“Terceiro turno” na França testa nova frente de esquerda e ameaça a maioria parlamentar de emmanuel Macron

Depois de liderar a união das esquerdas, Jean-Luc Mélenchon (ao centro) almeja maioria que obrigue Macron a nomeá-lo prileiro-ministro. © Yohan Bonnet/AFP

FERNANDO EICHENBERG/ O GLOBO

PARIS – Após sua reeleição à presidência da França, em abril, Emmanuel Macron não revelava maiores preocupações com a renovação de sua maioria parlamentar de governo no pleito legislativo, cujo primeiro turno ocorre neste domingo. Em meio às celebrações da vitória pelo segundo mandato, o presidente não contava com o surgimento da Nupes, sigla para Nova União Popular Ecológica e Social, agrupamento das principais forças de esquerda do país. O novo cenário eleitoral ameaça suas pretensões de governar sem a necessidade de costurar alianças políticas, e apresenta o risco, embora considerado pouco provável, de que se veja obrigado a nomear um primeiro-ministro do campo da oposição, em um sistema de coabitação.

As eleições de hoje, com segundo turno no próximo domingo, definirão, entre o total de 6.293 candidatos, os 577 deputados da Assembleia Nacional, para um mandato de cinco anos. No pleito presidencial, a disputa final confrontou Macron, representando a centro-direita, e Marine Le Pen, da extrema direita da Reunião Nacional (RN). No sufrágio parlamentar, a nova configuração do tabuleiro político colocou na linha de frente os aliados do presidente contra os esquerdistas da Nupes.

Para Macron implementar seu programa de reformas sem depender de coalizões políticas, seu grupo Ensemble! (juntos), constituído do partido presidencial República em Marcha (que será renomeado Renascimento após as eleições) e das siglas de centro-direita MoDem, Agir e Horizons, deverá conquistar a maioria absoluta no Parlamento, correspondente a 289 assentos. Em 2017, impulsionado por sua recente ascensão ao Palácio do Eliseu, o presidente elegeu 313 deputados, formando uma ampla maioria de 360 parlamentares se somados os 47 assentos do MoDem. Mas, como têm assinalado assessores presidenciais, 2022 não é 2017.

‘Tripolarização’

As previsões indicam um escore mais apertado para Macron nestas eleições legislativas. A pedra no meio de seu caminho é a nova aliança esquerdista da Nupes, liderada pela França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon, em conjunto com os partidos ecologista, socialista e comunista. Extremamente divididas no pleito presidencial, as forças de esquerda alcançaram um consenso para afrontarem unidas as urnas no escrutínio para o Parlamento. Para o sociólogo Michel Wieviorka, autor do recém-lançado ensaio “Então, senhor Macron, feliz?” (ed. Rue de Seine), o presidente havia, até aqui, prosperado em cima da decomposição da direita e da esquerda tradicionais e de uma oposição caracterizada pelos extremismos.

­— Foi inesperada essa recomposição da esquerda ­— diz o analista. — É uma aliança puramente eleitoral, em que todos os envolvidos podem sair ganhando. PS, PC e ecologistas, que tiveram desempenhos medíocres nas eleições presidenciais, poderão obter mais assentos do que se fossem concorrer sozinhos. O mesmo para Mélenchon. Uma segunda hipótese é que essa operação possa ser o início da reconstrução de uma nova esquerda, em uma síntese, mesmo que frágil, da ala mais radical com a tendência mais centrista e reformista.

Segundo o historiador Mathias Bernard, da Universidade Clermont Auvergne, a campanha das legislativas confirma a “tripolarização” da paisagem política francesa, escancarada no pleito presidencial, mas com uma pequena inversão de forças. O polo “centrista, liberal e europeu” é encarnado por Macron; o da extrema direita “populista e identitária”, por Marine Le Pen, e o da “esquerda radical”, por Mélenchon.

