FERNANDO EICHENBERG / PARIS
Ao longo de minha carreira jornalística em Paris, entrevistei Jane Birkin três vezes, a primeira em 2009, e a última há pouco menos de quatro anos, em 2019. Neste derradeiro encontro em um uma bela e fria manhã de novembro, ela me recebeu em sua casa, nas proximidades da praça Saint-Sulplice. Na sala de seu aconchegante apartamento, me ofereceu uma taça de chá, que ela mesmo fez, e conversamos pausadamente, enquanto seu inseparável buldogue Dolly dormia, roncando estirado no tapete. O resultado de nosso primeiro encontro, que reproduzo aqui, está publicado no segundo volume de meu livro de entrevistas, “Entre Aspas vol. 2” (ed. L&PM). No final, os links para as duas outras entrevistas — uma em que fala da trágica morte de sua filha, Kate Barry, e outra da publicação de seu diário íntimo — para quem quiser saber sobre essa luminosa, humana e singular artista, que já deixa saudades.
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Jane Birkin chegou sorridente e agitada para o encontro marcado no início da tarde no Hotel Bel-Ami, na rue Saint Benoît, uma pequena via entre os cafés Deux Magots e Flore, no bairro Sant-Germain-des-Près, em Paris. Então aos 62 anos, vestida com um folgado suéter em cashmere e calças cargo, os cabelos curtos e propositalmente despenteados, ela mantém o mesmo sotaque francês de quando desembarcou na França, no final dos anos 1960. Foi a mesma voz, mais jovem, que a alçou à fama ao interpretar em versos de sensualismo explícito e gemidos lúbricos Je t’aime moi non plus, furor erótico de 1969 composto por Serge Gainsbourg, que fez de Jane Birkin sua eterna musa. Censurada pelo Vaticano e em inúmeros países, a canção se consagrou como hit mundial, vendida em um milhão de discos vinil em alguns meses (140 mil no Brasil, até ser interditada pelo governo militar).
Inglesa de nascimento, filha de um pai comandante da Royal Navy e de uma mãe atriz, Jane Birkin começou cedo sua vida artística. Aos 17 anos, debutou nos palcos londrinos em uma peça de Graham Greene. Aos 19, se casou com John Barry, oscarizado compositor britânico, reputado pelas trilhas sonoras dos filmes de James Bond. No cinema, despontou em 1966 no controverso filme cult Blow up (Palma de Ouro do Festival de Cannes 1967), de Michelangelo Antonioni, em que provocou escândalo ao protagonizar uma das pioneiras cenas de nu frontal nas telas.
Em 1968, conheceu, em Paris, Serge Gainsbourg, com quem viveu uma intensa e duradoura relação de 12 anos. Quando os dois se encontraram, Jane Birkin era uma jovem divorciada com uma filha bebê e a carreira ainda incipiente. O poeta maldito e músico irreverente, 40 anos recém-completados e artista confirmado, ainda sofria as dores da ardente e efêmera paixão que vivera com uma Brigitte Bardot no auge de sua fama e forma. Jane aterrissou na França para contracenar com Gainsbourg no filme Slogan, de Pierre Grimblat, em um papel previsto inicialmente para a já consagrada modelo Marisa Berenson. No começo, contrariado, ele não facilitou as coisas para a principiante atriz, mas aos poucos frutificou uma relação que os tornaria um dos casais mais emblemáticos de sua época, onipresente em capas das mais diferentes publicações e símbolo da liberalização moral dos anos 70.
Parceiros no amor, em noitadas mundanas e em projetos artísticos, Jane & Serge partilharam um inusitado cotidiano na célebre morada do número 5bis da rue de Verneuil, no coração da capital francesa, até hoje diariamente fotografada por fãs de todas as partes do mundo. Em meados de setembro de 1980, cansada dos excessos – de álcool e de comportamento – do companheiro, ela deixou o instável ninho familiar junto com as fillhas Kate e Charlotte.
“Foi um amor violento”, definiu mais tarde Gainsbourg. “Eu a perdi por causa de meus abusos”, admitiu. Separados, a forte ligação que os unia perdurou e os dois jamais deixaram de ser amigos. “Considero grandioso o amor que resta depois do amor”, disse ela. Desde a morte dele, em 1991, Jane Birkin mantém acesa a memória musical do grande amor de sua vida ao interpretar e reinventar em discos e shows as mais diferentes canções de Gainsbourg. “Éramos necessários um ao outro”, resumiu.
