FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – Em 22 de maio de 1980, o embaixador da França no Iraque, Pierre Rocalve, enviou de Bagdá para Paris o seguinte despacho diplomático ao então ministro das Relações Exteriores, Jean François-Poncet, traçando o perfil do líder do país no qual exercia o posto: “Monsieur Saddam Hussein conquistou uma segurança e mesmo um certo carisma, criando um personagem feito de uma curiosa mistura, associando a vivacidade e o sorriso de Kennedy, a logorréia e o charuto de Fidel Castro, o penteado de Yasser Arafat, a energia e por vezes o guarda-roupa de Tito, o gosto pelo triunfo de Nasser, e também a grandiloquência de um imperador da Mesopotâmia“. O trecho acima revela que, além de detalhados relatórios geopolíticos, os diplomatas também sabem recorrer à criatividade de estilo ao transmitirem suas mensagens para a matriz.
Descrições similares e relatos que variam da análise crítica ao testemunho emocional são encontrados em abundância nas 400 páginas de “Nos arquivos secretos do Quai d’Orsay – o engajamento da França no mundo – de 8 de maio de 1945 a 11 de setembro de 2001″ (ed. Iconoclaste). Recentemente lançado, o espesso volume, de amplo material iconográfico e reproduções fac-símile, traz documentos secretos dos arquivos do Ministério da Europa e das Relações Exteriores francês, conhecido como Quai d’Orsay, relacionados a 41 acontecimentos históricos ocorridos no mundo entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o atentado às torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York.
Para projetar sua influência no Oriente Médio, Paris apostou desde os anos 1970 em Saddam Hussein como o “amigo da França” e futuro homem forte na região. Seu destino final é conhecido: capturado em um esconderijo subterrâneo após sua derrota na invasão americana no Iraque, no rastro do ataque terrorista nos EUA, foi julgado e condenado à morte por enforcamento em 2006.
Para o historiador Maurice Vaïsse, codiretor da publicação, a globalização e os avanços tecnológicos provocaram uma “transformação profunda” na atividade dos diplomatas.
– É um trabalho que mudou consideravelmente, porque as negociações se fazem cada vez mais em níveis elevados, e se questionou mesmo em determinado momento se valia a pena conservar certas embaixadas, visto os recursos que demandavam. Mas os diplomatas mantêm sua importância pelos contatos diretos que estabelecem nos países em que atuam, principalmente em relação à diplomacia econômica.
Na sua opinião, a política externa francesa mantém uma certa constância ao longo das décadas, mas com diferentes nuances, segundo o programa do presidente eleito.
– O presidente Emmanuel Macron insiste bastante na Europa, e não por acaso alterou o nome oficial do Quai d’Orsay para Ministério da Europa e das Relações Exteriores. Também se vê uma vontade em impor um maior vigor à diplomacia econômica. Ele estima que sob as presidências de Nicolas Sarkozy e de François Hollande, o país perdeu parte de sua importância na política internacional, e pretende dar maior visibilidade à política externa da França.
Vaïsse ressalta que a obra organizada sobre os arquivos secretos não é “chapa branca”:
– Publicamos muitos documentos que não glorificam e nem fazem a apologia da França e de sua política externa. Mostramos também aspectos negativos, nas relações com a África ou no golpe militar no Chile, por exemplo.
O golpe que derrubou o presidente chileno Salvador Allende e colocou o general Augusto Pinochet no poder, em 1973, revela, segundo Vaïsse, divergências de opiniões no seio da diplomacia francesa. Em um comunicado de 12 de setembro de 1973, um dia após o ataque ao Palácio La Moneda e o suicídio de Allende, o diretor para as Américas do Quai d’Orsay, René de Saint-Légier, acusa a política do presidente deposto como a principal responsável pelo golpe, e se mostra otimista em relação às intenções dos militares putchistas. Para o diplomata, Allende era “agressivo”, “intolerante” e um “transgressor da lei”, e a “inconveniência” do 11 de setembro foi ter transformado a coalizão governista União Popular em “vítima” e o presidente morto em “mártir”. “Tudo leva a crer que os generais terão o cuidado de se desfazer deste peso (o poder) e de restaurar o regime constitucional”, avaliou, obviamente sem saber que Pinochet permaneceria até 1990 no comando do país.
