Um encontro em Budapeste: Peter Esterházy (1950-2016)

Peter Esterhàzy
Peter Esterházy em nosso encontro em Budapeste ©Fernando Eichenberg

FERNANDO EICHENBERG

PARIS – Em meio aos trágicos atentados de Nice, uma outra morte me pegou de surpresa, em outros lados da Europa, na cidade de Budapeste. Em 14 de julho último, o escritor húngaro Peter Esterházy, 66 anos, sucumbiu a sua luta contra o câncer, combate evocado em seu livro lançado há cerca de um mês, “Diário Íntimo do Pâncreas”. Nos encontramos para uma entrevista na capital húngara no gelado novembro de 2008.

O termômetro registrava temperaturas em torno de -5°C graus, e as calçadas se escondiam sob tapetes de neve. Seu bar preferido, no centro de Budapeste, onde havia sido marcado nosso encontro, estava com as portas cerradas naquele dia, e fomos obrigados a improvisar. Acabamos adentrando um outro local nas proximidades da praça Vörösmarty, no qual havia um animado grupo de música cigana que, visivelmente, não agradou meu entrevistado. “Detesto a música cigana, a primeira vez em que a escutei na vida foi com Günter Grass (1927-2015, escritor alemão prêmio Nobel de Literatura em 1999), pois ele queria absolutamente ouvir”, contou, já assentado à mesa, um tanto a contragosto. E acrescentou, rindo: “Há uns dez anos, sob um pseudônimo, escrevia críticas de gastronomia, foi o apogeu da minha carreira de escritor. Certa vez, após dois anos retornei a um mesmo restaurante, e o primeiro violino que tocava no local veio e me disse: ‘Faz muito tempo, mestre, que o senhor não aparece aqui’”, concluiu, em mais gargalhadas.

Pai delator

Com seus abundantes cabelos e gestual de maestro, ele atraía a atenção pelo entusiasmo ao tratar dos temas mais banais aos mais densos, das letras ao futebol, por vezes entrelaçando os dois com irreverência, ironia ou humor. Constantemente citado na relação dos candidatos ao Nobel de Literatura, Péter Esterhàzy, nascido em 1950, descendente de uma tradicional linhagem da aristocracia do Império Austro-Húngaro, era um dos escritores de seu país mais celebrados internacionalmente, junto com Péter Nádas, Imre Kertész ou György Konrád. O escritor americano John Updike não lhe poupou elogios em um artigo na revista “The New Yorker”: “A prosa de Esterhàzy é nervosa, alusiva, repleta de gírias… É vívida, um crepitar elétrico. As frases são ativas e concretas. Detalhes saltam da escuridão da ambivalência emocional”.

Autor de “Os Verbos Auxiliares do Coração” ou “Uma Mulher” (ambos lançados no Brasil pela ed. Cosac Naify), tem como obra maior de referência da crítica “Harmonia Caelestis” (2000), em que narra a trajetória de sua família, a partir de fatos reais, em forma de um romance de seiscentas páginas. A história debuta com Paul I (1635-1713), primeiro príncipe Esterhàzy de Galántha, e também um músico amador, compositor das 55 cantatas sagradas denominadas Harmonia Caelestis (1711). Mas o personagem principal da trama acaba sendo o pai do escritor, Mátyas Esterházy, a quem admirava e que havia falecido apenas dois anos antes da publicação do livro. Logo depois, no entanto, na continuidade de suas pesquisas nos arquivos da polícia política húngara, descobriu que o pai não permaneceu uma eterna vítima perseguida pelo comunismo instalado no país, mas se tornou um informante do regime ditatorial durante mais de vinte anos, recrutado em 1957 sob o codinome Csanadi. A revelação rendeu a obra “Edição revista” (2002), na qual são reproduzidos trechos dos relatórios transmitidos pelo pai à polícia secreta, intervalados por comentários do filho-escritor sobre a traição paterna.

Futebol

Nosso encontro no bar de estridente trilha sonora cigana ocorreu na mesma viagem em que estive em Budapeste para entrevistar os últimos dois remanescentes da mítica seleção húngara de 1954, Gyula Grosics e Jeno Buzánsky. No cardápio de nossa conversa, não podia faltar seu livro “Viagem ao final dos dezesseis metros” (2006), um belo e singular texto de reflexões pessoais sobre o futebol lançado às vésperas do Mundial na Alemanha, sob encomenda do jornal “Süddeutsche Zeitung”. Amante da bola e ex-jogador de quarta-divisão da Hungria, pela equipe do Csillaghegy – seu irmão, Márton Esterhàzy, chegou a integrar a seleção nacional -, sua temática literária já havia incursionado antes pelos gramados. Seu primeiro livro, “Fansciskó és Pinta” (1976), conta histórias dos irmãos gêmeos de 10 anos de idade, Fancisco e Pinta, adoradores de futebol. Em seu conto intitulado “Grama, lama”, escrito aos 25 anos, o personagem principal imagina ser o ex-craque brasileiro Tostão.

Seu “horizonte espiritual” vai de David Beckham a Honoré de Balzac, de Zinedine Zidane a Gustave Flaubert, do defensor alemão Hans-Georg Schwarzenbeck a Plutarco; e o atacante inglês Wayne Rooney, do Manchester United e da seleção inglesa, é comparado ao poeta Rainer Maria Rilke.

Nossa conversa durou mais de 90 minutos, com direito a prorrogação e pênaltis. Péter Esterházy perdeu todos os guarda-chuvas que um dia possuiu. E se arrependia enormemente de ter recusado o convite de uma nova revista alemã para reuni-lo em uma reportagem de capa com a bela Heidi Klum – na época, ele não tinha ideia de que se tratava da bela top model germânica.

Intraduzível

Quando lhe contei que um conterrâneo seu me dissera que Peter Esterhàzy era um escritor intraduzível, porque em cada frase sua havia uma forte carga de história da Hungria, que somente os húngaros poderiam compreender, ele respondeu: “É verdade que em todos os meus livros há certas coisas só compreensíveis no espírito daqui. Essa observação também vale para obras de autores da América Latina, que pensamos compreender, mas há mil pequenas alusões sobre as quais não temos ideia do que se trata. O interessante não é o que não entendemos, mas como não entendemos. Se não entendemos algo bem, não é grave, pois há sempre uma parte brumosa. Mas se compreendemos mal, caímos num fosso. Na minha opinião, na literatura o mal-entendido é uma forma de compreensão legítima”.

Na hora de nos despedirmos, brinquei dizendo que, em reconhecimento ao tempo que ele me havia dispensado, de nada adiantaria presenteá-lo com um guarda-chuva, nem poderia trazer Heidi Klum de volta, mas fazia questão de lhe enviar de Paris um DVD que possuía com os melhores momentos da carreira de Pelé. Antes de sumir na chuva noturna de Budapeste, ele me disse, sorrindo: “Bom, mas se um dia a Heidi Klum me aparecer com um guarda-chuva, saberei quem foi que me mandou…”.

Já tinha dele o conceito de um escritor de extremo talento, e de nosso encontro ficou a imagem de um ser humano brincalhão e de grande generosidade.

*A entrevista completa pode ser lida no livro “Entre Aspas 2”, o segundo volume de minhas compilações de entrevistas.