Adotada pela França, ao longo da carreira, ela atuou em mais de 70 filmes e lançou mais de uma dezena de discos. Mãe de três filhas (a fotógrafa Kate Barry – que se suicidou no final de 2013 -, do casamento com John Barry; a atriz e cantora Charlotte Gainsbourg, de sua relação com Serge Gainsbourg, e a atriz e modelo Lou Doillon, com o cineasta Jacques Doillon), a ex-sex symbol e hoje avó permanece uma artista curiosa e uma militante cada vez mais ativa pelas causas humanitárias, duas vertentes que por vezes se cruzam.
O nome Birkin evoca também a famosa bolsa da marca Hermès, que leva a assinatura de sua criadora. A peça surgiu por acaso no início dos anos 1980, pela coincidência de um encontro com Jean-Louis Dumas, na época diretor da marca de luxo francesa, em um voo Paris-Londres. A bolsa Birkin se tornou uma it bag, acessório obrigatório de celebridades, com vendas no site eBay que superam os 100 mil euros para o modelo de couro de crocodilo e diamantes, e virou inclusive tema do livro Bringing Home the Birkin: My Life in Hot Pursuit of the World’s Most Coveted Handbag (Levando a Birkin para Casa: Minha Vida numa Louca Busca da Bolsa Mais Cobiçada do Mundo, ed. HarperCollins), de Michael Tonello.
No plano artístico, quando nos encontramos ela havia acabado de lançar o álbum Enfants d’hiver, o primeiro em que escreveu todas as letras das canções, em francês. A exceção em inglês do repertório é o título dedicado à birmanesa Aung San Suu Kyi, prêmio Nobel da Paz 1991, então em residência vigiada em seu país, e por quem Jane Birkin se empenhava pela liberação (livre em 2010, foi eleita deputada em 2012).
Constante viajante, apegada ao seu passado mas sem incitar a nostalgia, ela procura existir como uma mulher do presente. Em um momento difícil de sua vida, ouviu de sua mãe, Judy Campbell-Birkin: “Ou você cerra as persianas e não troca mais as lâmpadas, ou sorri e o mundo se abre”. Jane Birkin preferiu a luz à escuridão, o mundo à reclusão, e por onde passa continua a exibir seu sorriso de menina.
No disco Enfants d’hiver você mergulha na sua infância, único período de sua vida que você dizia permanecer ainda “secreta”.
Eu estreei no palco aos 17 anos, me casei aos 19, logo depois veio Blow up, tudo foi muito público na minha vida desde cedo até hoje. Meus amores foram todos visíveis, John Barry ganhou todos esses Oscar, tive minha filha Kate (em 1967), depois veio Serge, Jacques Doillon. É uma vida estranha. Se incentivei Charlotte a fazer seu primeiro filme aos 13 anos, com Catherine Deneuve (Paroles et Musique, de Élie Chouraqui, 1984), e depois um segundo filme com Claude Miller (L’Effrontée, 1985) é porque acho genial estar num filme sendo criança. Depois se pode continuar ou não, mas é algo que marca, essa magia do rosto ainda não maquiado, ser você mesma. Depois disso, você tenta agradar ao seu primeiro marido, ao diretor, ao mundo inteiro. De uma certa forma, você nunca mais é você mesma. E depois nos tornamos novamente quem somos aos 40, 50 anos, quando voltamos a ousar. Foi então que comecei a escrever, a fazer meus outros “filhos”, um disco, um filme, uma peça de teatro. Veja essa menina que está na capa do CD, eu era anônima aos 12 anos de idade, e de uma certa forma sou novamente aos 50, 60. Será possível que alguém o ame não tendo mudado em nada, apenas envelhecido como um pedaço de madeira? Amamos isso nos outros? Os homens são mais belos aos 60 anos, em relação ao que eram aos 50 ou 40 anos. A natureza é feita assim. Talvez porque, apesar de tudo, há uma idéia de procriação. Nós temos muita sorte de lutar contra isso, e de poder estar livres para fazer livros, filmes, discos. E há jovens curiosos em relação a você. As pessoas pensam que à noite eu tenho uma vida mais excitante do que a delas, mas posso assegurar que não. Encontro muitas pessoas interessantes, é verdade, mas não são celebridades. Não tenho nenhum amigo ator, à parte Michel Piccoli. Nenhum amigo cantor, à parte Alain Souchon. Minha grande amiga é Gabrielle, minha amiga de infância, e minhas filhas e meus netos.
