Primavera de Praga: conformismo foi a pior herança da invasão soviética, diz cientista político tcheco

Miroslav Novak: “‘O país, que antes resistia, se acomodou. A partir de 1972, tornou-se um dos mais opressivos da Europa, um dos mais duros. Foi traumático. As pessoas que resistiam pacificamente em 1968, se resignaram”. @ Josef Koudelka/Magnum

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Há 50 anos, às 23h de 20 de agosto de 1968, tanques da União Soviética e de mais quatro países do Pacto de Varsóvia cruzaram a fronteira da então Tchecoslováquia para reprimir a onda de liberalização conhecida como Primavera de Praga. Desde janeiro, quando Alexander Dubcek assumiu o comando do Partido Comunista, o país vivenciou um clamor por reformas econômicas e maiores liberdades sociais e individuais, propaladas como um “socialismo de rosto humano”. A invasão soviética enterrou o sonho de uma sociedade comunista democrática e acabou com as ambições imediatas de maior autonomia em relação à Moscou. Em 1989, a chamada Revolução de Veludo pôs fim ao domínio do PC e, em 1993, tchecos e eslovacos desfizeram a federação, formando países separados. No entanto, para o tcheco Miroslav Novak, do Instituto de Estudos Políticos Cevro, que em breve lançará o ensaio “Primavera de Praga 1968: uma revolução interrompida?”, as marcas desses acontecimentos continuam presentes na mentalidade dos dois países.

Hoje, passados 50 anos, qual sua análise da Primavera de Praga e da invasão soviética?

Foi um acontecimento significativo do século 20, que de uma certa forma encerra uma época. Após a Primavera de Praga, não se busca mais o comunismo democrático. É o fim definitivo desta ilusão. Para a Tchecoslováquia significa, infelizmente, uma tragédia, porque a normalização progressiva que se seguiu foi um período sufocante, com consequências vistas até hoje. Ainda assim serviu a algo, pois após 1989 não se buscava mais um comunismo liberal, mas simplesmente a democracia.

O “socialismo com rosto humano” pregado por Alexander Dubcek era viável ou o comunismo era irreformável?

É preciso definir o sentido de reforma. Se significa mudanças parciais, que não questionam o regime comunista em si, é possível. Mas se entendemos por reforma um comunismo liberal, não. O comunismo ainda existe na Ásia e, em menor grau, em Cuba. Se olharmos as experiências comunistas de forma global, há nuances não negligenciáveis. Há totalitarismos dementes, como na China de Mao Tsé-Tung, na URSS de Stálin e, hoje, na Coreia do Norte. E havia o que se chamava de “comunismo goulash”, na Hungria, mais moderado, mas uma moderação surgida após a sangrenta repressão da Revolução Húngara de 1956. Na Thecoslováquia ocorreu uma invasão militar, sem resistência, não uma guerra. Os húngaros se contentaram de uma melhora parcial do regime, pois tinham a lembrança do terror que foi sua derrota.

O que explica a falta de resistência à invasão por parte dos tchecos?

Mirioslav Novak

A invasão poderia ser evitada. O general soviético Piotr Grigorenko, que depois se tornou dissidente, contou em detalhes em suas memórias sobre uma carta que escreveu para Dubcek, na qual explicava porque a Tchecoslováquia poderia muito facilmente se defender contra um ataque militar surpresa. Obviamente que, numa guerra, o país não teria nenhuma chance contra a URSS. Mas Dubcek não acreditava nas informações de inteligência que recebia sobre os preparativos da invasão. Existe a transcrição de uma conversa telefônica do 13 agosto entre Dubcek e o líder soviético, Leonid, Brejnev, que durou uma hora e quinze minutos. Ele conhecia pessoalmente Brejnev, e não acreditava que ele poderia lhe fazer isso. A decisão da invasão feita pelo Politburo soviético, encabeçado por Brejnev, foi tomada apenas três dias antes, no 17 de agosto. Mas foi algo preparado com meses de antecedência. Os soviéticos haviam solicitado ao governo de Praga permissão para fazer exercícios militares em território tcheco. Foi um enorme error deixarem fazê-lo, pois eles se aproveitaram disso para preparar minuciosamente a invasão. E no dia 18 de agosto, houve uma reunião dos PCs da URSS, da Alemanha Oriental, da Polônia, da Hungria e da Bulgária, todos estes países participaram da invasão militar na Tchecoslováquia. O caso particular é o da Alemanha Oriental. O país tcheco já havia sido invadido militarmente pelos alemães em 1939, e por isso Brejnev, que não era estúpido, decidiu que a participação da Alemanha Oriental seria bastante marginal. Uma presença maior despertaria as desagradáveis recordações da invasão de 1939. Albânia e Romênia não participaram da intervenção soviética. Aliás, a Albânia saiu do Pacto de Varsóvia em 1968.

