FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
LISBOA – Uma é carioca, atriz, documentarista e cronista, 40 anos de vida, assume sua vaidade, as redes sociais, tem medo de avião, e gosta de inverno. A outra é portuguesa, poeta, 33 anos, evita a exposição, não tem Instagram, é andarilha, e gosta de verão. A primeira, Maria Ribeiro, viajou do Rio a Lisboa para o lançamento da edição portuguesa de sua compilação de crônicas, “Trinta e Oito e Meio” (lançado no Brasil pela ed. Língua Geral), e finaliza o livro “40 Cartas e um Email que Nunca Mandei” (ed. Planeta), que será lançado no início do ano que vem. A segunda, Matilde Campilho, vive hoje em Lisboa após uma temporada de três anos no Rio – de 2010 a 2013 -, e está na quinta edição lusitana de sua primeira obra de poemas, “Jóquei” (ed. Tinta da China; no Brasil, o livro foi lançado pela ed. 34). Além das diferenças de temperamento, as duas mantêm uma nítida convergência de interesse: a escrita. O Globo reuniu as duas escritoras em Lisboa para uma descontraída conversa nestes tempos de crescentes intercâmbios literários luso-brasileiros. Prova disso é que elas voltarão a se encontrar em novembro, quando Matilde Campilho mediará na cidade do Porto o debate do projeto “Você é o que lê”, que além de Maria Ribeiro conta ainda com Xico Sá e Gregório Duvivier.
Maria, você já disse que lançou seu livro quase como “pedindo licença” para entrar no mundo literário. Matilde, você levou um tempo até poder dizer “Eu sou poeta”. Hoje, vocês são escritoras assumidas. Como foi isso?
Matilde Campilho: Fui aprendendo devagar que a literatura não é um país, não se precisa de um documento para entrar. Tem a ver com tudo o que a gente vai aprendendo desde criança. A poesia que aprendemos na escola, tanto no Brasil como em Portugal, era mais pesada, mais séria. E até decidir se assumir é um passo. E o mundo te diz “calma, calma”. Dizia isso a mim mesma, e quanto mais eu lia, mais sentia que o que tinha para dizer não era uma novidade. E se não tinha novidade para dizer, porque haveria de escrever. E devagarinho, distraidamente, quando relaxei, fui escrevendo, e o livro aconteceu quase por acaso. E porque havia publicado poemas no Globo e na Folha de S. Paulo, um dia me escreveram da editora Tinta da China. Falaram que estavam à procura de um autor português, mas que não tinham ligado antes porque acharam que eu era brasileira (risos). Lancei o livro primeiro aqui, depois no Brasil, o que me encheu de ternura, porque foi escrito em sua maior parte no Rio – o livro aqui foi chamado de quase carioca. E fui conhecendo pessoas em feiras literárias, como na Flip, e percebi que são como eu, que comem, dormem, saem para beber com os amigos, e que não precisava de um passaporte para entrar. Não precisava ter tido aquele medo todo e nem uma coisa nova e genial. Precisava trabalhar. E embora esta minha posição meio contra tanta exposição nas redes sociais, as pessoas estão hoje lendo muito. Em escrita e em leitura, vejo apenas uma coisa muito grave: estamos perdendo a caligrafia.
Maria Ribeiro: Hoje em dia me acho cronista. Desde pequena sempre quis ser escritora. Mas queria escrever minha redação e ir ler lá na frente da sala de aula. Queria ser vista e ouvida, ter o feeedback instantâneo (risos). Comecei a fazer teatro muito acidentalmente, como quem faz balé ou inglês, e foi dando certo. Mas o mesmo tempo tem um lado meu que sempre teve um certo preconceito com o entorno da profissão de atriz, de as pessoas ficarem acreditando que são melhores do que as outras, da vaidade de só falar de si. Mas também não podia dizer que era escritora, e ser escritora-atriz era pior ainda. Como atriz dizia que queria ser como a Charlotte Gainsbourg. Quando comecei a dirigir, queria ser a Sofia Coppola. E quando quis publicar meus escritos, me perguntei: “Caraca, quem quero ser?”. Não tinha um modelo. Meu livro é menor, com uma capa mais girlie, com coração, quase dizendo “Licença aí, galera, eu só sou uma atriz, não estou querendo competir”. Só que foi legal, as pessoas gostaram.