Por que você diz que “a infância é como os mortos”?
A morte é um país inacessível. Os mortos para mim se tornaram santos. Eu não me lembro das coisas ruins de Serge, nem sei por que me separei dele. Bani essas coisas do meu pensamento, não estão mais lá, tudo o que havia de ruim desapareceu. Na morte, você é upgraded como num voo, a um estágio inacessível.
Você se considera melancólica?
Eu combato minha melancolia sendo engraçada, muitas pessoas fazem isso. Não gosto de ficar sozinha, e dou um jeito para não estar só. Se me deixam só, vou abaixo. Então faço o contrário, combino um cinema, cuido dos meus netos, tenho meus compromissos profissionais. Sou uma resistente, não vou desistir. Nas minhas canções, tento ser o mais pessoal e honesta possível. Falo da infância até a essas velhas adolescentes que nos tornamos por vezes aos 50, 60 anos. No disco, há Les Enfants d’Hiver, que é a canção mais complicada e para mim a mais bela de todas, que jamais tocará nas rádios, mas poderei cantá-la na turnê. Há as canções de Alain Souchon, mais melancólicas, mas não quer dizer que sejam tristes.
Os homens da sua vida estimularam suas aventuras artísticas. Serge Gainsbourg a incentivou a cantar, Jacques Doillon a filmar, Olivier Rolin a escrever…
Olivier é escritor, foi ele que me disse para escrever sobre os ingleses no Le Nouvel Observateur, eu o fiz, e fui publicada. Foi Jacques que me disse para pegar uma câmera e filmar algo para os 30 anos da Anistia Internacional. Sempre fui incentivada por aqueles que estavam próximos de mim, mas também por outras pessoas mais distantes. Na escrita, foi assim. Não queria escrever uma biografia, é algo que me parece tão difícil de fazer sem ferir as pessoas. Há muitas coisas que outras pessoas desconhecem. Ao ler agora a biografia de Françoise Hardy, muito do que está escrito ali sobre Serge eu não sabia. É um risco. Não gosto dessa idéia de Joann Sfar de fazer agora um filme sobre Serge (Gainsbourg – o homem que amava as mulheres, 2010). Só peço que coloque que se trata de uma fábula, porque não será a história verdadeira. Ele vai fazer o filme, e todo o mundo é livre de fazê-lo, mas não tenho vontade de me envolver nisso. Acho que há formas mais interessantes. Procuro dissuadir as pessoas que querem escrever biografias sobre mim.
Você é inglesa, mas há 40 anos vive na França. Como você se sente em relação a isso? É mais francesa ou inglesa, uma mistura dos dois, uma “cidadã do mundo”?
Não me questiono sobre isso. Mas não me considero “cidadã do mundo”. Tive a chance de viajar a países onde as pessoas vivem com problemas. Isso me interessa nem que seja para dizer: “Nós pensamos em vocês”. É preciso ir, apenas estar lá, como num aniversário ou quando alguém está no hospital. O benefício da idade é que você tem mais tempo, e pode assumir mais riscos também. A coisa mais cara no mundo é o tempo. O tempo que você pode estar com as pessoas é algo de que gosto e que valorizo muito. E a educação é algo muito importante. São necessárias mais pessoas para ensinar, e em classes mais reduzidas, para poder acompanhar as crianças e torná-las curiosas. Levá-las ao museu, deixá-las tocar as obras de arte, levá-las para viajar, para intercâmbios de um trimestre. Eu sou a favor da escola europeia, e penso mais longe, em Istambul, na África do Norte, na América do Sul. Era infinitamente mais perigoso e inseguro de se viver há 100 anos. Temos de ser mais generosos. Há toda uma educação a ser feita. No Brasil, me interessam as escolas abertas, aulas com música, as crianças sentadas no chão, práticas na rua, a generosidade de se fazer pinturas nas paredes, essa vontade de fazer da escola uma aventura. Estar sempre nesse estado acordado.
Você diz viver desde os 12 anos um sentimento constante de culpabilidade. Nessa época você já escrevia sobre isso no seu diário íntimo.
A sensação de culpabilidade é muito forte em mim. Por isso, mesmo que seja cansativo, é muito fácil para mim ir visitar uma pessoa no hospital, atravessar o Canal da Mancha para ir ver alguém, acolher um refugiado, fazer algo pelo outro. Sempre acho que não faço o suficiente. Não sei de onde vem isso, nunca me analisei. Talvez venha da época do internato. A religião é forte para isso, para instalar a culpabilidade.
