FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – O número de pessoas sem domicílio na França mais que dobrou na última década, passando de 133 mil para 330 mil, segundo a Fundação Abbé Pierre. A contagem sobe para os indivíduos sem moradia pessoal, hospedados por terceiros ou em um alojamento provisório: 1.098 milhão. Quando se acrescentam os franceses morando em “condições muito difíceis”, chega-se a 4,148 milhões. O diagnóstico da entidade — fundada em 1992 pela luta do direito à habitação — alertou para o agravamento das dificuldades na busca por um teto no país, tanto para a população de baixa renda ou em situação precária, incluídos desempregados e imigrantes, como para uma classe média com perda de poder aquisitivo face ao crescente valor dos aluguéis.
O relatório, em sua 28° edição, destaca uma série de fatores para uma piora da situação de moradia na França: uma conjuntura inóspita após a pandemia da Covid-19, que atingiu as classes mais desfavorecidas, um ano de 2022 marcado pelo retorno da inflação, e a emergência de uma crise energética no rastro da guerra na Ucrânia. Mas, para além destes fatores, aponta a ineficiência dos poderes públicos em enfrentar o problema dos moradores sem-teto e a precariedade habitacional.
O primeiro alerta concerne as crianças de rua. No último 26 de janeiro, a sexta edição da “Noite da solidariedade”, vasta operação de cômputo de pessoas sem abrigo, realizada em Paris e 27 municípios dos arredores, 3.500 voluntários contabilizaram 6.633 pessoas nas ruas, sem domicílio. Só na capital, o número chegou a 3.015 sem-teto, contra 2.598 em 2022, sendo 105 menores de idade. O vice-prefeito de Paris, Emmanuel Grégoire, reconheceu o ineditismo de um número “tão importante de crianças”, em um quadro considerado por ele “excepcional e preocupante”.
O número de telefone de 115, principal dispositivo de urgência da “rede de segurança” do serviço público, recebe milhares de ligações todos os dias de pessoas à procura de uma vaga em um dos centros de acolhimento ou de um dos quartos reservados para sem-teto em determinados hotéis. Os números são “terríveis”, aponta a Fundação Abbé Pierre. Só na noite de 5 de dezembro de 2022 em Paris, 122 crianças de menos de três anos, cujos pais contataram o 115, não conseguiram um lugar para dormir. Nesta mesma data, segundo a Federação dos Agentes da Solidariedade (FAS), cerca de 5 mil pessoas que telefonaram para o 115 em âmbito nacional não encontraram uma solução de pernoite, sendo 1.346 crianças.
2,3 milhões na espera
Para o sociólogo Christophe Robert, coordenador do relatório da Fundação Abbé Pierre, situações como essa são “bastante tensas” em grandes cidades como Paris, Marseille, Lyon, Lille, Montpellier ou Toulouse.
– As pessoas ligam para o 115, e são quatro, cinco ou seis mil a não encontrarem uma solução para aquela noite. Muitos nem chamam mais, porque, além de a espera ser longa para o atendimento, já sabem que não terão uma resposta positiva. Mas só aumentar o número de alojamentos de urgência não será suficiente, e enquanto não houver uma conscientização disso, não se resolverá o problema – sustenta.
Robert refere-se a políticas públicas e medidas legislativas que abordem os diferentes ângulos da questão dos sem domicílio na França. Como uma solução mais “duradoura”, defende um reforço no investimento nas Habitações de Aluguel Moderado, os chamados HLM, na sigla em francês, moradias sociais construídas com a ajuda do Estado, de valores de aluguel bem abaixo do mercado e estritas regras de acesso.
– A construção dos alojamentos sociais caiu muito nos últimos anos – constata o sociólogo. – Há dois anos ficamos abaixo de 100 mil novas habitações por ano, antes este número era de cerca de 120 mil, e chegamos mesmo a atingir 135 mil. É um quadro que nos inquieta muito quando vemos que há em torno de 2,3 milhões de candidatos.
Para Didier Varoni, diretor do Fors-Pesquisa Social – organismo independente especializado na avaliação das políticas públicas –, que também participou da elaboração do relatório, nos últimos anos houve um desmoronamento de um sistema que cada vez perde mais sua pertinência:
– A estrutura HLM se enfraqueceu. O 115 está saturado. Há o fluxo migratório importante. É preciso haver mais auxílios para as pessoas em situação de subemprego. Os salários estão completamente desconectados dos valores de aluguel do mercado, exceto para os 20% mais ricos e aqueles que herdaram um apartamento de família ou usufruem de uma locação antiga. Hoje, mesmo as classes médias têm dificuldades em alugar um imóvel.
