FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – O ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian, defendeu a urgência de uma “reinvenção do sistema multilateral”, alvo atual de um ataque “sem precedentes”, para enfrentar os desafios do mundo contemporâneo, seja em relação aos conflitos comerciais ou às ameaças de uma nova corrida armamentista. O chanceler anunciou ainda a primeira reunião da Aliança pelo Multilateralismo, iniciativa lançada pela França e a Alemanha , para o final de setembro, em Nova York, em nível ministerial. Em seu discurso pronunciado na Conferência dos Embaixadores e Embaixadoras franceses, reunidos em Paris, na única vez em que o Brasil foi citado, houve risos na plateia de diplomatas, em um contexto de grave crise diplomática na relação franco-brasileira .
Face à oposição de potências como os Estados Unidos, China e Rússia às organizações e negociações multilaterais, uma posição partilhada pelos líderes populistas e nacionalistas europeus e também pelo governo Jair Bolsonaro, a França, por meio de uma “Europa unida”, ambiciona liderar uma reação, em uma estratégia evidenciada no recente encontro do G7. Diante dos embaixadores franceses, Le Drian foi insistente na questão da defesa do multilateralismo para enfrentar os desafios de hoje:
— O multilateralismo não é um dogma nem uma ideologia, mas um método eficaz e que funciona. Sem o multilateralismo, não haveria o Acordo de Paris, a proibição do uso de armas químicas, a convenção da Unesco sobre a proteção da diversidade cultural e nem o fundo mundial para salvar vidas humanas contra a epidemia da Aids. E poderia continuar a lista — afirmou. — E não há ingenuidades nisso. O multilateralismo não exclui a relação de forças, mas as enquadra em normas de justiça e de direito. Sim, urge reinventar o multilateralismo.
Le Drian disse que, para defender esta “visão de mundo”, será constituído este mês um grupo internacional, em uma ação assumida por Paris e Berlim.
— Vamos lançar este ano, com o ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Heiko Maas, a Aliança pelo Multilateralismo, que se reunirá pela primeira vez no fim de setembro, em Nova York, em nível ministerial. A Aliança tem seu núcleo composto pela França e a Alemanha, que tiveram a iniciativa, mas conta também com países como Japão, Canadá, Chile e ainda outros. Terá uma vocação de portar inciativas na base de coalizões modulares, abertas a parcerias não estatais. Com a Aliança, queremos afirmar que esta maneira de trabalhar juntos vai além de um método de trabalho, é uma escolha política evidente.
Ameaça armamentista
Um dos alvos do “novo multilateralismo” pregado pelo ministro é a ameaça crescente de uma corrida armamentista nuclear. No dia 2 de agosto, os EUA se retiraram do Tratado sobre Armas Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês), firmado com a Rússia e em vigor desde 1988, após ter acusado Moscou de violação dos termos do acordo ao desenvolver o míssil 9M729, que teria alcance de até 4.000 km.
Com isso, os dois países passaram a ficar livres de lançar seus programas de armamentos até então interditados. Além disso, o presidente russo, Vladimir Putin, ameaça com a não renovação do tratado Novo START, assinado em 2010 e com expiração em 2021, que limita o arsenal nuclear dos EUA e da Rússia.
— Devemos fazer com que a competição militar, deflagrada pelas grandes potências acima de nossas cabeças na Europa, se mantenha regulada por instrumentos multilaterais. O fim do INF e o risco de ver o tratado Novo START ter o mesmo destino em 2021 pode nos levar a uma situação de ausência total de regulação da competição nuclear russo-americana como nunca havíamos visto desde os anos 1960. Além disso, a China reivindica o aumento qualitativo e quantitativo de seu arsenal – alertou.
Para Le Drian, este “multilateralismo reinventado” é indispensável para responder aos frequentes problemas no comércio mundial, vide as disputas travadas atualmente entre Washington e Pequim.
— Devemos, sobretudo, agir para preservar a Organização Mundial do Comércio (OMC), que está a alguns meses de uma paralisação de funcionamento. Ou seja, reformá-la. A guerra comercial que se instalou, em uma troca de medidas unilaterais, se estende às áreas tecnológica e monetária. Devemos modernizar o sistema comercial para levar em conta as questões do século XXI, em primeiro lugar a luta contra o aquecimento global e todas as formas de práticas comerciais desleais. Será, sem dúvida, a única maneira de convencer os EUA e a China. Uma solução multilateral dos diferendos comerciais é do interesse de todos.
Aproximação com Moscou
A França pretende promover a inclusão da Rússia no âmbito da Europa e também no novo multilateralismo. Como parte desta estratégia, o chanceler viajará a Moscou “nos próximos dias”, acompanhado da ministra do Exército, Florence Parly, para “começar a evocar o que poderia se tornar uma arquitetura de segurança e de confiança” entre a Rússia e a Europa.
— A Europa unida nunca foi tão necessária e, talvez, nunca tão questionada. Nas eleições europeias de maio passado, evitamos o pior, a onda populista anunciada não ocorreu. Os partidos pró-europeus se mobilizaram e resistiram. Devemos construir uma verdadeira soberania europeia. A Europa é um método face aos desafios de hoje.
A América Latina e o Brasil brilharam por sua ausência no discurso do chanceler francês. Le Drian mencionou o esforço do presidente Emmanuel Macron para obter ajuda internacional para socorrer a Amazônia, atingida pelas queimadas, e citou o Brasil uma vez ao anunciar o projeto francês de ampliar suas parcerias para incrementar o ensino do idioma francês no estrangeiro.
— Já há experiências que foram organizadas em certos países, mesmo no Brasil – disse, provocando risadas na plateia, ciente da atual crise diplomática franco-brasileira. – Fui ao Brasil há alguns dias, e lançamos uma iniciativa com o apadrinhamento de Raí, ex-jogador do PSG, que nos permitirá duplicar em São Paulo o número de alunos que poderemos acolher. É um belo exemplo de que acontece de colocarmos em destaque o valor do Brasil – concluiu, com ironia.