Você diz também que o estado amoroso lhe dá uma sensação de pânico, por causa do sentimento de terror de poder perder a pessoa amada.
Sim, sempre foi assim. É um sentimento de que não mereço a pessoa. Estar apaixonada é um estado magnífico, formidável, mas também muito angustiante para mim.
O ano de 1991 foi particularmente difícil para você: Serge Gainsbourg morreu e, quatro dias depois, seu pai também faleceu. Você ainda evita ir na casa da rua de Verneuil, que está lá fechada, onde vocês viveram juntos?
Vou com a Charlotte quando é necessário. Recentemente tive de fazer uma lista comentada de objetos da casa, para a grande exposição no Parc La Villette (“Gainsbourg 2008”,na Cité de la Musique). Charlotte era muito pequena quando deixamos a rua de Verneuil, só tinha nove anos, ela não sabia nada sobre os objetos, então tive eu mesma de ir. Eu não sou masoquista. Não vou na rua de Verneuil para chorar pela pessoa que não está mais naquela casa, que não vai aparecer descendo as escadas. E também não é um local que foi só de felicidade para mim. Deixei Serge lá, a vida lá também foi difícil, tenho tendência de esquecer, como quando fugi à noite com as meninas para que ele não batesse nelas. Não era agradável ver Serge sofrer naquela casa, ver que bloquearam o quarto das crianças quando eu parti. A cada vez que vejo aquele muro lembro da dor que ele deve ter sentido na época. Não tenho vontade de ir lá, nem no cemitério. Cada motorista de táxi, cada pessoa que encontro fala e me faz lembrar dele. Se me dissessem que ele poderia retornar, e que eu poderia encontrá-lo a sós, não sei se gostaria. Posso viver sem ele. O que me dá mesmo felicidade é a fila de uma hora e meia de espera para ver a exposição sobre ele. Há jovens de 16 anos, que nunca viram Serge, porque ele morreu há 17 anos. Ele ficaria tão contente com isso que essa felicidade dele, mesmo morto, me faz sentir algo magnífico. Mas não posso retomar o mesmo caminho, não posso ir nos mesmos cafés daquele tempo, nas mesmas boates, nem nos lugares dele ou nos de minha infância. Sou uma pessoa feliz em viajar. Gostaria de pegar o trem mais lento para percorrer a América do Sul e observar a vida das pessoas, ver as pessoas viverem.
Você aprecia viajar. Sua mãe lhe disse certa vez: “Qualquer pessoa é misteriosa carregando uma mala”. Você adorou a definição.
Minha mãe tinha razão! Todo mundo é misterioso com uma mala na mão. Voilà! (risos).
Seu pai lhe apresentou a Anistia Internacional quando você tinha 17 anos. Você diz que se tornou um pouco como a sua mãe, “uma resistente que quer ver as flores nascerem no ano seguinte”. Este seu lado engajado pelas causas humanas e humanitárias vem de seus pais?
Vem dos dois. Minha mãe nunca parou de cantar e atuar na peça de Noël Coward em Londres, durante a Segunda Guerra Mundial. Ela se recusava a ir para os abrigos antiaéreos, porque lhe dava medo, preferia receber uma bomba, então permanecia em cena no teatro. Quando fui a Sarajevo (durante a guerra nos Bálcãs), queria levar coisas para a população, e perguntei para minha mãe o que ela tinha pegado quando o apartamento dela explodiu em Londres, para saber o que as pessoas querem nessas situações. Depois de uma longa reflexão, ela disse: “Perfume”. Eu exclamei: “O que, mamãe? Você pegou perfume?!”. Ela explicou: “Quando não se tem mais nada, pega-se o supérfluo”. Então fui na rua de Passy, aqui em Paris, e comprei lingeries de cetim e de seda, cortei as etiquetas de preço e coloquei dentro da minha mochila umas quarenta peças, todas roupas de baixo, frívolas. No colete que usava, no espaço reservado para as balas, coloquei batons Guerlain. As mulheres gostavam de receber livros e tudo o mais, mas quando viram as cores das sedas foi uma festa.
