Michel Butor (1926-2016): “célebre desconhecido”

Michel Butor2 ©Ed Alcocok:M.Y.O.P.
Michel Butor, escritor, poeta e ensaísta. ©Ed Alcock/Reprodução

FERNANDO EICHENBERG

PARIS – Michel Butor vivia recluso em meio a suas paredes abarrotadas de livros em sua casa na localidade francesa de Lucinges, próxima à frontreira suíça. O lar foi batizado de “À l’écart” (à parte), um pouco à maneira de sua presença na paisagem literária e intelectual francesa. Inclassificável, o prolixo escritor, pensador, ensaísta, poeta e viajante morreu nesta quarta-feira, aos 89 anos, deixando um vasta e eclética obra. É ele um dos principais expoentes do movimento literário “Nouveu roman” – com “La Modification” (1957) – , ao lado de nomes como Alain Robbe-Grillet, Claude Simon e Nathalie Sarraute. Mas é também um poeta assumido e autor de numerosos ensaios sobre literatura, arte, pintura, música, fotografia ou viagens. “Se diz seguido de mim que sou um célebre desconhecido”, comentou certa vez.

Na efeméride dos cem anos da morte de Jules Verne (1928-1905), entrevistei Michel Butor, um entusiasta da obra do autor de “Vinte Mil Léguas Submarinas” ou “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, e a quem também dedicou escritos, numa conversa que deixou lembranças pela sua simpatia e generosidade.

Aqui a entrevista, feita na época para o hoje extinto Caderno Mais!, da Folha de São Paulo.

O escritor Michel Butor fala da influência de Júlio Verne, que morreu há cem anos, sua relação dúbia com o progresso e a guinada da crítica, que passou a valorizar suas obras, antes consideradas apenas “literatura para a juventude”

Quero ser grande

FERNANDO EICHENBERG
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O escritor francês Michel Butor foi um dos primeiros a escrever um artigo de análise da obra de Júlio Verne, em 1949, quando o autor de “Viagens Extraordinárias”, especialmente lembrado neste ano pelo centenário de sua morte, ainda não havia alcançado notoriedade mundial. Viajante incansável, leitor voraz e “possuído pelo demônio da escrita”, como definiu num trecho autobiográfico, Butor proclama sua admiração por Júlio Verne, um dos escritores de que reivindica influência e que se tornou, ao longo dos anos, seu objeto de estudo.
Ele descobriu o autor de “Vinte Mil Léguas Submarinas” (Ediouro) e “Volta ao Mundo em 80 Dias Dias” (Ática) ainda adolescente, na biblioteca de sua avó. “Era algo muito surpreendente para mim; eu acompanhava os personagens nas suas descobertas do mundo”, disse em entrevista à Folha, de sua casa em Lucinges, pequena cidade francesa na fronteira com a Suíça.

Folha – Do seu primeiro artigo sobre Júlio Verne até hoje, o que mudou na percepção da obra dele?
Michel Butor –
Ele era considerado um escritor para a juventude, não se dava atenção suficiente às suas qualidades literárias, e tentei mostrar que era um escritor notável. Hoje, fico muito feliz em ver que é estudado com tanta paixão por tantas pessoas. O que disse há mais de 50 anos encontrou um eco, há novas edições interessantes, pesquisadores sobre Verne e cada vez mais nos damos conta de que se trata de um escritor apaixonante. Sua obra é impressionante, com quantidades de mistérios que estudamos e esclarecemos pouco a pouco.

Folha – O sr. menciona que muitos livros adotados pelos jovens não foram originalmente escritos com esse fim, como “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe, e “As Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift. E no caso de Verne?
Butor –
Verne escreveu para os jovens, o que, realmente, não foi o caso de Defoe e Swift. Foram os pais e professores que pensaram que seria interessante indicar esses livros para crianças e adolescentes. Já todos os grandes romances de Verne foram lançados numa publicação destinada à juventude, chamada “Magasin d’Éducation et Récreation” [Revista de Educação e Recreação]. Isso implicava um certo número de censuras e ele não podia dizer tudo o que quisesse. Seu editor, Hetzel, vigiava-o de muito perto.
Temos os manuscritos de Verne, com anotações freqüentes de Hetzel, que dizia “você não pode escrever isso por causa de nosso público, jovens e crianças, e dos pais que acompanham a leitura de seus filhos”. Mas isso não o impediu de conseguir dizer muitas coisas usando diferentes caminhos.

Folha – Hetzel, inclusive, o obrigou a alongar certos romances.
Butor –
Ele era obrigado a publicar nessa revista de educação dois romances por ano, o que fez com que, ao final, publicasse 62 romances. Era algo enorme. Ele não descansava. Pode-se compreender que, após um certo tempo, houvesse um pouco de nariz-de-cera.
Mas, mesmo assim, ele se renovou de forma notável dentro desse conjunto. Preocupou-se muito em escolher diferentes regiões do mundo. Cada livro descreve mais ou menos uma viagem, um trajeto que permite mostrar essa ou aquela região do mundo. Empenhou-se em sempre mudar esses itinerários e também em mudar os temas e formas que utilizava.
Há um número de temas bastante importantes que encontramos, sobretudo nos primeiros livros, como o da busca do pai ou de algum membro da família. A busca do pai, da mãe ou da criança perdida. Outro tema caro a Verne é o de Robinson Crusoé: um personagem ou um grupo se encontra perdido numa ilha deserta e é obrigado a refazer, em parte, a história da civilização.

Folha – O sr. foi influenciado por escritores como Marcel Proust, James Joyce ou Ezra Pound mas também por Verne. Onde podemos encontrá-lo em sua obra?
Butor –
Verne foi tema de alguns de meus ensaios. Há também um de meus livros que estuda um pouco o meio ao qual ele se dirigia. Trata-se do último romance que escrevi, já há bastante tempo, chamado “Degrés” [Graus], que descreve o funcionamento de uma escola. É um pouco datado, pois é um colégio dos anos 50. Mas isso tem a ver com Verne. Ele escrevia para jovens dessa idade, inseridos nesse sistema educacional, principalmente para melhorar o sistema e tornar as coisas mais interessantes para os alunos.
Em alguns de meus livros, utilizei citações suas em meio a citações de outros escritores. Muitos de meus livros são como um “patchwork”, mosaicos de mármores de diferentes cores. Verne foi útil para me dar uma cor particular.