“Na democracia, você não insulta, não ataca a vida privada, não mente”, diz diplomata francês famoso por seus tuítes

Gérard Araud, que assistiu à ascensão de Trump nos EUA e respondeu a Bolsonaro em rede social, diz que mundo não será o mesmo ainda que onda populista de direita seja derrotada; ele critica também viés ‘bonapartista’ de Macron. ©JF Paga

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Na madrugada em que Donald Trump venceu as eleições presidenciais americanas, em 9 de novembro de 2016, Gérard Araud, então embaixador francês em Washington, foi extraído de seu relativo anonimato ao expressar seus sentimentos em sua conta pessoal no Twitter. “Após o Brexit e essa eleição, tudo a partir de agora é possível. Um mundo desmorona diante de nossos olhos. Uma vertigem”, escreveu, deflagrando uma polêmica. Dois anos depois, em 19 de dezembro de 2018, o diplomata francês não hesitou em responder ao presidente Jair Bolsonaro, que havia declarado em um vídeo ser “simplesmente insuportável viver em certos lugares da França” por causa da imigração. Araud rebateu com um lacônico e irônico tuíte: “63.880 homicídios no Brasil em 2017, 825 na França. Sem comentários”.

Aposentado desde abril deste ano, o ex-embaixador, agora com a palavra liberada das obrigações de sua função, acaba de lançar na França o livro “Passaporte diplomático – quarenta anos no Quai d’Orsay” (ed. Grasset), memórias de sua longa carreira em diferentes países e em importantes postos na ONU e na Otan. Gérard Araud conversou com O Globo na capital francesa sobre a crescente ameaça do populismo, os governos Trump e Bolsonaro e o delicado momento da relação bilateral Brasil-França.

O senhor abriu sua conta pessoal no Twitter em abril de 2014, a pedido do diretor de comunicação do Quai d’Orsay (o Itamaraty francês), mas admite ter sido um erro ecrever o tuíte na noite da vitória de Trump na eleição presidencial americana…

Era a noite da eleição, às 2h de 9 de novembro, estou na residência, desmoronado, porque me digo que após o Brexit e Trump será a vez de Marine Le Pen na França. Significa que há uma crise profunda de nossa sociedade, que ninguém viu chegar, e por isso escrevi esse tuíte, o qual apaguei em um minuto. Mas por falta de sorte, 2h nos EUA eram 8h na França, e foi repercutido pela mídia francesa (e americana também). Para mim, foi um momento de grande solidão e bastante desagradável. Foi um erro publicá-lo, mas não atacava Trump, e tinha razão no mérito. Hoje se sabe, e o Brasil é um exemplo, há por todo lado esta rebelião de nossos cidadãos contra o sistema e, de uma certa forma, contra nós, as elites.

Por outro lado, o senhor não se arrepende de sua resposta ao presidente Bolsonaro.

Sim, desse tuíte não me arrependo. Fui diplomata por 40 anos e sou patriota, há o amor por seu país. Quando se têm dirigentes populistas no poder em uma democracia liberal, como no Brasil, nos EUA e agora no Reino Unido, vemos como eles se comportam. As pessoas de esquerda estão erradas em crer que um populista é um conservador como qualquer outro. Um populista governa também contra os conservadores. O populista pisa sobre os próprios princípios da política. Na democracia, há o respeito entre as pessoas, você não insulta, não ataca a vida privada, não mente. Há um mínimo de regras de vida em sociedade. E os dirigentes populistas zombam totalmente dessas convenções. Há todo um conjunto de regras de boa educação, que nossas mães nos ensinaram, e eles não estão nem aí. Vide os insultos de Bolsonaro em relação a Brigitte Macron. E se descobre que, ao final, parte da população não considera isso grave. Habitua-se a tudo. Torna-se uma nova normalidade, isso que é grave. Me pergunto o que ocorrerá quando Bolsonaro e Trump desaparecerem da cena política. Tenho dúvidas se as coisas voltarão a ser como antes. A utilização do Twitter é uma arma muito forte, se pode falar diretamente ao eleitorado. Para mim, a primeira lição é a degradação do discurso político. Se vê isso nos recentes debates da Câmara dos Comuns britânica, no Brasil, na França. A maneira como as pessoas atacam Emmanuel Macron não é mais a política que se fazia há dez ou vinte anos. Mesmo se esses populistas forem derrotados, entramos em um novo mundo.

