FERNANDO EICHENBERG/ ZERO HORA
PARIS – “Amo minhas mãos que acariciaram teu corpo, amo meus lábios que beberam em ti. Amo teu corpo, tua alegria que se derrama em mim quando sinto tua boca, a possessão que me queima de todos os fogos do mundo, o jorro de meu sangue dentro de ti, teu prazer que surge do vulcão de nossos corpos, labaredas no espaço, abrasamento”. A incandescente e passional declaração é trecho de uma carta escrita em julho de 1970, de François para Anne. Ele é François Mitterrand (1916-1996), presidente da França de 1981 a 1995. Ela é Anne Pingeot, seu amor clandestino por mais de 30 anos. O grande amor de sua vida.
Desde quinta-feira passada, os franceses descobrem nas estantes das livrarias do país, entre curiosidade, admiração e estupefação, 1.218 missivas remetidas, entre 1962 e 1995, pelo amante apaixonado. Por cerca de um ano, a editora Gallimard manteve em segredo a preparação de Lettres à Anne (Cartas a Anne, 1.280 págs.), volume lançado às vésperas da efeméride do centenário de nascimento do célebre líder político francês (em 26 de outubro). A iniciativa da publicação partiu da própria Anne Pingeot – nem sempre de acordo com as diferentes versões sobre a relação do casal secreto propaladas ao longo de décadas -, hoje com 73 anos, que se dedicou a transcrever toda a correspondência para a edição do livro. Simultaneamente, a Gallimard lançou Journal pour Anne, diário íntimo mantido por Mitterrand entre 1964 e 1970, uma atípica obra confessional de 496 páginas, feita de textos, colagens gráficas e ilustrações surrealistas, com recortes de imprensa, bilhetes de cinema ou reproduções de quadros.Página do diário íntimo escrito por François Mitterrand para sua amante Anne – entre 1964 e 1970 -, repleto de colagens e grafismos.
Casado com Danielle Gouze desde 1944 e pai de dois filhos adolescentes, Mitterrand tinha 46 anos quando conheceu Anne Pingeot, então com 19 anos, em 1962, na praia de Hossegor, no litoral Atlântico. A primeira carta da extensa correspondência data de 19 de outubro do mesmo ano: “Aqui está, querida Anne, o Sócrates que havia evocado ontem à noite em Hossegor. Envio o meu exemplar, que muitas vezes me acompanhou em minhas viagens e que é para mim como um velho amigo. Este pequeno livro será o mensageiro da recordação fiel que guardo de algumas horas de um belo verão”. Nas cartas, a literatura é desculpa para falar do amor, e os arroubos líricos do missivista encobertam suas considerações políticas. Para o crítico literário Jérôme Garcin, Mitterrand foi “nosso último presidente a venerar a língua francesa, usar o pretérito do subjuntivo, conhecer o cromatismo das metáforas e poder escrever, como aqui, vibrantes poemas de amor”; e acrescentando um traço inédito, o “retrato dourado de ouro fino do monarca florentino, volúvel, infiel e cínico”.
“Amar é um sofrimento. Hoje, quatro dias depois, um mal indistinto me oprime. Seria a perspectiva de um nova e longa separação? Seria a vaga impressão de que tua fadiga é lassidão?”, se pergunta Mitterrand em julho de 1965. “Te amar é em si uma obra apaixonante”, declarou em julho de 1967. “Nosso amor me dá o sentimento do eterno”, escreveu em agosto de 1969. “Imaginar que tu pertenças a um outro, fisicamente, é atroz”, confessa, ciumento, em setembro de 1970. “O sol passa em viés pelas janelas. Um pouco de poeira brinca no interior. Escuto os pássaros. O ar é água fresca. Bebe-se. Andarei um pouco de bicicleta antes do anoitecer. Para desenferrujar os músculos. E respirar, respirar. Penso no amanhã à noite, em nossa viagem do dia seguinte, aos odores que nos esperam”, escreve, bucólico, em março de 1974.
Sua derradeira carta data de 22 de setembro de 1995, escrita em Belle-Île, três meses antes de sua morte: “Vejo na minha vida uma claridade. Fora de ti, tudo obscurece. E eis que não sei mais o que fazer de mim, meu tempo acaba. Uma verdadeira conspiração! Mas sairei deste estranho estado, rídiculo e pitoresco. Já é muito difícil saber o uso que devemos fazer de nossa vida! O resto é mais simples, pois basta decidir. Minha felicidade é pensar em ti e te amar. Sempre me destes mais. Fostes a minha possibilidade de vida. Como não te amar ainda mais?”.
Mazarine, a filha oculta do casal, nascida em 18 de dezembro de 1974, em Avignon, foi desvendada ao mundo em 1994, fotografada pela revista Paris Match ao sair de um restaurante na capital francesa na companhia do pai, deflagrando um escândalo na época. A sempre discreta Anne Pingeot fez sua primeira aparição pública no enterro do amante, no cemitério de Jarnac, em 11 de janeiro de 1996, abraçada à filha Mazarine e junto à mulher oficial, Danielle Mitterrand (1924-2011), numa imagem que entrou para os arquivos da história. “Felizmente que minha mãe nunca leu estas cartas”, disse Jean-Christophe Mitterrand, um dos filhos de François e Danielle Mitterrand, em desabafo sobre a correspondência publicada entre seu pai e a amante.
François chamava Anne carinhosamente de “Animour”; ela o apelidou de “Cecchino”, equivalente italiano de “pequeno François”. Há quem verá frivolidade no tratamento recíproco dos amantes. Mas, como escreveu o poeta Fernando Pessoa na voz de seu heterônimo Álvaro de Campos: “Todas as cartas de amor são/ Ridículas./ Não seriam cartas de amor se não fossem/ Ridículas./ Também escrevi em meu tempo cartas de amor,/ Como as outras,/ Ridículas./As cartas de amor, se há amor,/ Têm de ser/ Ridículas./ Mas, afinal,/ Só as criaturas que nunca escreveram/ Cartas de amor/ É que são/ Ridículas. (…)”.François e Anne, sob a Acrópole de Atenas, na Grécia, nos anos 1970. ©Anne Pingeot