Como foi que você se aproximou de Aung San Suu Kyi?
um amigo diplomata e professor, e ele me perguntou, já que eu cantaria no Japão para duas mil pessoas, se seria capaz de fazê-lo para 200 crianças na Birmânia. Isto foi há 15 anos. Respondi que sim, mas se pudesse encontrar Aung San Suu Kyi. Como era um país militar, falei que não queria ser presa nem usada pelos militares, pois poderiam divulgar fotos, dizer que fiz o show para o governo etc. O show foi marcado para a Aliança Francesa, e no último minuto, sem que as autoridades soubessem – pois havia espiões por todo o lado -, mudamos o local para um velho cinema, proibimos fotos e vídeos, e vi essas crianças que haviam aprendido todas as canções de Gainsbourg durante um ano. Eram capazes de recitar Homme à la tête de chou, incrível o trabalho feito com elas por esse professor. Fiz o show com um pianista inocente e gentil, Patrick Morenteller, eu achei que ele não sabia nada sobre a Birmânia. Mas ele suspeitava, com razão, e no nosso hotel ele colocou uma marca em nossas malas para ver se haviam sido movidas na nossa ausência, e foi o que ocorreu. Ele viu alguém na janela nos filmando. O clima não era muito seguro. Fiz o show, sem bis, e às 6h da manhã estava nos orfanatos. Havia levado instrumentos de música, bolas de futebol, fiquei duas horas com as crianças. Fui até a embaixada da França, e lá encontrei Aung San Suu Kyi durante uma hora. Perguntei o que ela gostaria que eu fizesse. Ela pediu que lutasse para que o comércio com a Birmânia fosse suspenso, e para que um preso político detido desde 1988 fosse liberado. Ela me explicou, por exemplo, que era livre para fazer suas compras, mas que não era nada agradável saber que os comerciantes que lhe haviam vendido suprimentos eram depois torturados em interrogatório, para saber o que ela lhes havia dito.
O que aconteceu depois?
Voltei para a França e imediatamente denunciei o que se passava na Birmânia. Como na Alemanha Oriental, havia delação por todo o lado, os motoristas de táxi denunciavam todo mundo. Fizemos passeatas contra a Total, que subvenciona o regime. Eles mantêm orfanatos, é verdade, eu vi, mas as crianças permanecem encerradas dos dois aos 14 anos, e depois são enviadas para o Exército. Houve depois a revolta dos monges e dos estudantes. Mostravam sem parar na tevê. Eu soube nesse meio tempo que Aung San Suu Kyi estava doente, seu médico não tinha mais permissão de vê-la, e não havia mais eletricidade em sua casa. Quando recebi o sms dizendo que ela estava doente, vomitei. Depois, houve o tsunami. Fui confabular com Médicos do Mundo e Médicos Sem Fronteiras e outras ONGs para tentar fazer com que não se levasse um grande barco com a ajuda humanitária, pois o regime não deixaria entrar. O que se deveia fazer era largar os pacotes de avião, sobre uma planície. Eles enviaram um grande navio de guerra com os víveres, mas de nada adiantou, esse regime é imundo. Depois do tsunami, eles passaram uma lei proibindo qualquer pessoa casada com um estrangeiro de ter um cargo no governo, assim descartaram Aung San Suu Kyi de um dia se tornar presidente. É um país que é encruzilhada da droga, é o maior país da Aids, os generais são riquíssimos, há 70 mil crianças-soldados e dez em cada 100 crianças não vivem até os 5 anos.
Você lamentou que a causa de Aung San Suu Kyi não mobilizou tanto as autoridades e a opinião pública quanto a luta pela liberação da franco-colombiana Ingrid Betancourt, à qual também aderiu.
Também lutei por ela. E a cada entrevista que dava por Ingrid, dava outra por Aung San Suu Kyi, mas a mídia não se interessava. O prefeito de Paris poderia ter colocado na fachada da Prefeitura, ao lado do cartaz de Ingrid Betancourt, um outro de Aung San Suu Kyi, pois são duas mulheres impecáveis, duas pacifistas. Não fui ao Palácio do Eliseu quando Ingrid foi liberada, porque tudo tomou uma proporção enorme, não queria me misturar a isso. E sei bem como é o poder, eu o conheci com François Mitterrand (presidente da França entre 1981-1995). É tudo muito sedutor, mas não quero mais fazer parte desta grande família.
Como foi sua relação com Mitterrand?
