Revolução do Clitóris: francesas lançam livros, campanhas e websérie para desmistificar e democratizar os poderes do órgão sexual feminino

Julia Pietri: livro e campanha para lutar contra a “excisão mental” do clitóris. © Fernando Eichenberg

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Quando decidiu financiar a publicação de seu manual sobre a masturbação feminina via uma campanha de crowfunding na Internet, a francesa Julia Pietri colocou como meta o custeio de 100 exemplares, esperando alcançar, em suas previsões mais otimistas, um máximo de 500 pedidos. Em um mês, a pré-venda fechou em um total de 3.282 unidades. No final, “Au bout des doigts – le petit guide de la masturbation féminine” (Na ponta dos dedos – o pequeno guia da masturbação feminina) será impresso em 4.000 exemplares e distribuído neste mês aos primeiros compradores, impulsionado pelo slogan “Declaremos aberta a revolução do clitóris!”.

Além de um manual prático, o livro é um embate político contra o “analfabetismo sexual” e o desconhecimento feminino sobre a própria sexualidade, atacando mitos afirmados sobre o orgasmo vaginal ou o Ponto G – na realidade uma “Zona G”. Com preocupações similares, Elvire Duvelle-Charles e Sarah Constantin criaram o perfil Instagram “Clit Revolution” (@clitrevolution) e lançaram uma websérie documentária homônima, de nove episódios, na qual viajam pelo planeta para encontrar mulheres que, de diferentes maneiras, atuam pelo empoderamento sexual feminino.

Sarah e Elvire: websérie para encontrar mulheres que reivindicam o empoderamento feminino pela sexualidade. ©Reprodução

Antes de optar pela publicação independente, Julia recusou as propostas de duas editoras. A primeira delas rejeitava usar cores nas ilustrações, invocando o alto custo orçamentário. Para a autora, representar o clitóris em preto e branco era uma alternativa politicamente impensável. A segunda – uma grande editora, diz ela -, igualmente se entusiasmou pelo projeto, mas refutava incluir “masturbação” no título, argumentando que a palavra, foneticamente inadequada por possuir “muitas consoantes”, “assustaria” o público, e propôs a substituição por “prazer feminino”.

– Respondi que meu livro não era sobre chocolate – conta ela.

Julia confessa seu próprio espanto ao se dar conta de que a “redescoberta” da real anatomia do clitóris, como suas partes interna e externa, ocorreu em 1998, pelos trabalhos científicos da urologista australiana Helen O’Connell.

– Foi um choque para mim. Temos a nanotecnologia, há planos de viagens à Marte, e não existem pesquisas sobre um órgão presente em metade da população. Se vai novamente atentar para o clitóris somente em 1998, mesmo ano em que começa a ser comercializado o Viagra, revelador de um interesse muito maior pelo problema erétil dos homens. Por outro lado, há pesquisas sobre como fazer filhos, o útero, as trompas etc.

Guia escrito por Julia superou as expectativas de encomendas. ©Reprodução

Seu guia da masturbação dispensa a palavra de experts e se sustenta no depoimento de mulheres. Ela criou um perfil Instagram, “Gang du Clito” (@gangduclito), para colher testemunhos de “qualquer pessoa dotada de um clitóris”, sem limitações de idade ou orientação sexual. Sua ideia primeira de conteúdo acabou alterada pelo sucesso da iniciativa:

– Comecei escrevendo o livro a partir de minhas próprias descobertas e reflexões. Tenho 32 anos, sou francesa, branca, heterossexual, forçosamente minha condição coloca um prisma. Quando lancei a pesquisa no Instagram, recebi 6 mil testemunhos em apenas um mês, e foi um outro mundo que se abriu. Houve depoimentos de pessoas com filhos, que falavam da masturbação após a gravidez. Até que idade se masturba? Como é masturbação quando não se é heterossexual? Tive muitas questões sobre a transsexualidade. Na diversidade de experiências, nos damos conta de que não há uma regra de ouro e que somos todas diferentes. Por outro lado, isso ajuda também a acabar com complexos, porque frequentemente pensamos que somos as únicas a sentir de determinada maneira.

