FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – As duas frentes sobre questões de segurança na França recém-abertas pelo presidente Emmanuel Macron provocaram controvérsias e suscitaram críticas e protestos no Parlamento, na sociedade civil e mesmo em instâncias internacionais. O projeto de lei que pretende combater o islamismo radical no país será apresentado ao Conselho de Ministros no próximo dia 9. Já a proposta legislativa com medidas de incremento da segurança interna e de proteção aos policiais, chamada Lei de Segurança Global, começou a ser debatida na Assembleia Nacional esta semana. A um ano e meio do próximo pleito presidencial, em maio de 2022, Macron investe em temas caros ao eleitorado conservador, na perspectiva de sua reeleição ao cargo.
Os 57 artigos do projeto de lei “consolidando os princípios republicanos”, antes denominado “separatismos”, integram medidas como o recrudescimento dos controles das mesquitas e associações muçulmanas no respeito aos “valores da República”, dos apelos à violência e ao ódio nas redes sociais e do compromisso com os princípios da laicidade na educação nacional. A proposta de nova legislação foi reforçada após os recentes atentados terroristas no país, em Conflans-Sainte-Honorine, com a decapitação do professor Samuel Paty, e em Nice, com três vítimas.
Em uma carta aberta ao presidente Emmanuel Macron, entidades, acadêmicos, líderes religiosos de confissões diversas e defensores dos direitos humanos alertaram para os perigos embutidos no projeto de lei: “Acreditamos que existe um risco real de que, ao contrário de sua intenção, as medidas propostas que foram anunciadas atinjam os muçulmanos em geral, bem como outras religiões minoritárias, e que isso possa levar a uma série de violações de direitos humanos”, diz o texto. Para os signatários, a experiência mostra que este tipo de lei com “conceitos vagos”, aplicada em nome da “segurança nacional” e da “estabilidade e harmonia sociais” pode agravar em vez de melhorar o quadro atual.
Já o projeto de lei de Segurança Global sofreu críticas principalmente por causa de seu artigo 24, que cria um novo delito: proíbe, sob risco de um ano de prisão e € 45 mil de multa, a exibição de imagens de policiais em intervenção com o propósito de “comprometer sua integridade física ou psíquica”. “A infração prevista neste projeto de lei não é necessária para a proteção de policiais e infringe desproporcionalmente a liberdade de expressão”, advertiu, em um comunicado, a Defensora dos Direitos, Claire Hédon, autoridade independente nomeada pelo presidente da República. Para ela, a lei é inútil e as forças de segurança já são suficientemente protegidas pela legislação vigente.
A parte pelo todo
Já o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos manifestou “sérias preocupações” em relação ao texto, avaliado como uma potencial ameaça às “liberdades fundamentais”, uma mensagem compartilhada por ONGs e sindicatos de jornalistas franceses. A Anistia Internacional endossou os protestos ao definir a lei como “uma grave violação do direito à informação e da liberdade de expressão”. Em meio à pressão, o ministro do Interior, Gérald Darmanin, que havia gerado indignação da mídia ao sugerir que os jornalistas deveriam se credenciar junto às autoridades para cobrir manifestação no país, prometeu uma emenda ao polêmico artigo 24 para garantir a liberdade de expressão. Na sexta, o artigo foi aprovado com um adendo que diz que sua aplicação ocorrerá “sem prejuízo ao direito de informar”.
Crítica contumaz das políticas de Macron, e hoje, segundo as pesquisas, sua principal adversária para 2022, a líder de extrema direita Marine Le Pen, do partido Reunião Nacional (RN), não tardou em manifestar seu voto a favor da lei contra os separatismos e exigir uma “legislação de guerra com leis de exceção” para combatê-lo.
Para Luc Rouban, do Centro de Pesquisas Políticas (Cevipof), a lei, por um lado, configura um avanço legislativo em um terreno no qual, muitas vezes, “as práticas sociais estão fora de controle e não conformes aos princípios republicanos de laicidade”.