— Cada uma destas três forças políticas possui entre 25% e 30% dos votos. A novidade é que hoje temos uma esquerda relativamente reagrupada em torno da Nupes, em uma nova oferta política. E o modo de escrutínio das legislativas, majoritário em dois turnos, não favorece o partido de Le Pen. A única vez em que a extrema direita conseguiu constituir um grupo parlamentar (mínimo de 15 deputados) foi em 1986, por meio de eleições proporcionais, com a obtenção de 35 assentos.

Na sua opinião, Macron protelou a entrada em campanha, aproveitando o elã de sua reeleição para alcançar naturalmente a maioria parlamentar, a exemplo do que ocorreu para os presidentes no cargo nas últimas quatro eleições legislativas, e ao mesmo tempo fornecendo o menos possível de ângulos de ataque a seus opositores. O alerta, entretanto, provocou uma mudança de estratégia:

– Face às pesquisas que apontavam uma boa dinâmica da Nupes, ele se conscientizou de que havia um risco de não obter a maioria absoluta na Assembleia Nacional — diz Bernard. — Intensificou a mobilização contra Mélenchon, anunciou a elaboração de um plano sobre o poder aquisitivo e procurou indicar um novo método de governança.

Apelando a De Gaulle

O Executivo prometeu apresentar no próximo dia 29, no Conselho de Ministros, um projeto de lei para melhorar o poder de compra da população, tema que já era predominante no pleito presidencial e se tornou ainda mais na campanha legislativa. Macron anunciou ainda a criação do Conselho Nacional da Refundação (CNR), instância que reunirá “forças políticas, econômicas, sociais e associativas”, além de “cidadãos escolhidos por sorteio”, para lançar novas reformas. A sigla, a mesma do Conselho Nacional da Resistência, criado pelo general de Gaulle, em 1942, para coordenar os movimentos de combate à ocupação nazista durante a Segunda Guerra, não foi escolhida por acaso. “Estamos vivendo em uma época comparável”, justificou o presidente, ao definir o presente como uma “era histórica que requer uma profunda mudança de modelo” e afirmar que os franceses estão “cansados de reformas vindas de cima”.  O Conselho se reunirá pela primeira vez logo após as eleições legislativas.

A iniciativa presidencial não convenceu a oposição, que acusou o novo CNR de concorrer com o Parlamento e servir como “artífice de comunicação” para Macron aparentar que “mudará sua política e sua forma de governar”, nas palavras Le Pen. Para Wieviorka, a proposta do presidente é “surpreendente”:

— De certa maneira, ele continua a dizer que não confia no Parlamento. Na realidade, desenvolve sua visão própria de uma democracia participativa e não representativa. Será ele que escolherá os membros deste Conselho, a agenda, os temas importantes. Permanece um poder centralizador e jacobino, exercido de forma vertical desde o Palácio do Eliseu. Teremos indicações mais precisas de suas intenções quando for debatida a reforma da aposentadoria, anunciada para meados do ano que vem.

Como Mitterrand

Macron e seus ministros passaram a multiplicar os ataques a Nupes na reta final de campanha, alcunhando Mélenchon de “Chávez gaulês”, em alusão ao ex-líder populista venezuelano. O líder da França Insubmissa, por sua vez, usou como slogan um apelo aos franceses para que o elejam “primeiro-ministro” por meio de uma maioria parlamentar do grupo da esquerda. As ambições de Le Pen são mais modestas: eleger um número suficiente de deputados que permita ao seu partido formar um grupo independente na Assembleia. Já para a direita moderada de Os Republicanos, as estimativas apontam uma perda de assentos no Parlamento.

Para Bernard, dificilmente Macron obterá a maioria absoluta, sendo obrigado a fazer concessões aos seus aliados e ao campo da direita para poder aprovar seus projetos de lei, talvez oficializando uma coalizão ou um pacto de governança.

— O risco de coabitação é reduzido, mas a coalizão é uma realidade sem maioria absoluta — diz. — Na sua reeleição em 1988, François Mitterrand obteve uma maioria relativa com o PS e foi obrigado a governar com coalizões parlamentares. Hoje temos uma França socialmente e politicamente fraturada, com três polos sustentados cada um em um terço dos eleitores. Há uma defasagem entre a maioria presidencial e o estado da opinião pública. O sistema político não representa mais a realidade social.

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