Cartazes da campanha idealizada por Julia Pietri. © Reprodução

No último 8 de março, Dia Internacional da Mulher, Paris e outras cidades do mundo amanheceram com coloridos cartazes ilustrados pela anatomia do clitóris, como parte da campanha “It’s not a pretzel” (Não é um pretzel), idealizada por Julia para democratizar o ignorado órgão feminino do prazer. Imagens disponibilizadas por ela podiam ser impressas por quem desejasse usar para colar nos muros. Ela se disse surpreendida ao sair à rua certa vez, cartaz a mão, para testar o conhecimento dos passantes. Ninguém, mulher, homem, pessoas mais jovens ou de mais idade, soube identificar o desenho como um clitóris. Arriscava-se “micróbio”, “amígdalas”, o que era, diz ela, “engraçado e ao mesmo tempo triste”. A campanha teve um forte impacto entre os estudantes colegiais, com cerca de 100 mil cartazes impressos, segundo suas estimativas, e adeptos na Espanha, Itália, Inglaterra, Alemanha, Brasil, Chile, México, Austrália ou Índia.

– Há milênios, surgiu a prática da excisão. O clitóris foi utilizado como uma arma contra as mulheres, para mutilá-las e escravizá-las. E em 2019, se faz como se não existisse. Houve uma excisão mental. Hoje, deve-se utilizá-lo como uma instrumento de emancipação, para que digamos que temos o direito de gozar e de nos reapropriarmos de nosso corpo. É um órgão erétil, erógeno, que funciona como um pênis. Não existe um prazer masculino predominante, pulsante, e um feminino cerebral, complicado. É importante na construção de homens e mulheres afirmar que não há um sexo passivo e outro ativo, o que está na base da cultura do estupro – sustenta.

Junto com outras associações, Julia se empenha ainda em incluir a representação anatômica do clitóris nos manuais escolares de Ciências da Vida e da Terra (SVT, na sigla em francês). Hoje, apenas um dos oito existentes ilustram corretamente o órgão feminino, os demais ignoram ou o fazem de forma equivocada. Uma petição foi lançada para corroborar a reivindicação, e um encontro com os ministros da Educação e da Igualdade entre Homens e Mulheres deve ser em breve agendado.

– Meninos e meninas devem poder aprender na escola estas noções exatas de anatomia. Não me ensinaram que eu tinha um clitóris. Muitos homens também seguem meu Instagram e se interessam pela questão, o que deveria ser normal. Os homens que amam as mulheres querem compreendê-las e saber como funcionam. Para mim, o feminismo é para todo mundo. É junto que faremos avançar.

A “Vênus de Urbino”, do pintor italiano Ticiano (1488-1576). © Reprodução

Para ela, “a mulher que se masturba e se dá prazer sem se culpabilizar é uma mulher livre”. A História, no entanto, não colaborou para essa liberação, ao contrário, colocou empecilhos.

– A última vez em que se falou mais do clitóris foi na Renascença. Se pensava que o órgão tinha um uma função na reprodução. O quadro “Vênus de Urbino” (1538), de Ticiano, que mostra uma mulher estendida se acariciando, é um dos mais copiados da época. Era comum colocá-lo no salão, como bom presságio para se ter filhos. O declínio ocorreu quando se descobriu o espermatozoide e o óvulo, e que o clitóris não servia na procriação. Se dizia que a masturbação atraía a peste ou deixava surdo. No início do século 20, Freud produziu fake news ao hierarquizar os orgasmos vaginal e clitoriano, dizendo que o primeiro pertencia à “verdadeira mulher” e o segundo era imaturo. Toda nossa época foi assim: você é vaginal ou clitoriana? Isso complexou as mulheres, que mentiam afirmando que haviam tido orgasmos vaginais para parecerem “normais”. Como o clitóris só serve ao prazer, caiu no esquecimento, e hoje é importante reequilibrar tudo isso.

Sarah e Elvire com o clitóris gigante criado pela artista americana Sophie Wallace (à dir. na foto), diante da Trump Tower, em Nova York. ©Reprodução

A série “Clit Revolution”, de Elvire et Sarah, também sofreu recusas até ser acolhida pela FranceTV Slash, canal web da rede pública France Télévisions. As razões? Era um programa reservado a um “nicho” e o termo “clit” era “muito violento”.

