Guerra prolongada na Ucrânia põe Europa diante de incertezas

Moradores passam por um mural em Kiev mostrando um grafite do Kremlin em chamas: guerra expôs interesses divergentes do eixo franco-alemão e dos países do Leste Europeu. Foto: Genya Savilov/AFP

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A eclosão da guerra na Ucrânia em 24 de fevereiro passado e seu prolongamento até hoje abalaram a agenda de uma Europa em busca de união política, crescimento econômico e maior independência em questões de segurança e defesa. A invasão das forças russas de Vladimir Putin em território ucraniano obrigou a União Europeia e seus países membros a reverem estratégias de curto a longo prazo, provocou a redistribuição de cartas no tabuleiro geopolítico, reavaliou alianças e alterou planos militares e energéticos.­

A guerra revirou completamente o espaço europeu – resume Tara Varma, analista do European Council on Foreign Relations (ECFR). – Infelizmente, este conflito não terminará logo, e há uma verdadeira questão sobre o que a UE fará no dia de amanhã.

O duo franco-alemão, considerado como “locomotiva” da Europa por seu poderio econômico e influência política, acreditava no sucesso das negociações com Moscou e foi surpreendido pelo ataque russo, apesar das advertências dos EUA do “risco humilhante” da agressão e do manifesto temor dos países do Leste, diz Varma. Segundo ela, de imediato houve duas mudanças de paradigma:

– A primeira delas foi a coordenação inédita no seio da UE e junto à Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte], por meio de sanções rapidamente impostas à Rússia, e de ajuda financeira, humanitária e militar à Ucrânia. Pela primeira vez, a UE forneceu a um Estado não membro da Otan armas letais. A segunda foi a decisão inédita de conceder de forma acelerada um status de candidato a integrar a UE para a Ucrânia e a Moldávia [em junho].

O conflito, no entanto, levou a um questionamento do poder decisório franco-alemão por parte dos países do Leste Europeu. Para a analista, Paris e Berlim devem aprender a serem “mais inclusivos”, pois muitos Estados membros da UE se sentem excluídos das suas discussões a dois.

– O lugar dos países bálticos e do Leste é proeminente no debate hoje, e é extremamente importante que haja um reequilíbrio nesta questão, embora eles não estejam anda em condições de propor soluções e promover coligações – defende.

França e Alemanha partilham dos mesmos princípios, mas “não têm a mesma maneira de enxergar a realidade”, sustenta Varma, e não é anormal que atravessem crises regulares. 

– Não me surpreende que a relação atual entre os dois países seja difícil, pois se está em uma situação bem diferente. Os alemães fizeram a escolha de ter uma grande dependência energética em relação à Rússia, e hoje pagam literalmente o preço por isso. Estão tentando se distanciar, mas isso vai lhes custar tempo e dinheiro. Temos no ECFR um instrumento interativo, o Energy Deal Tracker [rastreador de acordos de energia], onde se vê como a UE está colocando em prática o projeto de autonomia energética, mas se parte de muito longe. 

Uma das consequências da guerra da Ucrânia foi o lançamento pela Comissão Europeia, em maio, do REPowerEU, programa que visa tornar a Europa independente do gás e petróleo russos até 2030 e investir massivamente na produção de energias renováveis. Segundo o Eurostat, órgão de estatística da UE, a Europa importava mais de 50% de gás russo em janeiro de 2019, índice que caiu para 15% no primeiro trimestre de 2022.

A Europa conseguiu reduzir seu consumo de eletricidade nos últimos meses por esforço próprio, pelo aumento dos preços e pelas temperaturas amenas para a estação verificadas até agora. A previsão é que, com a manutenção de suas reservas, passe o inverno de 2023 sem cortes de energia. Resta a incógnita para o futuro.

Para Dominique Moïsi, conselheiro especial do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri), a UE foi pega de surpresa na questão energética com a guerra na Ucrânia. Segundo ele, a Europa estava “legitimamente obcecada” com a questão ecológica, e em como, lentamente, evoluir para fazer com que os países dependessem menos das energias mais poluentes.

