Neymar: o iluminado

A Torre Eiffel foi iluminada com as cores do PSG e, com direito a um “Bem-vindo Neymar Jr.”, numa operação custeada pelo clube parisiense e criticada por políticos franceses. ©PSGinside

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS“Dream bigger”, “Rêvons plus grand” (sonhe maior) é o ambicioso slogan bilíngue do Paris Saint-Germain (PSG) desde que o clube passou sob o controle de investidores do Qatar, diminuto e rico país do Golfo Pérsico, em 2011. Com a ousada e histórica contratação de Neymar, a equipe da capital francesa foi catapultada a um novo status no futebol europeu e mundial, em busca de seu próximo objetivo: o cobiçado troféu da Liga dos Campeões, até hoje ausente das estantes de seu emblemático estádio, o Parc des Princes.

Fundado em 1970, o PSG passou a disputar a Primeira Divisão do campeonato francês a partir de 1974, e o primeiro título na competição veio em 1986. A façanha se repetiu quase uma década depois, em 1994. A conquista seguinte na Liga francesa só foi ocorrer na administração qatariana, que após injetar milhões de euros e contratar jogadores de qualidade superior enfileirou uma inédita série vitoriosa entre 2013-2016, interrompida na última temporada pelo Monaco, clube do Principado.

Arnaud Hermant, autor dos livros “PSG Confidencial”, “O PSG, o Qatar e o dinheiro: investigação proibida” e de uma biografia de Zlatan Ibrahimovic, a última estrela a passar pelo clube antes da chegada de Neymar, segue de perto os passos da equipe parisiense desde o início dos anos 2000. Na sua opinião, a primeira revolução no PSG aconteceu em 2011, quando o Qatar Sports Investment (QSI) adquiriu 70% do clube, por cerca de 40 milhões de euros (os 30% restantes foram comprados dois anos depois, por quase 30 milhões de euros). Nasser Al-Khelaïfi, CEO do fundo soberano de investimentos, tornou-se presidente da equipe parisiense, que já havia sido comandada no passado por nomes como o do célebre estilista Daniel Hechter ou de Michel Denisot, do grupo de mídia Canal Plus. A segunda revolução foi deflagrada na semana passada, com a milionária compra de Neymar, o que faz o PSG contar, pela primeira vez em seus efetivos, com um potencial candidato ao reputado troféu Bola de Ouro, o que representa um bônus na hora de negociar com patrocinadores e na capacidade de atrair visibilidade e recursos.

A chegada do Qatar revolucionou o PSG e também o futebol francês – diz Hermant. – É inimaginável o que aconteceu. Em 2008, o clube quase caiu para a Segunda Divisão. Havia um déficit muito grande em tudo, também de imagem, e os qatarianos foram obrigados a investir de forma colossal e muito rapidamente para recuperar o tempo perdido e tentar alcançar equipes com as quais querem rivalizar, como Real Madrid, Manchester United, Bayern Munique, Barcelona e Juventus. Neste caminho, cometeram alguns erros, principalmente em contratações de jogadores e também na escolha de Patrick Kluivert como diretor esportivo, no ano passado, e agora estão retificando o tiro.

Raí, Ronaldinho, Leonardo e Thiago Silva, alguns dos brasileiros da história do PSG.

Nos últimos seis anos, o Qatar desembolsou mais de 700 milhões de euros na compra de cerca de sessenta jogadores, entre eles nomes como os de Ibrahimovic, Ángel Di María, Edinson Cavani, Javier Pastore, Julian Draxler, Grzegorz Krychowiak, David Beckham e os brasileiros Thiago Silva, David Luiz e Lucas Moura. A última renovação das instalações do Parc des Princes foi concluída em abril do ano passado após 34 meses de obras, ao custo de 75 milhões de euros. O centro de treinamento Ooredoo (ex-Camp des Loges, rebatizado em 2013 pelo nome do patrocinador, a telefônica qatariana), em Saint-Germain-en-Laye, nos arredores de Paris, foi reformado, mas já está com os dias contados. O clube prepara um novo centro nas proximidades, em Poissy, projetado como um dois mais modernos e maiores da Europa numa área de 74 hectares, dos quais 30 mil m2 de superfície construída, com inauguração prevista para 2019.