Como o senhor vê este novo período de governança no Brasil?

Diria que a antiga classe política e dirigente tem responsabilidade nesta revolta do eleitorado. O Brasil nos ofereceu nestes dez últimos anos situações de instabilidade política, de corrupção, e se pode compreender que o homem da rua diga que está farto e que vai virar a mesa. A única maneira é ouvir os eleitores e se perguntar por que eles querem virar a mesa. É porque eles não têm mais acesso à mesa. É preciso fazer um exame de consciência e escutá-los. Isso é a democracia. Poderia ser a mesma coisa com os coletes amarelos na França. A sorte de Macron é que os coletes amarelos não acharam um porta-voz, mas era o mesmo mecanismo. Marine Le Pen está no sistema há trinta anos e não é crível para canalizar a cólera. Existe uma cólera em todas as sociedades, e a missão dos políticos é responder a ela e não menosprezá-la. As elites perderam o senso do que representa a vida das populações.

Qual sua análise da nova política externa brasileira?

O Brasil comete um erro pensando que obterá benefícios ao se alinhar a Trump. Quando Trump diz “America first”, significa “America alone”. Quando o Reino Unido negociar um tratado de livre comércio com os americanos, haverá sangue britânico nos muros. Os americanos praticarão a relação de forças mais brutal. E para o Brasil será igual, terá de aceitar as condições americanas. Trump não tem nenhuma afeição, só acredita na relação de forças. Não tem aliados, amigos ou inimigos. Trata os chineses como o faz com o britânicos e vice-versa. Que o filho de Bolsonaro seja o embaixador nos EUA é uma ilusão, não haverá nenhuma consequência na visão de mundo de Trump. Dois continentes estão ausentes da política de Trump, a África e a América Latina. Na América Latina, lhe interessa o México, por causa da imigração, e a Venezuela, por causa da atual crise política. Para o resto do continente, é a total indiferença. Trump não tem política externa, mas temas e obsessões.

Surpreende a indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington?

Na França, isso seria tecnicamente possível, mas não se faria. Esses dirigentes populistas pisam nos costumes, na dignidade. É uma maneira também de dar uma banana para as elites tradicionais: “Faço o que quero, pois eu sou o povo”.

Como o senhor acompanhou a recente disputa entre Bolsonaro e Macron, com ataques verbais recíprocos?

Não penso que a reação de Macron tenha sido cem por cento a melhor. Pode parecer paradoxal, mas ele também é um dirigente populista, mas de centro. Não tinha nenhuma vida política, chegou aos 39 anos, sem experiência. Foi eleito contra os partidos tradicionais e varreu pessoas que estavam no Parlamento há vinte ou trinta anos. E nele também se vê manifestações desta vontade de ser diferente. Eu o aconselharia a ser mais prudente, por vezes, em suas intervenções. Falar da França como potência amazônica? E a ideia de fazer uma reunião com os países amazônicos em Nova York? Posso entender que os países amazônicos digam para França se ocupar da Córsega. Sabemos bem que há a Guiana, mas sejamos sérios. Mas Macron tem um pouco este lado Bonaparte, “sou o rei do mundo e não há problema que não possa resolver”. Ele sofreu a brutalidade do comportamento de Bolsonaro, mas penso que poderia ter sido mais diplomata e mais delicado.

Como sair do impasse atual na relação bilateral Brasil-França?

