Análise: estrago nas relações entre Brasil e França deve demorar para ser reparado

Macron e Bolsonaro durante a cúpula do G20, em Osaka, no Japão. ©Jacques Witt/AFP

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A crescente escalada verbal entre Brasil e França alcançou um nível inédito na história da relação bilateral, na avaliação de especialistas ouvidos pelo GLOBO. Os recentes comentários do presidente Bolsonaro, via Twitter, e as respostas do líder francês Emmanuel Macron submergiram o diálogo franco-brasileiro às profundezas da diplomacia, um estrago que levará no mínimo meses a ser reparado, segundo analistas, e isso se as devidas medidas forem adotadas para apaziguar as atuais dissensões.

Para Bruno Cautrès, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), Bolsonaro superou o presidente americano, seu mentor em posts polêmicos no Twitter:

— Não estou certo que tenhamos visto algo comparável nas declarações de Trump. Também não penso ter visto algo de tão grave nas relações internacionais como as declarações de Bolsonaro sobre a primeira-dama Brigitte Macron e os recentes incidentes diplomáticos entre Brasil e França. Creio que  é algo bastante inédito na história das relações franco-brasileiras e também nas relações internacionais mais recentes entre países membros do G20, que normalmente são tensas. Será complicado ter uma relação normal entre os dois Executivos nos próximos seis ou oito meses. Estamos em meio a um grave acidente diplomático.

Segundo o analista Christian Lequesne, do Centro de Pesquisas Internacionais (CERI, na sigla em francês), a gota d’água para o presidente francês foi a ofensa pessoal de Bolsonaro a sua mulher, Brigitte Macron:

— Atacar a mulher de um presidente em relação a seu físico faz parte de métodos bastante baixos. Quando se é um líder, não se faz isso, não se ataca a mulher, mas ideias. Isso irritou bastante Macron. Há uma incompatibilidade entre os dois líderes, não há muita estima entre os dois. Mas é preciso que a França mantenha relações com o maior país da América Latina. Há comércio em jogo, e a posição do Brasil no cenário internacional conta. Mas o ataque pessoal de Bolsonaro à mulher de Macron não passou.

No aspecto político, a disputa alimentada pelo fogo na Floresta Amazônica pode ser analisada em um contexto mais amplo, diz Lequesne:

— Politicamente, Macron quer assumir um papel mundial de oposição ao crescimento geral do populismo. Poderia ter tratado os ataques de Bolsonaro com desprezo. Mas, ao dizer que o presidente não está à altura da função, assume o risco de comprometer a relação bilateral. Isso deixa marcas. E será preciso que os diplomatas, dos dois lados, tentem apaziguar a situação.

Para o historiador Maurice Vaïsse, especialista em história da diplomacia, Macron não poderia ter respondido uma palavra menos forte do que “vergonha” em relação aos ataques de Bolsonaro a sua mulher.

— Lamento esta diplomacia que se instala hoje, de declarações trocadas por Twitter, em que, a meu ver, não há ganhos. Mostra uma degradação das relações internacionais. Mas esses ataques pessoais, em particular à esposa, são um desvio inquietante. Evidentemente, é o estado menos zero da diplomacia. Tudo o que se pode esperar é que, com tempo, haja um recuo e que as relações retornem a um estado mais moderado. Mas a prática diplomática moderna, com declarações tonitruantes e tuites, não facilita as relações internacionais. Nesta atual disputa bilateral, a política interna tem uma papel no lado francês, mas também no lado brasileiro.

Cautrès analisa a estratégia de Macron também à luz do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, que é pouco popular entre o público francês.

— Para uma parte da opinião pública, é uma traição de Macron aos seus compromissos ecologistas. Ele rapidamente aproveitou os erros de Bolsonaro para tentar sair dessa armadilha. Por um lado, ele procura explorar este momento para ganhar em credibilidade e em sensibilidade na questão ambiental. E o dossiê da Amazônia é algo que lhe serve para isso.

Diante das provocações de Bolsonaro, era impossível que o presidente francês ficasse sem dar uma “resposta espetacular”:

— Faz parte das relações internacionais. Mas se sabe que França e Brasil não poderão permanecer neste estado diplomático. Forçosamente, haverá muita diplomacia nos próximos meses para tentar acalmar o jogo e encontrar um meio de simbolizar uma nova entente franco-brasileira. Na medida em que se permanecer no campo pessoal será complicado. Para reencontrar o caminho da diplomacia entre Bolsonaro e Macron, certamente levará algum tempo.