Convivi muito com ele, era um homem extremamente divertido, instruído. Deu a Legião de Honra para o meu pai, porque durante a Segunda Guerra Mundial ele ajudava as pessoas em Brest a escapar. Mitterrand era uma companhia divertida, eu podia chegar de jeans e fazê-lo rir. Mas, aos poucos, as coisas mudaram. Na guerra da Iugoslávia, perguntei por que ele não intervinha, e ele disse porque havia montanhas, era impossível invadir. Mais tarde, eu mesma passei por essas montanhas durante o sítio a Sarajevo, havia snipers, nacionalistas sérvios, e durante quatro anos a população da cidade morria sem eletricidade e gás diante da indiferença total. Isso porque os ingleses e franceses decidiram que os sérvios tinham sido seus aliados na última guerra.
A bolsa que você desenhou para a marca Hermès se tornou objeto de desejo e hoje, inclusive, também contribui para seus projetos de ajuda humanitária. Você estava num voo Paris-Londres, em 1981, ao lado do então presidente da Hermès, Jean-Louis Dumas (1938-2010), que a desafiou a desenhar uma bolsa.
Desenhei um modelo de bolsa para mim, no avião. Depois eles fizeram um modelo em papelão, fiz algumas modificações, e era uma bolsa para uso pessoal, para mim, ia pagar e tudo. Mas o Monsieur Dumas, que era muito chique, achou bonita a bolsa e perguntou se poderia comercializá-la, disse que todo o mundo iria querer a minha bolsa. Eu concordei. Ele quis batizar o modelo com o meu nome. Eu me senti extremamente lisonjeada, até porque a única outra bolsa da marca com esse privilégio era a Kelly. Estar junto com Grace Kelly era extremamente chique. Eu ia aos Estados Unidos, ao Japão e as pessoas só falavam da bolsa, queriam posar para fotos com a bolsa ao meu lado. Depois vi que a Sharon Stone havia desenhado também uma bolsa, para a Louis Vuitton, por um contrato de um ano, com fundos revertidos para uma boa causa. Eu disse a mim mesma: “Mas como fui idiota”. Se eu tivesse ganho 1% das vendas dessa bolsa poderia ter construído um hospital. Eu telefonei ao meu agente para que ele tentasse um acordo semelhante com a Hermès, para que eles destinassem uma porcentagem a uma causa diferente a cada ano. Fizemos um contrato, e já foram destinados recursos para a Handicap International, para as causas da Chechênia e da Birmânia, para a Federação Internacional dos Direitos Humanos. Em 2008, o dinheiro foi para a Irmã Emmanuelle e para o combate à Aids, na África. Em 2009, será para outra coisa. Pedi que duplicassem o valor, e eles concordaram.
Sua filha Charlotte disse uma vez sobre seu novo corte de cabelo: “Mamãe, seu penteado é um sorriso!”. Qual é sua relação com a moda?
Eu visto exatamente o que quero. Evito vestir roupas fabricadas na China. Mas é bastante difícil, pois mesmo os jeans Gap são, hoje, feitos na China. Eu uso as coisas mais velhas possíveis. Esse suéter, por exemplo, é Brora, da Inglaterra, eles fazem roupas com material da Escócia. Comprei também para os meus sobrinhos meias desta marca, porque elas são engraçadas. Mas meus casacos têm trinta anos. Meu impermeável tem vinte anos. Estou vestindo também uma peça Dries (Van Noten), de uns quatro anos. Gosto dos blusões do meu pai, do meu irmão. Meu sonho é poder entrar num vestido da minha mãe, mas ainda não sou suficientemente esbelta (risos).
Como você conviveu com o fato de ter sido por muito tempo considerada ícone de beleza?
Não era difícil para mim, porque antes de tudo não me considerava bonita. Bonita, sim, mas bela, não. Minha mãe, sim, era bela de verdade. Quando perguntei à mamãe como é envelhecer, se lhe dava medo, ela disse que era estranho entrar num lugar e as pessoas não pararem de comentar. Ela era tão bela que quando adentrava uma sala, as pessoas paravam de falar com seus cálices de champanhe na mão. E aos 80 anos de idade, ela exclamou certa vez na minha casa: “Eu perdi!”. Perguntei: “O que, mamãe, seus óculos, sua bolsa?”. Ela respondeu: “Não, perdi minha beleza, ela se foi hoje”. Mas ela tinha uma beleza muito mais interessante, que era a curiosidade por tudo. Todos os meus amigos a queriam como mãe ou como avó. Ela sempre foi a referência para as minhas filhas, referência de teatro, de fashion, de savoir-vivre. De tudo.