O Parc des Princes passou por uma renovação ao custo de 75 milhões de euros. @PSGinside

No mais recente estudo Football Money League, feito anualmente pelos auditores da Deloitte, o PSG aparece na sexta posição entre os clubes europeus que mais geraram receitas na temporada 2015-2016, com um total de 520,9 milhões de euros. À sua frente estão apenas Manchester City (524,9 milhões), Bayern Munique (592 milhões), Real Madrid (620,1 milhões), Barcelona (620,2 milhões) e Manchester United (689 milhões). O campeonato Francês também recebeu um impulso financeiro do país árabe via a compra, em 2012, de parte dos direitos de transmissão televisiva pelo canal catariano beIN Sports.

Os investimentos do Qatar, abundante em petróleo e gás natural, se multiplicaram em países europeus nos últimos anos. Só na França, possui ainda hotéis de luxo em Paris, Cannes ou Nice. No hipismo, a célebre competição internacional disputada desde 1920 no hipódromo de Longchamp se tornou o Qatar Prêmio Arco do Triunfo, para assombro dos tradicionalistas. Os qatarianos possuem ainda participações acionárias em empresas francesas como Total, Vivendi, Veolia, LVMH ou Printemps.

Para Pascal Boniface, fundador e diretor do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris, na sigla em francês), e também autor dos ensaios “Futebol e Globalização” e “Geopolítica do Esporte”, o projeto de Doha vai além de investir no exterior para obter vantagens econômicas, com vistas a sua independência para o dia em que suas riquezas naturais escassearem.

– Há uma outra estratégia por trás, igualmente global, de investir no esporte para se tornar visível no mapa. O PSG foi incluído nisso na medida em que não era muito caro, e era uma forma de obter muito rapidamente uma grande visibilidade. É o chamado softpower na diplomacia, tentar existir pelo esporte, e comprar uma certa proteção, inclusive midiática. E não é no momento em que o país se sente mais ameaçado por seus vizinhos (Arábia Saudita, Bahrein, Egito, Emirados Árabes Unidos ou Iêmen suspenderam relações diplomáticas com o Qatar, acusado de apoiar grupos terroristas na região) que se vai mudar esta estratégia, pelo contrário – avalia.

Em junho passado, o secretário-geral do partido de extrema-direita Frente Nacional (FN), Nicolas Bay, propôs a nacionalização do PSG como solução para obstruir o controle do clube pelo Qatar, país suspeito de pactuar com o terrorismo. À parte o debate político, Boniface resume a polêmica PSG-Qatar em um aspecto:

– Os torcedores do PSG estão felizes, pois hoje têm uma melhor equipe. E no conjunto, os demais clubes também estão felizes, porque o campeonato é valorizado. Houve críticas por parte de Jean-Michel Aulas, presidente do Lyon, que acusou uma luta desigual por causa do volume infinito de dinheiro do clube parisiense. Mas no geral, para aqueles que apreciam o esporte, o investimento do Qatar no PSG é bem visto. Para aqueles que não gostam de futebol, é mal visto. A divisão de opinião está entre os que gostam e os que não gostam o futebol.

Para o brasileiro Marcos Martins, parisiense de adoção e torcedor do PSG, “rola uma certa hipocrisia” nesta questão:

– Enquanto todo mundo está ganhando, se fica quieto. O futebol ganha, o Estado vai arrecadar impostos na transferência e nos cinco anos de contrato do Neymar. Mas basta o resultado não aparecer ou se notar alguma falcatrua que o Qatar será apontado como o primeiro responsável. É um ponto sensível, no dia em que as coisas não forem muito bem…

Martins é mais do que um simples torcedor. Em 2000, aos 17 anos, desembarcou na capital francesa para jogar nas categorias inferiores do PSG. Como estrangeiro, tinha direito a um contrato com um pequeno salário, alojamento, vestuário, escola e alimentação.

– Poderia ter ficado no Auxerre, que tinha fama de clube revelador e com uma estrutura melhor do que a do PSG na época. Mas quando houve o interesse deles, não hesitei em assinar. Tinha a história do Raí, teve o Paulo César Caju, mais o glamour de Paris. Era mais tentador, embora mais difícil – conta.