A burocracia continua a entre os dois países e é do interesse das empresas trabalharem em conjunto. É uma pena que tenha ocorrido isso tudo, mas passará. É como a canção francesa de Léo Ferré, “Avec le temps”, com o tempo tudo passa. Será preciso esperar. Enquanto isso, se tenta trabalhar nos temas que não fazem as capas de jornais.

Como representante da França na ONU, o senhor participou de negociações da luta pelo clima. Como vê, hoje, a posição brasileira?

É o mesmo que Trump, algo que faz parte do manual dos populistas. Mas, como já disse para o presidente Macron, a luta contra as mudanças climáticas, de uma forma geral, não é decidida pelos governos. Exige uma mudança de modo de vida, e são as sociedades que decidem. Não serve para nada fazer um debate ideológico, sobretudo com pessoas como Trump e Bolsonaro, que estão fora do raciocínio, lançam slogans e dizem falsidades. É preciso confiar na sociedade brasileira, nas cidades, nos estados federais.

Para o senhor, Macron deve “permanecer o adulto” na relação com Trump e Bolsonaro…

Macron sabe muito bem o que pode esperar de Trump. E não é muito. Em Washington, nada mais funciona na administração, os funcionários sabem muita pouca coisa. Trump disse que é fácil trabalhar com ele, pois ele toma todas as decisões. Quando estava em Washington, muitas vezes Paris me ligava e eu dizia: “Não sei de nada e não saberei de nada, é preciso que o presidente ligue para Trump”. Estava na sala da diretora da CIA no dia em que Trump anunciou a retirada das tropas da Síria, e ela ficou sabendo ao mesmo tempo que eu! Uma hora mais tarde, meu chefe de Estado-maior ligou para o chefe de Estado-Maior americano, e ouviu: “Sinto muito, acabei de saber há uma hora”. Se está em uma outra dimensão. Tenho certeza de que funciona da mesma maneira no Brasil. Os dirigentes populistas estão convencidos de que a administração está contra eles e que para governar é preciso quebrar com tudo.

O senhor diz que seu paradoxo é acreditar, ao mesmo tempo, na razão e na loucura dos homens.

A História é uma grande coleção de atrocidades. Sou francês, sou racionalista. Mas vivemos um período de loucura e de paixões. Veja os militantes antivacinas ou os terraplanistas. Nos anos 1960, quando era criança, fazíamos fila na escola para sermos vacinados. Se acreditava na ciência. E hoje se passa ao inverso. A palavra do especialista não existe mais. E há as mídias sociais. Antes, havia quatro bêbados em um bar que falavam uma bobagem, mas aquilo ficava só entre eles. Hoje, falam nas redes sociais e se tornam quatro mil imbecis. É grave. Há a difusão de falsas informações. Trump legitima os sentimentos de ódio e de desprezo que antes não se ousava formular. O rebaixamento do discurso político é também o rebaixamento do discurso geral. É algo inquietante.

Para o senhor, o mundo não será mais o mesmo depois da eleição de Trump.

Ele é o sintoma de uma crise, nos EUA e nas sociedades ocidentais em geral. O Brexit é um pouco a mesma coisa. A crise populista na Europa é conhecida há dez ou vinte anos, mas ninguém viu Trump chegar em 2015. A economia estava bem, com menos de 5% de índice de desemprego, e todos os americanos diziam o Partido Democrata venceria as eleições. E veio Trump. Os americanos mergulharam em estudos e descobriram que metade da população viu seus salários estagnarem ou mesmo baixarem nos últimos trinta anos. A isso se acrescentou a crise de 2008. Nenhum banco foi nacionalizado. Centenas de milhares de dólares do dinheiro do contribuinte foram para o sistema financeiro. Esse valor foi reembolsado, mas quando um cidadão perdia sua casa, não havia recursos para ele. Uma parte da sociedade americana se revoltou, considerou que o sistema estava viciado. Havia uma cólera. E o gênio de Trump foi compreender essa cólera, apreendê-la e se tornar seu porta-voz: “Vocês tem razão de estar em cólera, as elites os traem, os imigrantes mexicanos vêm violar suas mulheres, vocês estão em perigo”. Ele alimentou e jogou com os medos da população, em vez de acalmá-los, e funcionou. Por trás, há uma população completamente fanatizada, que crê nele de forma quase religiosa, da ordem de 35% a 40% dos americanos. Pelo lado dos democratas, o problema é que estão persuadidos que a eleição lhes foi roubada e não fazem realmente um exame de consciência. No máximo, dizem que Hillary Clinton era uma má candidata. E todos são obcecados por Trump, seu último tuíte, sua última mentira. Diria que se faz um pouco demasiado de moral, em vez de se fazer política e refletir sobre o que se passa no país. É essa a lição para todas as democracias que enfrentam o mesmo problema. Há uma parte da população que se julga excluída do sistema, e desigualdades que nunca foram tão fortes.