A Primavera de Praga ajudou a pavimentar o caminho para as reformas de Mikhail Gorbachev e os acontecimentos de 1989, como a queda do Muro de Berlim e a Revolução de Veludo?

Existem similaridades entre a Primavera de Praga e o reformismo de Mikhail Gorbachev na URSS, mas há, sobretudo, diferenças. A experiência de Gorbachev foi a de buscar uma outra alternativa, num período em que não se acreditava mais no bom comunismo. É preciso lembrar que a invasão soviética da Tchecoslováquia foi bem-sucedida. Moscou deixou no poder os principais dirigentes, incluindoe Dubcek. E após essa experiência de sucesso, a URSS fez diferentes intervenções militares nos anos 1970, como na Etiópia e no Iêmen. A última delas, no Afeganistão, foi a única que malogrou. Pode-se dizer que o sucesso da invasão da Tchecoslováquia encorajou os soviéticos. E o fracasso no Afeganistão foi um dos elementos que contribuíram para uma nova reflexão e uma mudança de política na URSS. Por outro lado, a Primavera de Praga e a invasão soviética ajudaram os acontecimentos que levaram à queda do Muro de Berlim, pois os países passaram a ter menos ilusões em relação à URSS.

Sabe-se que alguns dos protagonistas do movimento tcheco de 1968 eram ligados a Mikhail Gorbachev.

É verdade. Zdenek Mlynar, por exemplo, uma das personalidades da Primavera de Praga, era um discípulo de Gorbachev, e os dois permaneceram em contato. Publicaram, inclusive, um livro juntos (“Conversations with Gorbachev – On Perestroika, the Prague Spring, and the Crossroads of Socialism”, 1993). Quando Mlynar morreu (em 1997), Gorbachev veio a Praga para assistir aos funerais. Mas após 1989, Mylnar não teve nenhum papel importante, pois era considerado, talvez um pouco injustamente, como um homem do passado.

Qual a influência de 1968 na derrocada dos PCs ocidentais e do Leste europeu?

A Primavera de Praga teve certa influência no eurocomunismo. Os grandes partidos comunistas ocidentais, o italiano e o espanhol principalmente, se distanciaram em parte da URSS também por causa disso. São partidos que evoluíram. Hoje na Itália, por exemplo, o principal partido pós-comunista é democrático. Existem ainda pequenos partidos comunistas fundamentalistas na Itália, mas que não possuem um papel importante.

As tentativas de comparações e analogias entre Maio de 68 na França e a Primavera de Praga são pertinentes?

Há poucas semelhanças. Na Tchecoslováquia havia também uma juventude que se revoltou, mas era diferente. Na Tchecoslováquia se aspirava à democracia, e Maio de 1968 na França foi um tipo de mística revolucionária.

Como estes acontecimentos são percebidos, hoje, na República Tcheca?

As tentativas de um “socialismo de rosto humano” fazem parte do passado. As ilusões com o comunismo acabaram na verdadeira face mostrada pela URSS por meio da invasão. Para os jovens de hoje, tratam-se de acontecimentos da Antiguidade. O que mais lamento é a dita normalização, que ocorreu ao longo do tempo passada a invasão, e que teve, infelizmente, consequências de longo prazo.

Que consequências?

O país, que antes resistia, se acomodou. A partir de 1972, a Tchecoslováquia se tornou um dos países mais opressivos da Europa, um dos mais duros. Foi uma experiência traumática. As pessoas que resistiam pacificamente em 1968, se resignaram, e muitas se tornaram colaboracionistas.

