Pandemia acentua crise da democracia e pode promover um novo tipo de Estado-nação

Homem vestindo uma máscara caminha em frente à sede da Comissão Europeia, em Bruxelas. ©Aris Oikonomou/AFP

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A crise deflagrada pela pandemia do coronavírus está sendo considerada como capaz, uma vez terminada, de alterar não apenas os sistemas econômicos, mas também as formas de governança política no mundo. Um dos cenários que tem sido evocado por analistas aponta para a configuração de um novo Estado-nação, diferente dos modelos existentes nas democracias ocidentais e também dos populismos-nacionalistas contemporâneos.

Na mais recente sondagem realizada pelo Centro de Pesquisas Políticas (Cevipof), 41% dos franceses concordaram que “na democracia nada avança; seria melhor menos democracia e mais eficácia”. A pesquisa foi realizada em fevereiro, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia definido a epidemia do coronavírus como uma “emergência de saúde pública de âmbito internacional”.

Para o analista Luc Rouban, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), do qual faz parte o Cevipof, esta “grande minoria” que almeja menos democracia e mais eficácia é um “contrapeso ao longo período de contestação da tecnocracia e do poder centralizado” vivido recentemente no país, seja pelo movimento dos coletes amarelos ou nas manifestações contra a reforma das aposentadorias.

– Esta demanda por maior autoridade, ainda dentro de um espectro democrático, visa maior eficácia e melhor gestão – diz Rouban. – Após esta crise, poderá ocorrer uma reorientação para uma direita bem mais conservadora, autoritária, mas, ao mesmo tempo, respeitando a Constituição e as liberdades públicas. Haveria uma dimensão de “democracia iliberal”, sustentada na ideia de que a maioria deve impor suas vontades à minoria e de que é preciso um forte leadership. Na pesquisa, esta demanda por autoridade vem de pessoas com valores liberais no plano econômico e que são amplamente de direita. Ressurge a clivagem direita e esquerda.

Na sua análise, haverá igualmente uma demanda pelo retorno do controle das fronteiras nacionais, o que significaria um recuo do projeto da União Europeia (UE) e de livre circulação no Espaço Schengen (formado por 26 países do continente). O cursor tenderia, segundo ele, na direção de uma Europa de nações, mais centrada nos Estados e menos em um espaço comum, mas não baseada nas ambições dos governos populistas-nacionalistas atuais.

– A diferença com os populismos é que haveria um peso muito importante dos experts e cientistas nas decisões políticas, ao menos nos âmbitos da saúde e do meio ambiente. Nos regimes puramente populistas, se trata de agradar o povo dizendo que não é grave e não haverá problema. Não penso que se terá a solução brasileira de Jair Bolsonaro, mas poderá haver um tipo de tecnocracia um pouco mais reforçada.

A nova fórmula, segundo ele, poderá combinar “menos democracia e mais solidariedade social”, em um tipo de “neogaullismo social”.

– O debate é este. Não penso que se vai mudar a Constituição nem suprimir as liberdades públicas, simplesmente se vai na direção de tomadas de decisão mais rápidas e concentradas no poder Executivo, com um pouco menos de poder ao Parlamento. O macronismo era muito neoliberal, pró-Europa, favorável à globalização. Hoje, se reencontra na ideia de um gaullismo de esquerda, em defesa do serviço público. No plano internacional, uma questão – já colocada – que vai se tornar muito importante, é a dependência em relação à China. Haverá um maior questionamento em relação à expansão chinesa, e uma vontade de ser mais autônomo no plano econômico, com uma renacionalização de um certo número de empresas e uma reindustrialização dos Estados Ocidentais.

O cientista político David Djaïz, também da Sciences-Po e autor do ensaio “Slow democracia – como controlar a globalização e retomar as rédeas de nosso destino”, vê a emergência de um novo Estado, não autoritário, mas mais voltado ao aspecto nacional. Para ele, existe, hoje, a necessidade de reabilitar a nação no discurso progressista.

– O vocabulário da nação foi abandonado há 30 anos aos identitários e autoritários, que não fazem dele um uso com fins de democracia, solidariedade social e liberdades civis. É possível reativar um imaginário positivo do Estado-nação, como um dique da globalização, uma força capaz de equilibrar os efeitos da abertura econômica, colocar fora do mercado um certo número de bens públicos, relocalizar ativos estratégicos e dar dignidade a profissões essencias ao funcionamento do social, como médicos, enfermeiros, professores, funcionários. Precisamos de poder público. Nos Estados Unidos, estão se dando conta de que a massa salarial da função pública baixou consideravelmente desde o governo de Ronald Reagan (1981-1989). Estão redescobrindo as virtudes de se ter uma boa função pública para enfrentar este tipo de crise.

Na enquete do Cevipof, 52% dos entrevistados se disseram favoráveis a que sejam “experts e não um governo que decidam o que lhes parece ser o melhor para o país”, e 33% afirmaram que gostariam de ter no comando “um homem forte que não tivesse que se preocupar com parlamento ou eleições”.

– É algo relacionado socialmente na sondagem – nota Djaïz. – As classes superiores se desengajam da democracia em proveito do governo de experts, e as classes médias e populares preferem o homem forte. Não acredito que os homens fortes estejam administrando melhor a crise que enfrentamos, mas o inverso. Há uma verdadeira questão para a democracia provar que, mesmo na situação tão catastrófica que atravessamos, é tão ou mais eficaz que os regimes autoritários, e que respeita o Estado de Direito e assume a transparência em sua comunicação, o que não foi o caso da China, por exemplo.

A UE, hoje, está em “perigo de morte”, diz ele, que nota na tríade em que foi edificada – liberdade, responsabilidade e solidariedade – uma falta evidente do terceiro elemento. Por outro lado, acredita que esta oportunidade única de grande parte do mundo estar vivendo uma mesma experiência, em uma mistura de medo e de solidariedade, pode ser fundadora de uma nova política.

– Em sociedades como as dos EUA ou do Brasil, muito polarizadas economicamente e culturalmente, há talvez aqui uma experiência comum matricial, do medo, da igualdade diante da morte, e de se dizer que, no fundo, a vida e a saúde não têm preço. Se está disposto a congelar a economia para proteger os mais vulneráveis. Todas estas ideias, mais a desaceleração da globalização, devem ser o coquetel de um novo pacto democrático, que se apoiará em Estados-nação, com valor central na solidariedade e não no autoritarismo e na identidade.

Djaïz reconhece a existência de “raízes muitos profundas” nos movimentos populistas-nacionalistas, com “danos enormes” para a democracia e sua credibilidade nos últimos anos, e que será preciso “muita energia” para contrapor este discurso:

– Muitas vezes, as crises não resultam no melhor. Nos pós-crise, poderemos ter ofertas políticas puramente nacionalistas e autoritárias, que vão frisar a competição entre países, continuar a destruir o meio ambiente e a negligenciar as desigualdades. É um risco. Algo muito importante é o imaginário e as narrativas que criamos. O erro maior após a crise financeira de 2008 foi que se tomaram medidas de urgência tecnocráticas, das quais algumas bem-vindas, mas não se teve o cuidado de dizer: “Aqui está o que aprendemos de nossos erros e o mundo novo que vamos desenhar juntos”. E a única oferta que se impôs foi a populista, que tinha uma contranarrativa.