Para o relatório, foi feito um estudo em 15 aglomerações na França, com oito casos tipo: de um jovem em inserção profissional a um casal de funcionários públicos e empregados com salário mínimo, com e sem filhos ou necessidade de ter um carro para se deslocar ao trabalho.
– Usamos os valores de aluguel de referência, e resultou que, na quase totalidade dos casos estudados, essas pessoas não conseguem ter acesso a uma moradia adequada no mercado privado. Quem possui renda inferior a metade da média dos franceses não tem chance. E quando tem, se vê bloqueado ao se acrescentar os custos de eletricidade, seguro ou transporte. A questão é fazer com que a evolução do poder aquisitivo e do valor dos aluguéis acabem se encontrando – diz Varoni.
Existe uma regra implícita na França adotada pelos proprietários que desejam alugar seu imóvel: o salário do locatário deve ser pelo menos três vezes maior do que valor do aluguel. Trata-se de uma norma de prudência que na origem não é ruim, nota Robert, pois se essa proporção for ultrapassada poderão faltar recursos para alimentação, saúde e aquecimento.
– O problema é que isso aumentou muito – ressalta ele. – Em 1990, o aluguel representava 20% das despesas de um francês, contra 27,8% em 2021. E isso é uma média, pois para muitos o índice chega a 40% ou mesmo 60%. Por isso é preciso não apenas incentivar as habitações sociais para os mais pobres, mas também incrementar auxílios para as classes médias.
Limite ao Airbnb
Na avaliação da Fundação Abbé Pierre, são várias as frentes do problema de moradia a serem consideradas: ampliação da fiscalização da lei do enquadramento dos aluguéis; revisão da legislação sobre as expulsões locativas; limitação e fim das vantagens fiscais para plataformas de locação turística tipo Airbnb ou maior rigor no incentivo legal para que proprietários aluguem imóveis mantidos vagos.
O relatório deste ano tem ainda um capítulo dedicado às desigualdades e discriminações relacionadas ao gênero na questão da moradia, focado no âmbito das mulheres. Problemas são detectados para as pessoas LGBTQ+, mas as maiores adversidades concernem as mães celibatárias.
– As mulheres ganham em média um salário entre 20% a 22% inferior aos dos homens – diz Robert. – E a situação mais difícil que vimos neste relatório foi a de mulheres sós com filho. Elas são duas vezes mais atingidas pelo problema de habitação do que os homens. Com um filho, 40% delas têm dificuldades em encontrar moradia, contra 20% para o conjunto da população. Mas se têm dois ou mais filhos, este índice sobe para 60%. É um grande problema.
Numa separação conjugal – cerca de 420 mil por ano na França –,a capacidade financeira das mulheres diminui em média de 13% a 14%, enquanto a dos homes aumenta de 3,5%, aponta o relatório.
– Para muitas mulheres, essa perda chega a 40% – acrescenta Robert. – E as pensões de aposentadoria são inferiores em 40% paras as viúvas em comparação aos viúvos. Há, hoje, cerca de 500 mil aposentadas, sós, afetadas pela crise da habitação. O número de mulheres nas ruas, sem-teto, embora ainda inferior ao dos homens, não cessa de aumentar, como o das crianças.
Em contrapartida, mas sempre partindo do mesmo eixo de escandalosas carências espaciais de que sofre a França e o mundo, de forma geral, permitimo-nos evidenciar que a situação de gravidade habitacional, na pátria de Victor Hugo, também se estende, por falta de espaço, à degradação do seu sistema prisional. Incapaz de albergar tantos excluídos, sobretudo originários da simbiose formada pelos contingentes de pobreza e marginalidade, hoje o número de vagas nas prisões francesas é muito inferior às necessidades mínimas recomendadas pelo seu sistema de administração penitenciária, daí muitas delas se encontrarem superlotadas, nos últimos anos, conforme dados divulgados pelo jornal Le Monde, de 28.01.2022. Isso nos remete e conscientiza, por analogia e de retorno a essa providencial e excelente matéria de Fernando Eichenberg, sobre a importância do lar, para qualquer ser vivente. Basta uma breve consulta ao belo, poético e sensível ensaio de Gaston Bachelard denominado “O Ninho”, constante de sua obra “A Poética do Espaço”, para essa constatação. Ele se encontra disponível, gratuitamente, na Internet. https://filosoficabiblioteca.files.wordpress.com/2013/11/bachelard-a-poc3a9tica-do-espaco.pdf