O senhor sempre defendeu a ordem internacional, e, hoje, o populismo rejeita o multilateralismo. Como fica?

O desafio do populismo é global e também em política exterior. É o nacionalismo e o retorno das fronteiras. É a indiferença em relação aos direitos humanos e o egoísmo sagrado. Um elemento positivo em Trump é que ele não quer a guerra. É um isolacionista à antiga. Possui um orçamento militar gigantesco, mas espera poder não utilizá-lo. Se vê bem no Irã, por exemplo, e se sabe muito bem que quer evacuar o Afeganistão o mais rapidamente possível, são seus militares que o retêm.

Por isso que demitiu John Bolton do posto de conselheiro de Segurança Nacional, reputado por sua linha-dura?

Exatamente. Me surpreendi que Bolton tenha se tornado conselheiro de Segurança Nacional. Para John Bolton, não há um problema que não possa ser resolvido por um bombardeio.

Qual sua expectativa com as próximas eleições presidenciais americanas, em 2020?

A eleição é apaixonante. Há uma nova direita que se define no mundo: a direita de Trump, de Bolsonaro, de Boris Johnson ou de Marine Le Pen. Todas elas têm características nacionais, mas também elementos comuns, como o caráter anti-imigração, a questão das fronteiras, o protecionismo, o nacionalismo. É o fim da direita internacionalista neoliberal. A questão que se deve colocar agora é: “E a esquerda?”. Estamos saindo de uma era neoliberal, que era definida à direita por Margaret Thatcher e Ronald Reagan e, à esquerda, por Tony Blair e Bill Clinton. Era uma esquerda bastante gestionária da sociedade. Há uma nova direita, mas qual será a nova esquerda? E a toda hora essa questão é colocada nos EUA. A escolha do candidato democrata é apaixonante por isso. De um lado, há o aparelho democrata tradicional, que quer ganhar as eleições ao centro, com Joe Biden. E há outros que dizem que é preciso ir para a esquerda, no caso, Elizabeth Warren e Bernie Sanders. Todos os americanos que você encontrará dirão que não é possível, que Warren é demasiado à esquerda, que será derrotada. Não sei. Ela faz uma bela campanha. Biden é velho, e se tem a impressão de que não acredita. E o caso da Ucrânia poderá também custar caro a Trump. Os democratas moderados têm na reserva Kamala Harris. É uma eleição interessante e importante para o mundo inteiro. Há uma redefinição. Será que os EUA vão para a esquerda?

Por que o senhor diz que “o pior está diante de nós”?

As pessoas falam do problema da globalização, que destruiu muitos empregos industriais. O que chega é a automação, os robôs, e a inteligência artificial. Esses dois fenômenos vão destruir milhões de empregos, sobretudo da classe média inferior, que já se julga vítima do sistema. Há dezenas de profissões que vão desaparecer. Obviamente, as pessoas otimistas dizem que serão criados novos empregos. Mas imagine a transição, vai levar de vinte a trinta anos para se criar uma nova economia. No Silicon Valley, as pessoas dizem que em trinta ou quarenta anos não serão mais necessários 60% da população. É uma crise profunda, e sobre a qual, evidentemente, os populistas podem surfar.