Após semanas de impasse, União Europeia libera ajuda de 500 bilhões de euros contra pandemia

Homem de máscara em frente à sede da Comissão Europeia, em Bruxelas.                                          ©Yves Herman/Reuters

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Após receber muitas críticas pela falta de ação e de solidariedade no início da crise provocada pela Covid-19 no continente, a Europa conseguiu chegar a um acordo em mais uma tentativa de formular uma resposta comum aos efeitos da pandemia. Ao final da maratona de reuniões dos ministros das Finanças da União Europeia (UE), que começou há dois dias e terminou na noite de quinta-feira, foi acertada uma ajuda de cerca de € 500 bilhões para os países europeus, recursos que deverão ser liberados em duas semanas. Permaneceu, entretanto, o impasse na questão da emissão de títulos de dívida conjuntaapelidados de eurobônus ou de coronabonds, principal reivindicação das nações de economias menos robustas, que sofreram uma derrota.

O pacote, costurado em meio a discordâncias e pressões, tem como objetivo criar uma rede de segurança para trabalhadores e empresas, e auxiliar na recuperação das economias europeias. “Um excelente acordo. A Europa decide se mostrar à altura da gravidade da crise”, comemorou, em seu Twitter, o ministro da Economia francês, Bruno Le Maire. Para o ministro holandês, Wopke Hoekstra, as medidas ajudarão os países “em suas necessidades no curto prazo”, e também a “reconstruir suas economias no longo prazo”. “Este é um forte e sensato sinal da solidariedade europeia”, afirmou, também por meio de um tuíte.

Não houve, no entanto, acordo na sensível questão dos eurobônus, a emissão de dívida conjunta para auxiliar os países do Sul, mais frágeis economicamente. O ministro francês se manteve otimista ao anunciar que o tema voltará a ser futuramente debatido pelos chefes de Estado. O holandês Hoekstra, no entanto, foi categórico: “Nós somos e permaneceremos opostos aos eurobônus. Pensamos que esta ideia não ajudará a Europa ou a Holanda no longo prazo”.

O plano europeu se sustenta em três eixos: € 200 bilhões do Banco Europeu de Investimento (BEI) para relançar a atividade privada e as empresas; € 100 bilhões da Comissão Europeia para um fundo destinado ao desemprego; e, por fim, uma linha de crédito aos Estados via o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), criado em 2012 na crise da dívida da zona euro, no valor de € 240 bilhões (equivalente a 2% do PIB de cada país).

Um consenso foi alcançado após Espanha e Itália conseguirem derrubar o veto holandês e obterem a garantia de que as linhas de crédito concedidas não estarão condicionadas a futuros ajustes e reformas nos Estados. O ex-presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker havia acusado o bloqueio da Holanda de “irresponsável”. O único requisito imposto foi o de que os países que solicitarem os empréstimos se comprometam a utilizá-los para financiar custos de saúde, diretos e indiretos, derivados da crise da Covid-19.

Os debates dos últimos dias expuseram a fratura entre países do Norte, mais ricos, e os do Sul, acusados de desleixo no controle de suas finanças públicas, além de fortemente atingidos pela epidemia. O primeiro grupo teve a liderança da Holanda —  e, num primeiro momento, da Alemanha — , intransigente na liberação de recursos associados a compromissos de reformas. O segundo, com Itália, Espanha e França à frente, reivindicava maior solidariedade europeia e a possibilidade de emissão conjunta de títulos de dívida para captação de financiamentos de longo prazo. Face ao iminente fracasso, Itália, França e Alemanha se esforçaram para costurar um mínimo consenso com os países de maior oposição.

A reunião dos 27 chefes de Estado e de Governo da UE, em 26 de março, já havia sido marcada por profundas divergências, e fora estabelecido um prazo de 15 dias para que os ministros encontrassem uma solução de consenso. O plano elaborado terá de ser aprovado em uma próxima reunião de cúpula.

O ministro das Finanças italiano, Roberto Gualtieri, havia imposto como condição que fosse explicitamente mencionado no relatório final a mutualização da dívida como uma das ferramentas para a recuperação econômica. Wopke Hoekstra, no entanto, se mostrou irredutível na questão, chegando a sugerir investigar por que certos países não economizaram o suficiente e agora não têm margem orçamentária para lidar com a pandemia. O premier português, António Costa, definiu as declarações como “repugnantes”.

Alemanha e Holanda foram alvo recente de governadores e prefeitos italianos, que compraram uma página no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung para criticar o egoísmo e ausência de solidariedade de ambos, e incitar Berlim a “se lembrar como um grande país deve se comportar em situação de urgência”.

“Em 1953, em Londres, 21 países consentiram à Alemanha dividir sua dívida por dois e prolongar os prazos de pagamentos”, diz a carta publicada, referindo-se a um acordo firmado no pós-Segunda Guerra Mundial. Sobrou também para a Holanda, um paraíso fiscal, que foi acusada de estabelecer um regime de impostos que “rouba há anos recursos de todos os principais países europeus”

Três diferentes manifestos, assinados por personalidades de diferentes áreas e nacionalidades, foram lançados nos últimos dias, reivindicando um maior comprometimento e solidariedade dos países do Norte da Europa em ajudar financeiramente as nações do Sul. “Para que serve uma União Europeia se, em tempos de coronavírus, não mostra que cerra fileiras e luta coesa para um futuro comum? Se o Norte não ajudar o Sul, os países nórdicos não somente vão perder a si mesmos, mas também a Europa”, alerta um dos textos.

“A UE, superando o doloroso conflito entre soberanismos opostos, deve atuar de imediato no apoio aos países onde o impacto do vírus foi mais violento e as consequências sociais do bloqueio das atividades produtivas resultam menos sustentáveis. O futuro da UE está ligado à rapidez e eficácia desta ação em benefício da vida de seus cidadãos. O bem-estar e a paz de amanhã dependem das decisões de hoje”, defende outro manifesto. A lista de signatários inclui nomes como o ex-ministro das Relações Exteriores alemão Joschka Fischer, o ex-deputado verde Daniel Cohn-Bendit, os historiador Carlo Ginzburg, o filósofo Fernando Savater, a prêmio Nobel de Literatura Olga Tokarczuk e os cineastas Völker Schlöndorff e Margarethe von Trotta.

No último dia 2, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, já havia pedido desculpas à Itália pela falta de resposta e solidariedade da Europa no enfrentamento do país da crise dos coronavírus, prometendo maior ajuda para lidar com as consequências econômicas da pandemia, e reconhecendo que muitos países da UE se concentraram incialmente em seus problemas nacionais. “Apresento minhas desculpas, estamos com vocês”, diz o título de seu depoimento publicado no jornal italiano La Reppublica. “Hoje, a Europa se mobiliza ao lado da Itália. Mas não foi sempre o caso”, admitiu.

A crise atingiu também o Conselho Europeu de Pesquisa. O italiano Mauro Ferrari, presidente do órgão desde 1° de janeiro, se demitiu esta semana sem poder desenvolver seu projeto de combate ao Covid-19. Ferrari alegou, por meio de um comunicado, ter ficado “claramente decepcionado e profundamente perturbado” com a rejeição a seu projeto, e lamentou as frequentes “intuições improvisadas dos líderes políticos”. “Já vi o bastante em termos de governança da ciência e de operações políticas na UE”, desabafou.