris, de alguma maneira tentávamos encontrar essa liberdade. O Bouffes du Nord é um teatro no qual a ação é envolvida pelo público. Para A Tempestade, criamos um tapete de areia. Para Hamlet, que não é uma peça que se passa no exterior, mas num ambiente interior, usamos, no começo dos ensaios, um verdadeiro tapete persa. Mas ele já trazia tantas imagens e motivos que em si já criava uma presença, um certo clima para o público. Então, substituímos por um tapete costurado. Importamos um material da Índia que nos possibilitou ter uma só cor, mas de maneira viva, luminosa. Teoricamente, não há nada mais distante entre este tapete e o teatro Globe, mas, no espírito, eles se aproximam.

Sua escolha por um grupo de atores multiétnicos não é um acaso. O senhor disse que a reunião de atores de diferentes culturas provoca a emergência do aspecto mítico da obra.

No primeiro ensaio aberto ao público, Jean-Claude Carrière disse: “O mito na base de Hamlet surge de uma outra forma no momento em que não se está no interior de uma sociedade marcada, definida”. Os atores trazem em si mesmos suas próprias vidas. Se encenamos essa peça somente com atores de uma determinada cultura, ela será marcada por essa cultura. Pela mesma razão, quando fizemos Mahabarata, não queríamos, como estrangeiros, fazer uma falsa Índia. Os indianos têm a sua maneira magnífica de montar o Mahabarata, mas só realmente compreensível para eles. Quando fizemos nossa montagem, havia atores de diferentes nacionalidades, e nos primeiros ensaios cada um, de uma certa maneira, disse: “Mas esse mito pertence a minha própria cultura”. Quando, pouco a pouco, eles assimilaram juntos a história, contaram todos a mesma história. Nesse momento, encontramos a verdadeira raiz de um mito, que é o universal. Quando um grupo de atores internacionais aborda um tema, que tem um mito na sua base, algo se libera. E se Hamlet é a base de um mito, porque um irmão que mata seu irmão é o primeiro mito que existe e a história de um incesto é um segundo mito, as conseqüências são míticas.

O que a neurologia tem em comum com um mito para ter servido de base no seu trabalho teatral, como na peça L’Homme Qui…?

Um ponto comum é que as formas mudam, mas o essencial é a mesma coisa. O inevitável na tragédia grega se chamava destino, a maldição. Hoje dizemos genética, neurônio. É uma maneira de se colocar diante do inevitável. Essa idéia de o indivíduo ter a escolha, o livre-arbítrio – “eu quero”, “pela minha vontade posso ser livre” -, não era aceita pela tragédia antiga. No momento em que entramos no movimento dos neurônios no cérebro, somos obrigados a reconhecer exatamente o mesmo fenômeno. Não importa qual seja a aspiração e a vontade pessoal: há qualquer coisa de fatalidade. E essa fatalidade cria situações que colocam o ser em face do inevitável. O ser diante do inevitável é o tema corrente de Hamlet e das tragédias O modelo está sempre em Shakespeare: encontrar o elo entre o maior e mais profundo aspecto da vida, que é invisível, e a necessidade de explorar isso por meio de formas visíveis. A espiritualidade mais pura, mais alta, é continuamente inseparável dos fatos da vida.

Seu teatro é criado pela intensidade, a energia, o humano. Existiria também uma perspectiva mística?

Não. É preciso ser atento a certas palavras. Hoje, não se pode pronunciar, honestamente, “espiritual”, “sagrado” ou “místico”. São palavras que se tornaram degeneradas. Existem verdades nelas, mas é preciso ir muito longe para apreendê-las. A única pessoa que compreende a palavra “místico” é um místico. E um verdadeiro místico não pode encontrar palavras para aquilo que não tem palavras, nem imagens para o que não tem imagens. Isso é a base de todo misticismo, todo resto é misticismo barato. Insisto no fato de que o teatro deve colocar em jogo as forças da vida, com uma relação entre o mais alto e o mais baixo, e sem ultrapassar sua própria natureza: é uma imitação, não a vida real. A espiritualidade no teatro não é a verdadeira espiritualidade. O ciúme no teatro não é o verdadeiro ciúme. O assassinato no teatro, como Diderot assinalou, não é o verdadeiro assassinato. O teatro dá aos seres humanos formas de compreender melhor e de refletir melhor. Por isso que acho importante, sobretudo nos dias de hoje, que todos aqueles que desgostam do teatro convencional e comercial se dêem conta de que a alternativa não é tentar fazer no teatro uma religião. A religião já está suficientemente degradada nas igrejas e nos templos. Não podemos curar isso fazendo de conta de que o teatro é um templo. Isso é uma pretensão intolerável. Podemos buscar no seio do teatro a idéia da melhor qualidade que um ator pode encontrar em si mesmo, os diretores, sem pensar que se está lá para curar o espectador, para lhe dar lições políticas – mas sim fazer viver as contradições políticas – e nem para levá-lo até onde o misticismo e a religião poderiam levá-lo se ele, realmente, fizesse uma busca interior. Se queremos ultrapassar o teatro convencional, precisamos reconhecer as possibilidades do teatro e permanecer dentro desses limites.

Onde está o limite entre o teatro e, como o senhor diz, o “qualquer coisa” no teatro?

É muito simples. Hoje, no mundo inteiro, vemos um medo terrível em se ter o que chamamos de julgamento de valor. É um medo freqüentemente bem fundamentado. Todas as ditaduras são baseadas numa moralidade artificial que cria um critério. Em contrapartida, é preciso reconhecer que intuitivamente cada ser humano pode sentir a realidade de uma escala de valores. A cada instante de sua vida. Sabemos que, mesmo que se queira, não se pode transformar essa escala de valores numa referência estática. Estamos diante de um mistério. Mas não se trata de um mistério débil e vago. A cada vez que estamos diante da realidade, podemos dizer: “Está bem, não está tão bem, está melhor”, sem fazer nenhuma discussão semântica ou filosófica sobre o que quer dizer. Retornamos ao fato de que não se pode explicar o que quer dizer, mas eu sei, e você sabe também. Como quando você vai ao teatro e vê porcaria. Hoje, há um pintor na Inglaterra que faz quadros com fezes. Antes, houve um que fazia o mesmo com cocô de elefante, e depois passou a fazer com suas próprias fezes. Não há escala de valores. Por trás disso há algo que não se sustenta. Intuitivamente, sem a necessidade de se justificar diante de filósofos, de submeter a comitês, quase todo mundo que vê um quadro de Greco ou de Goya percebe a diferença. O pintor dirá “minha merda é tão brutal e realista quanto esse quadro de Goya”. Intuitivamente sabe-se que não é verdade. Porque um é “uma coisa qualquer” e o outro é “alguma coisa”.

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