– Nicho? Mas o programa diz respeito, pelo menos, à metade da humanidade – contesta Sarah. – E por que falar de um órgão do corpo humano seria “violento”. Falar de sexualidade feminina é ainda considerado algo impuro. Já em relação à sexualidade dos homens, faz parte do cotidiano. Se não fossem as mudanças provocadas pelo movimento #MeToo, acho que não teríamos conseguido viabilizar o programa. E é uma consagração estarmos em um canal público com um tema desses. A sexualidade não se resume à penetração, não termina quando o homem goza, é preciso rever todo o paradigma e o imaginário do que é uma relação sexual. Penso que os homens também têm tudo a ganhar explorando outras formas de sexualidade, além da normalidade heterossexual e mainstream. Essa pressão da performance é o horror para os homens. Pode-se fazer amor sem que o homem esteja em ereção. É toda uma reconstrução social que deve ser feita, e que vai servir homens e mulheres.

A ideia de realizar a série nasceu após a repercussão da paródia criada a partir do clipe “Saint-Valentin”, do célebre cantor de rap francês Orelsan, absolvido pela Justiça das acusações movidas por associações feministas por “injúrias sexistas”. Em seu vídeo, a dupla feminista trocou a frase original “chupa meu pau em Saint-Valentin” por “chupa meu clit”. Divulgado na simbólica data de 8 de março, o clipe foi suprimido pelo Youtube após 36 horas no ar.

– Nesta hora, nos demos conta de que realmente havia um problema – diz Elvire. – Pensávamos que não havia este tipo de conteúdo porque as mulheres não gostavam de falar de sua sexualidade. Mas, na verdade, é porque, quando falam, é censurado. Antes, tínhamos dificuldade em fazer a ligação intelectual entre o feminismo e a sexualidade no sentido de prazer. Quando se tratava do direito ao aborto e à contracepção, entendíamos, mas ao abordar o direito ao orgasmo e sentimento de se sentir realizada em sua sexualidade e bem com seu corpo, não. Nos demos conta de que nossos ideais não era aplicados em nossa vida íntima e de que havia uma enorme desconhecimento. Trabalhamos há dois anos na série, aprendemos muita coisa e continuamos a aprender.

As jovens quenianas do Team Restorers , que combatem a prática da excisão do clitóris. ©Reprodução/Facebook

O programa mescla informação histórica, científica, entrevistas, performances e pitadas de humor. O roteiro globetrotter inclui viagens aos Estados Unidos, Inglaterra, Irlanda, Japão, Quênia, Marrocos, Chile e na própria França. Entre as personagens, há a artista americana Sophie Wallace e seu projeto “Cliteracy”; a feminista marroquina Betty Lachgar, do Movimento Alternativo pelas Liberdades Individuais (MALI); a atriz britânica pornô e body positive Heidi Switch; a ativista chilena Cheril Linnet, a diretora francesa de pornô feminista Olympe de G. ou as jovens quenianas Team Restorers, do aplicativo ICut, contra a excisão.

– Em Nova York, levamos um clitóris dourado gigante, feito pela Sophie Wallace, até a Trump Tower – conta Elvire. – Mas as quenianas foram as que mais nos emocionaram. Quando tinham 15 ou 16 anos, criaram um aplicativo contra a excisão. São jovens, hoje com 17 ou 18 anos, que querem mudar o mundo.

Suas ambições extrapolam a realização de uma série web. Almejam “federar uma verdadeira comunidade internacional de mulheres” que lutam por seus direitos, por uma maior visibilidade do clitóris e pelo prazer feminino. “Gozar de seu corpo é gozar de seus direitos”, proclamam.

– Penso que os homens compreenderam isso há milênios, e nós estamos ainda balbuciando – avalia Sarah. – E não queremos que sejam temas debatidos apenas na esfera feminista e feminina. Fico feliz que seja você, um homem, me entrevistando. Evidentemente que é preciso espaços para que as mulheres possam se exprimir entre elas. As mulheres devem ser mestres de suas revoluções, escolhas e carreiras, mas não em oposição aos homens. Ao contrário, os aliados são bem-vindos.

Para Julia, Sarah e Elvire, não há dúvida, a revolução do clitóris está em marcha.

  • TEXTO PUBLICADO NA REVISTA ELA,  EM “O GLOBO”.