Pouco mais de um mês após o golpe, numa nota de 29 de outubro, as preocupações do embaixador em Santiago, Pierre de Menthon, eram outras: as centenas de refugiados que se amontoavam em sua embaixada, em sua residência oficial e em chancelarias de outros países em busca de asilo político. Em sua nota, o diplomata relaciona embaixadas que se recusavam a receber indivíduos perseguidos (Estados Unidos, Grã-Bretanha, Austrália, Nova Zelândia, Índia, Brasil e Turquia), e alerta para um “longo e duro período de autoritarismo”: “Visto o clima e as atividades repressivas, não é surpreendente que muitos chilenos, acossados, temendo os conselhos de guerra, continuem a se refugiar nas embaixadas. O problema que se coloca para nós deve durar bem mais tempo do que o previsto”.
Além do Chile, a América Latina é contemplada no livro com documentos relativos à crise dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1962, e à morte do líder revolucionário Che Guevara na Bolívia, em 1967.
Como exemplo africano, o historiador cita o coroamento de Bokassa I, que havia assumido o poder da República Centro-Africana por meio de um golpe de Estado, em 1966, e se autoproclamou imperador em 4 de dezembro de 1977. Para resguardar a influência francesa no continente africano, o então presidente Valéry Giscard d’Estaing mantinha suas relações privilegiadas com Bokassa, e aceitou dar um apoio técnico, material e protocolar a mais esta excentricidade do ditador-imperador. Cerca de um mês antes da entronização, o embaixador Robert Picquet relata ao Quai d’Orsay o teor de um “encontro privado” com o soberano, num despacho intitulado “Não seria demais?”. Numa nota manuscrita, o diplomata listou os pedidos de Bokassa à França para a fastuosa cerimônia: locação de aviões Transall para o transporte da carruagem e dos cavalos brancos; facilidades para importação dos diamantes da coroa, talhados especialmente pelo joalheiro francês Arthus Bertrand, e para a compra de cerca de 400 veículos Peugeot, Renault, Citroën e Saviem, além do envio da música da Guarda Republicana e de um oficial e de um treinador equestre da célebre corporação. No pé de página, anotou: “O imperador encomendou ainda 45 veículos Mercedes da Alemanha”.
O embaixador faz uma minuciosa descrição de como será a festança, com talheres de prata e madrepérola, cristais Baccarat, porcelana de Limoges pintada com o brasão do novo império, e conclui: “Há doze anos, Bangui (capital do país) é o teatro de um espetáculo tragicômico, o qual, por vezes entretidos, mas quase sempre inquietos, acompanhamos com atenção as peripécias. No 4 de dezembro próximo, um novo episódio terá seu final. Nada permite dizer que será o último. Podemos nos perguntar se o herói já não foi longe demais”.
Já o embaixador Étienne Manac’h, em Pequim, na China, se mostra deslumbrado durante uma visita de seis dias à Coreia do Norte, em novembro de 1974. Em seu relatório de 16 páginas enviado a Paris, o diplomata se diz admirado pelo “dinamismo do povo coreano”, então dirigido a mão de ferro pelo ditador Kim II-sung. Manac’h faz rasgados elogios às “avenidas arborizadas” da capital Pyongyang, ao metrô de uma “profundeza extraordinária”, ao “grande luxo” dos postes de iluminação noturna, aos uniformes militares de “melhor corte” se comparados aos dos chineses, e às mulheres, “que, em geral, mantiveram sua feminilidade”. Sua análise vai mais longe: “Mas fiquei impressionado pela atenção dada pelo regime ao melhoramento constante das condições de existência da população. Não contentes em anunciar seus planos de elevação do nível de vida, os dirigentes coreanos procuram estimular a população e modelar seu estado de espírito no sentido das maiores exigências para seu conforto”.
O embaixador atesta um culto da personalidade de Kim II-sung “levado ao extremo”, mas fornece uma explicação para a longeva política de glorificação do líder máximo: “É, talvez, porque falta promover a reunificação do país, tarefa difícil para a qual importa manter a população agrupada em torno de um símbolo. Além disso, para este país que há muito tempo não havia conhecido independência, talvez se tenha estimado que seriam necessários mais de trinta anos para ter de volta sua coesão e seu orgulho, e que o culto do salvador nacional, para persistir na memória das gerações futuras, deveria ser implantado de forma ainda mais profunda”.
Uma lei de 2008 reduziu de 50 para 25 anos o prazo de desclassificação dos arquivos diplomáticos do Quai d’Orsay. No entanto, documentos que envolvem questões sensíveis sobre armamento nuclear e a segurança nacional ou de indivíduos, por exemplo, podem receber uma classificação por um tempo bem mais longo. No caso dos atentados de 2001, foi solicitada uma autorização especial para a derrogação do prazo.
Maurice Vaïsse destaca a variedade dos documentos, de diferentes tonalidades de linguagem em verbatins, análises, notas e relatórios abordando não apenas questões diplomáticas, mas também uma infinidade de aspectos da vida em sociedade.