O brasileiro Marcos Martins desembarcou em Paris no início de 2000 para jogar no PSG. ©Arquivo pessoal

O sonho de passar para o grupo de profissionais não se concretizou, mas Martins acabou elegendo a capital francesa como morada. Recentemente, participou de um jogo comemorativo no centro de treinamento, com a presença de ex-jogadores do grupo principal.

– Aproveitei para revisitar as instalações do clube, e está tudo bem diferente, muito melhor. A estrutura mudou bastante. Mas não houve milagre antes, foi tudo feito na era Qatar.

Com a chegada de Neymar, ele comprou dois carnês para a temporada 2017-2018, por 507 euros cada, com direito a assistir a todos os jogos do campeonato francês no Parc des Princes. Como coproprietário de uma agência de turismo, espera logo rentabilizar o investimento.

Com o número de turistas brasileiros que vai querer ver o Neymar jogar aqui, em pouco tempo recupero o que gastei. Mas também vou querer eu mesmo assistir jogos – assinala.

Com as recentes reformas promovidas no estádio, a capacidade do Parc des Princes alcançou 47.929 lugares. O clube vendeu cerca de 34 mil carnês de acesso anual para os jogos no período 2016-2017. Após amargar anos atrás de seu eterno rival Olympique de Marselha, o PSG hoje lidera o ranking de afluência de público na França, com uma média de 46.160 torcedores na temporada passada. No nível europeu, o clube parisiense ocupa o 24° lugar, entre a Inter de Milão e o Atlético Madrid. O Barcelona, ex-equipe de Neymar, aparece na segunda posição, com uma média de 77.944 espectadores por jogo.

Anthony Vivien, 38 anos, relembra seus tempos de torcedor parisiense desde a pré-adolescência, impulsionado pela adoração ao ídolo David Ginola, que atuou no PSG entre 1992-1995. Por muitos anos membro da torcida organizada Virage d’Auteuil, hoje é um espectador independente no estádio. Atualmente, há apenas uma torcida oficial, a CUP (Collectif Ultras Paris). Todas as demais foram dissolvidas após duas mortes ocorridas em jogos, em 2006 e 2010, e a aplicação um plano anti-hooligan no Parc des Princes.

– O preço dos carnês de ingressos anuais subiu. O público em Paris se tornou consumidor, não é mais torcedor. Aqui não temos a cultura do futebol como em outros países. E tivemos os atentados, a difícil conjuntura econômica. Nem todo mundo aceita que os atletas ganhem tanto dinheiro e não tenham o comportamento adequado para ganhar a confiança dos torcedores. Mas aos poucos as coisas estão mudando novamente. Espero que com Neymar possa se ter de volta o clima de torcida dos tempos de Raí e de Ronaldinho – desabafa em tom de nostalgia.

Anthony Vivien ao lado de Thiago Silva, do PSG e da Seleção Brasileira. ©Arquivo pessoal

Vivien também não é um torcedor normal. Em 2006, criou a associação “Les Titis du PSG”, que ajuda os jovens dos centros de formação do clube sem continuidade na equipe profissional a prosseguirem suas carreiras esportivas ou escolherem outra profissão.

A chegada dos qatarianos em 2011 me aterrorizou, porque sou um grande entusiasta dos jovens do centro de formação, e os novos donos do clube desembarcaram com uma política de ganhar o máximo de troféus, preferindo fazer jogar estrelas. Houve um período de indecisão, mas agora se sente uma nova política de valorização da formação, inclusive com a construção de um novo centro para 2019.

Para ele, a história e os valores fundamentais do clube não podem ser esquecidos:

Nos primeiros anos, os qatarianos quiseram varrer o que havia sido feito antes. Funcionou, porque fomos campeões da França. Mas foi violento para um grande número de torcedores. Não nos reconhecemos nos valores, foi muito brutal. Mas nas últimas duas temporadas há um esforço de retomada a história do clube. Eles compreenderam que não poderiam simplesmente ignorar o passado do PSG.

Vivien tem uma explicação para o fato de o PSG ter estancado na fase das quartas de final da Liga dos Campeões desde 2013: a diferença da Liga francesa em relação aos principais campeonatos nacionais europeus.