Qual a relação histórica entre a Primavera de Praga e a divisão do país em dois, em 1993, com o ressurgimento da Eslováquia indenpendente? A federalização imposta pela URSS, em 1969, teve um papel neste processo?

A federalização havia sido decidida antes da invasão soviética, mas foi aplicada depois. É verdade que os soviéticos impediram a democratização, mas não a federalização da Tchecoslováquia. Entre os colaboradores soviéticos no seio do PC tcheco, havia eslovacos, principalmente Gustav Husak, que durante a Primavera de Praga foi considerado como um liberal, mas que foi contra o congresso extraordinário do PC tcheco organizado em 22 de agosto, um dia após a invasão, de tendência mais democrática. Foi um congresso realizado sob a ocupação, numa grande fábrica de Praga. Havia poucos eslovacos, o que foi criticado por Husak, e os soviéticos se aproveitaram disso. E Gustav Husak sucedeu Dubcek no poder. Não há uma ligação direta, mas uma lógica na separação dos dois países. Nos momentos críticos, os eslovacos agiam por eles mesmo. Em 1939, quando os nazistas ocuparam a Techoslováquia, os eslovacos já estavam separados. A Eslováquia se tornou um país vassalo da Alemanha nazista. Depois da liberação, em 1945, os eslovacos foram reintegrados à Tchecoslováquia. Já em 1968, tudo começou pelo conflito entre um dirigente comunista tcheco, Antonin Novotny, e um eslovaco, seu sucessor, Alexander Dubcek. No final de 1967, o primeiro acusou o segundo de “nacionalista burguês”. Depois de 1989, os eslovacos manifestaram seu desejo de se separar. Foi um processo, os eslovacos sempre tiveram um papel na história da Tchecoslováquia, principalmente nos momentos críticos.

Como o PC tcheco, integrante da atual coalizão de governo na República Tcheca, vê o episódio?

O PC tcheco não é negligenciável, possui em torno de 10% dos votos. Eles argumentam que a invasão soviética na Tchecoslováquia fazia parte do conflito Leste-Oeste. São idiotices, evidentemente.

O atual premier Andrej Babis, suspeito de participar da polícia secreta comunista, é alcunhado de “Trump tcheco”. O senhor concorda?

É um personagem controvertido. É o segundo homem mais rico da República Tcheca, tem um império agroalimentar. É acusado pela Justiça tcheca de fraude para obter subvenções europeias. Fundou um movimento, ANO, que significa “sim”, sustentado na crítica da corrupção. Não se deve compará-lo com Donald Trump, mas sim com o ex-premier italiano Silvio Berlusconi em seu início. Foi a mesma coisa na Itália, os partidos ditos tradicionais estavam em crise, tinham uma péssima imagem, e chega alguém, grande empresário, e diz que vai limpar tudo. Pode-se dizer que é uma forma de populismo, mas sua visão é mais tecnocrática, de que o Estado pode ser gerido como uma empresa.

Onde o senhor estava na noite de 20 de agosto de 1968?

Tinha 14 anos, morava em Praga com meus pais, mas eram as férias de agosto e estava no campo, na casa da minha avó. Retornei alguns dias depois, e minha rua estava repleta de tanques soviéticos. Mas os tanques não estavam enfeleirados na horizontal, bloqueando a rua, mas na vertical, com canhôies apontando para as janelas dos prédios, era aterrador. Aquele foi o ano mais apaixonante da minha vida. Mas, como disse, a invasão soviética não foi o mais duro, e sim o que veio depois. O que prevaleceu em 1968 foi a unidade, o entusiasmo quase unânime, pacífico, digno, da população. Infelizmente, não durou muito tempo. Em 1969, houve vários suicídios por autoimolação, sendo o mais conhecido deles o do estudante Jan Palach. Ele não protestou contra a invasão soviética, mas contra o fato de que os tchecos se readaptaram à invasão e se esqueceram da formidável solidariedade dos meses revolucionários. Estes 20 anos de normalização deixaram muitos traços na mentalidade dos tchecos e dos eslovacos.