– Há um documento extraordinário sobre o que um embaixador chama de “o despertar do islã na Turquia”. Ele observa isso em 1971, e vemos que o que se passa hoje com o AKP (partido governista conservador) não é algo recente. Há também o testemunho de um general cambojano que conseguiu fugir do terror do Khmer Vermelho, em 1975, e contou todas as atrocidades que viu ao embaixador francês na Tailândia. É importante, porque no mesmo momento na França havia elogios à revolução cambojana, não se davam conta de que ocorria um genocídio.Para o historiador, outras das mudanças visíveis se deram no campo dos serviços de inteligência:
– É tradição haver sempre nas embaixadas um ou dois agentes encarregados de informações fechadas. Mas não se pode esquecer que, hoje, uma grande parte da espionagem é “sigint” (por meios teconológicos), e não “umint” (por meios humanos). A inteligência humana sempre vai existir, mas a tecnológica, obtida pelas “grandes orelhas” e a teconologia, adquiriu uma importância maior.
Em 13 de setembro de 1993, o embaixador em Washington, Jacques Andréani, assistiu entre cerca de três mil convidados o histórico aperto de mão dos líderes israelense Yitzhak Rabin e palestino Yasser Arafat, acolhidos na Casa Branca pelo presidente Bill Clinton. Em seu despacho no dia seguinte ao Quai d’Orsay, o diplomata queixou-se de que nem a Europa e as Nações Unidas tinham sido citadas nos discursos dos protagonistas, apesar dos precedentes esforços de França e Noruega nas negociações para um acordo de paz. No papel de simples espectador, Andréani acabou envolvido pela “extrema emoção” do momento: “Para todos, quais sejam as interrogações e complicações futuras, o instante era excepcional”.
Mas igualmente atentivo, não deixou escapar nenhum detalhe da cerimônia. “O que mais me impressionou foi a contraste entre a atitude de Arafat e de Rabin. O primeiro, tão consciente que possa ter sido dos riscos assumidos, estava visivelmente dominado pela satisfação de estar ali, ser reconhecido, aclamado, rodeado no centro de Washington. Sua jubilação transpareceu do início ao fim. Rabin estava sob uma tensão extrema, mexendo os pés, tirando e recolocando seu discurso no bolso, olhando o relógio e dirigindo seu olhar para todo lado, menos para o centro do grupo no qual só estava separado de Arafat pelo presidente Clinton”, escreveu.
Para ele, Arafat, conhecido pela “eloquência e a emoção”, pronunciou um discurso de “incrível sobriedade”. Já Rabin, um “homem duro”, teve palavras em que “transbordava a emoção”, traída também pela “voz trêmula e a expressão de seu rosto”. Segundo o diplomata, Arafat foi “racional”: estamos determinados a conviver com vocês, sua segurança tem mais a ganhar satisfazendo nossas aspirações do que deixando nossas queixas sem resposta. Já o apelo de Rabin aos palestinos foi “patético”: “Um soldado que o combateu toda sua vida, lhe diz: chega de mortos”.
O analista Bruno Cautrès, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po) define um primeiro momento de arranque da política externa de Emmanuel Macron, cujo ápice teria sido a recepção ao presidente americano Donald Trump no desfile militar na avenida Champs-Elysées, na data nacional do 14 de julho, como uma imagem simbólica, sem a indicação de uma real alteração das bases da diplomacia da França.
– E há um segundo momento – acrescenta Cautrès -, que é a etapa europeia. A agenda internacional de Macron é, hoje, bastante dominada pela questão da Europa. Ele aposta muito seu crédito internacional em sua capacidade de se impor como aquele que promoverá uma forte impulsão europeia. Ma suas proposições estão, hoje, em suspenso por causa dos recentes resultados das eleições na Alemanha, da situação na Espanha e dos votos nem duas regiões italianas.
Para o analista, a diplomacia no mundo mudou desde a Segunda Guerra Mundial, com a aparição de centros de decisão mais diversificados, com variados atores, seja no campo público ou privado.
– Não estamos mais na época em que grandes diplomatas negociavam tudo em grandes conferências. Os canais diplomáticos mantêm sua importância, mas não é mais o modelo descrito por Raymond Aron, no qual as grandes potências faziam e desfaziam a ordem mundial. Há evoluções ligadas à governança multipolar. E quem poderia imaginar a atual importância do Gafa (Google, Apple, Facebook e Amazon) no mundo? Hoje, Google e WikiLeaks podem, em um dia, criar um terremoto internacional.
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