Não temos jogos de alto nível em cada fim de semana como ocorre nas competições de outros países. Temos bons jogadores, mas falta isso.

Editor-chefe da revista mensal de futebol francesa “So Foot”, Javier Prieto Santos acredita que para o Qatar o futebol é, sobretudo, um “imenso meio de comunicação”. Um dos sucessos da gestão dos qatarianos, segundo ele, foi a promoção de uma forte identificação do clube com a capital francesa, como forma de internacionalização.

– Antes, o PSG não representava Paris – diz ele. – Os qatarianos apresentaram uma imagem mais global do clube, e associaram o PSG a todo o imaginário da cidade, à Torre Eiffel, aos Champs-Elysées, ao Lido, ao Trocadéro, como uma alavanca de promoção no estrangeiro. Paris é universal, e o PSG não era. Os dirigentes anteriores não haviam pensado nisso, não tinham esta ambição, foi ideia dos qatarianos.

Prieto Santos acredita que o Qatar quer fazer de Neymar o “mel que vai atrair abelhas”, e assim transformar o status do clube.

– O PSG sempre foi um trampolim para outras equipes importantes. E mesmo que o clube tenha evoluído, isso continua.Contratando Neymar, a intenção é de inverter esta tendência e se afirmar como um destino atraente para grandes jogadores. O PSG ainda tem muito atraso em termos de merchandising, de imagem, de popularidade na Europa e em outros continentes. É ainda um clube jovem na categoria de alto nível. Mas com Neymar, prova que entra no grupo dos grandes. Alexis Sanchez e outros jogadores que antes não cogitavam em atuar no PSG, talvez passem a refletir de outra forma. Mas a partir de agora todo mundo vai querer altos salários – alerta.

Segundo ele, a contratação de Neymar terá para o PSG um efeito similar ao “efeito Ronaldinho” no Barcelona:

– Jogadores queriam atuar ao lado dele, era um desafio. Acho que Neymar vai abrir a porta para outros craques, antes inacessíveis para a França, virem para o PSG. Vai ser algo melhor para o campeonato e o futebol franceses do que para o próprio jogador. Neymar não é ainda suficientemente maduro, Paris pode lhe virar a cabeça. Já há uma pressão no Brasil, pois é o único craque da Seleção, e aqui vai-se esperar dele coisas maravilhosas pelo preço que custou. No nível esportivo será algo ótimo para o PSG, mas não penso que seja para ele – conclui.

No início, Marcos Martins confessa que não era favorável à transferência de Neymar, embora agora diga estar feliz:

Achava que ele não tinha que sair do Barcelona. Todo grande jogador brasileiro virou grande porque chegou num time como o Barcelona e se impôs. E o Neymar sai do Barcelona como o número 2. Esportivamente, eu não viria, mas impossível responder estando do lado de fora.

Já Anthony Vivien comemora a chegada do craque brasileiro:

– Espero que possamos ganhar logo a Liga dos Campeões para que não sejamos mais zombados pelo Olympique de Marselha (campeão do torneio em 1993). Faltava ao PSG um jogador que dê dribles, espetáculo, que ouse e saiba superar a linha adversária. Desde Ronaldinho não temos um jogador assim.

Para Arnaud Hermant, com Neymar o PSG bascula numa outra dimensão:

– Talvez ainda não se consiga vencer a Liga dos Campeões, mas o objetivo permanece. Neymar é jovem, é brasileiro, um verdadeiro símbolo. Quer ser o número 1, quer que o clube gire em torno dele, e que lhe sejam dados os meios para ganhar a Bola de Ouro. Ibrahimovic havia sido um grande golpe, mas não tem a mesma aura e talento. O PSG não deixou Marco Verratti partir para o Barcelona, e ainda roubou Neymar dos catalães. Foi algo enorme.

O analista Pascal Boniface vê dois fatores na decisão de Neymar:

– Há o fato de que vai ganhar muitos mais do que os demais jogadores, e isso poderá criar tensões no vestiário. Mas no Barcelona, a equipe não era construída em torno dele, como será aqui. Às vezes, as pessoas preferem ser rei em seu próprio reino do que vice num império.

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