– Mas o problema de fundo é que nos encontramos em uma tênue linha divisória entre uma reafirmação dos princípios republicanos e a evolução multicultural da sociedade francesa – ressalta. – E esta reafirmação agrada, sobretudo, à direita. Isso se inscreve, evidentemente, no horizonte da eleição presidencial de 2022, rumo a um controle mais estrito dos muçulmanos e das práticas religiosas. E a proposição sobre a lei de Segurança Global vai na mesma direção.
Com a esquerda dividida, Macron prevê uma disputa com Marine Le Pen, mas também a hipótese do surgimento de uma candidatura da direita moderada, estima Rouban. A maior ameaça, segundo ele, estaria nesta segunda alternativa:
– Dois terços dos franceses se situam no lado direito do tabuleiro político. Essas medidas de Macron são, politicamente, uma forma de tomada de posição no campo da direita clássica e da extrema direita. Macron chegou ao poder com uma visão de centro-esquerda, mas hoje é considerado como um presidente de direita, e quer barrar novas candidaturas desta tendência. E os argumentos populistas se desenvolveram fortemente na França.
Para Françoise Lorcerie, do Instituto de Pesquisas e Estudos sobre os Mundos Árabes e Muçulmanos (Ireman), da Universidade Aix-Marselha , o discurso presidencial sobre a lei do islamismo radical, “grandioso e de afirmações retóricas”, além de não solucionar os problemas do comunitarismo, poderá ter efeitos nocivos na sociedade.
– É um discurso que acusa e aponta o dedo, mesmo que inclua a ideia de que não todos os muçulmanos são visados, mas apenas os comunitaristas. Esta lei não vai resolver o problema do terrorismo e do fanatismo, e ainda reforça o que pode haver de sentimento de exclusão da parte dos muçulmanos na sociedade. O problema da França, hoje, é uma desigualdade e segregação crescentes.
Sintomas e doença
Segundo ela, o diagnóstico revelado pela lei é “equivocado”, e conta uma história que “muitas pessoas querem ouvir”. É preciso um “discurso inclusivo”, ausente, hoje, nas forças políticas que detêm a narrativa, diz:
– Há uma confluência entre o discurso supostamente centrista da República em Marcha (partido do Macron) e o da direita e extrema direita. Em escala nacional, o que importa é a demagogia, com uma retórica de direita. É algo novo na França, neste nível, no pós-Segunda Guerra. Há um pouco de Donald Trump na retórica política que triunfa aqui.
Yannick Prost, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), vê na lei contra o islã político apenas melhorias técnicas em relação ao arsenal jurídico já existente. A reflexão de Macron sobre os separatismos não é, segundo ele, a resposta adequada para tratar da questão da radicalização islamista.
– É um projeto de lei conservador, centrado na ordem pública repressiva, para marcar pontos com a direita popular. Existe, hoje, uma situação extrema de desigualdade e de segregação urbana, com um sentimento de revolta permanente e de busca identitária. Isso se traduz em três aspectos: uma economia paralela, motins urbanos e o retorno ao religioso de forma provocante. O balanço da política social de Macron é bastante magro. Há um trabalho mais profundo a ser feito, de reconciliação da população minoritária com a majoritária.
A lei de Segurança Global, segundo ele, pretende dar meios para a polícia agir de forma mais eficaz, mas é, sobretudo, uma maneira de responder às crescentes acusações contra a instituição em relação ao uso excessivo da força.
– É uma resposta surpreendente, pois em vez de defender uma polícia exemplar e promover mais transparência, vai, ao contrário, reduzir as possibilidades de contestação dos erros e excessos policiais. As sondagens revelam uma direitização da sociedade francesa em vários temas. Há uma maior demanda por segurança e posturas firmes. Macron é uma animal político, se adapta ao eleitorado. Com estas duas leis, reforça o lado da ordem pública e da segurança. Mas se está tratando os sintomas e não a doença.