– Mas houve uma dupla incompetência – observa o analista. – De parte da Alemanha, que abandonou a energia nuclear e se jogou nos braços do gás russo. E da França, que não fez a manutenção de seu parque nuclear, porque já olhava para as energias alternativas. Por hora, estamos nos segurando. Se este inverno não for excepcionalmente frio, conseguiremos nos manter. A questão é saber como estaremos no próximo inverno se a guerra continuar por mais tempo. Venho alertando que as energias poluentes são aquelas que nos fazem depender de regimes autoritários, e que neste sentido era preciso reconsiderar nossa relação com a Rússia e o Oriente Médio.

Papel reforçado da Otan

A analista Sylvie Matelly, do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris), acusa a Europa de, num primeiro momento, ter reagido à urgência energética de forma individual, em vez de coordenar estratégias e investimentos.

– Fomos por todo lado no planeta fazer nosso mercado, cada um por si. E com uma facilidade desarmante de virar a casaca. Certos governos, como a Arábia Saudita ou a Venezuela, que cheiravam mal, de repente voltaram a ser frequentáveis. Isso traduz uma hipocrisia e provoca uma perda de confiança na palavra dos países ricos. A curto prazo, os resultados foram bastante positivos, 2022 ficou sob controle, mas a médio prazo há efeitos perversos evidentes. Será preciso esperar para ver o que ocorrerá em 2023.

O conflito russo-ucraniano também afetou as ambições de uma Europa com maior autonomia em questões de segurança e defesa, principalmente em relação à Otan e aos EUA. Para Florent Marciacq, do Centro Internacional de Formação Europeia, as visões dos Estados membros da UE sobre a Europa da defesa se tornaram ainda mais divergentes após a guerra da Ucrânia.

– No leste Europeu, a segurança hoje é apanágio da Otan, e não há nenhum desejo de se pensar em um projeto de defesa continental. É algo que contrasta fortemente com as intenções da França, cuja estratégia era criar um espaço europeu com maior margem de manobra em relação à Otan e aos EUA. Essa ideia fracassou.

Moïsi recorda a declaração do presidente francês, Emmanuel Macron, em 2019, afirmando que a Otan estava em estado de “morte cerebral” e que as nações europeias não poderiam mais confiar nos EUA para assegurar sua defesa. 

– De nenhuma maneira se poderia dizer isso hoje. A guerra teve um forte impacto sobre a Otan, que se tornou maior. A Rússia queria “finlandizar” a Ucrânia, e acabou “otanizando” a Finlândia e a Suécia  [os dois países solicitaram adesão à Otan em maio]. Os EUA são o primeiro ator, de longe, na ajuda militar à Kiev – aponta o analista. – A guerra na Ucrânia reforçou as diferenças entre países na Europa que querem uma maior presença americana, como os do Leste e do Norte, e outros como a França, que pregam a autonomia estratégica do continente como vital, porque não se poderá contar eternamente com Washington. Mas o futuro da segurança europeia nos próximos anos passa por um reforço da garantia americana. Somente com a guerra resolvida se poderá repensar no plano europeu.

Matelly, do Iris, identifica dois movimentos na UE: um desejo de reforçar a soberania nacional, o parque industrial e uma política de defesa, e ao mesmo tempo investir de forma mais intensa na relação com os EUA.

– Para os franceses isso é totalmente contraditório, na lógica de que se não houver um esforço de investimento em nossa soberania e passarmos de uma dependência da China a uma crescente dependência dos EUA, o problema não será resolvido. O interesse americano é frear o desejo da China de se tornar primeira potência mundial. Penso que seremos empurrados a um alinhamento com os EUA, e isso terá consequências importantes para a economia europeia e para o resto do mundo. Essa é uma grande questão para os anos vindouros, porque é um fator que vai dividir profundamente os europeus.

O retorno da guerra na Europa impôs novos desafios para o continente, com repercussões que, na opinião de Marciacq, deverão perdurar após o término do conflito:

– Há muitas questões totalmente em aberto colocadas sobre a mesa por esta guerra. Infelizmente, por trás da frente de unidade, fruto da reação a essa agressão, inúmeras divergências entre os Estados membros aparecem nos horizontes estratégicos para o futuro da UE. 

O conflito, no entanto, na análise de Moïsi, não está prestes a acabar, e deve se estender ainda por um período indeterminado:

– A única negociação de paz possível será aquela que permitirá aos ucranianos afirmarem “nós ganhamos a guerra”, e aos russos dizerem “nós não a perdemos”. E não vejo as condições para que esse duplo discurso seja dito em Kiev e Moscou.

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