Matilde, você começou a ler poesia, “que não era algo muito normal”, por volta dos 20 anos de idade. Segundo vocês, ler poesia hoje se tornou mais normal ou ainda menos?
MC: Acho que as pessoas hoje em dia querem coisas mais curtas. Estão mais acostumadas com haikus, haikais, é o Twitter, o Facebook, o Instagram com a legenda. E muitas vezes, acho que é o medo das palavras poeta e poesia que não deixa as pessoas chegarem ao outro lado. E quando chegam, percebem que não há lado de lá nem de cá, é tudo o mesmo. Uns de uma maneira mais lírica, outros de forma mais concreta, mas a poesia é muito feita de dia a dia. E hoje em dia há uma geração inteira que pode fazer como o Frank O’Hara, que começa um poema com uma Coca-cola, até uma poesia super elaborada. O John Ashbery mistura, parece que fala de Coca-cola e junta três palavras que nos faz pensar qual o significado daquilo. E até chegarmos a tudo isso, é dia a dia. Porque o ser humano é feito de praticidade e de eterno. Temos esta eterna confusão de sermos seres muito concretos e sonhadores, para além do que se vê – quase para citar os Los Hermanos.
MR: Acho que este medo da palavra poeta e da poesia seja um pouco culpa do que aprendemos na escola. Acho que não rolou um update. Continuamos lendo os mesmos poetas. Acho chato os poetas românticos, quero algo que fale de 2016 de alguma forma. Ao mesmo tempo, temos sempre de olhar para a palavra como se a estivéssemos vendo pela primeira vez. Quando se lê Manoel de Barros, por exemplo, a gente sente este encantamento pela palavra. Algo que não podemos perder para todas as coisas da vida, para não ficarmos blasé em relação às coisas. A Matilde é a ABL do Baixo Gávea, e acho que a poesia precisa do Baixo Gávea, do bar, da rua. Você fez um bem enorme à poesia. Para mim, subverteu. Se eu olho para você, digo que é surfista, não poeta.
Vocês sentem uma necessidade visceral de escrever?
MR: Minha vida inteira eu precisei escrever. Sempre fui muito angustiada, e, ao contrário da Matilde, sou muito medrosa. Sempre tive medo de avião, de viajar, de ficar sozinha. Mas estou melhorando. E escrever era uma maneira de elaborar as coisas. Mas depois que comecei a escrever crônicas profissionalmente, só faço com um revólver na minha cabeça. Mas ao mesmo tempo, depois que escrevi parece que estou com com cinco quilos a menos. Tento dar sentido para o que eu vivi, quero comunicar, mas não completamente, deixando uma abertura para que as pessoas completem aquilo com a história delas. Xingo a mãe na hora de escrever, mas depois dou graças a Deus que tenho o compromisso de fazer isso. É um Rivotril. E sou muito caótica, e senão fosse o texto não conseguiria organizar para mim.
MC: Aqui sempre me espanto ainda hoje com a quantidade de gente e de coisas novas. E a escrita era o que eu tinha à mão. Desde muito nova via as coisas aconterecerem, dentro daquele prato, num boteco, dentro dos olhos de alguém, como explosões solares. Tinha de fazer algo com isso, mas primeiro tinha de me concentrar. Primeiro preciso olhar o mundo, e depois passar para o papel, mas não com alguma expectativa, mas num tipo de peneira de garimpo, e transformar isso em algo. A escrita era o que mais estava relacionado com o dia a dia, poderia escrever em qualquer lugar, no ônibus, sentado em um banco lá fora que ninguém vê, com a folha e o papel. Mas ainda assim a poesia é um nicho muito pequeno em qualquer lugar do mundo, e dentro da literatura vai ser sempre. É difícil, mas sempre gostei do difícil. E sempre fiz porque precisava fazer. Muitas vezes perguntam o que queria dizer com tal poema. Na maioria das vezes não lembro, e quando lembro, finjo que não lembro. Eu respondo: “O poema é teu”.
Vocês percebem um aumento recíproco de interesse literário entre Brasil e Portugal?
MR: Estou lendo “Jerusalém”, do Gonçalo M. Tavares. Valter Hugo Mãe está arrebentando no Brasil.
MC: Por aqui também acontece isso. E a internet, as feiras literárias ajudam muito nisso. Muita gente no Brasil já sabe quem é o Ricardo Araújo Pereira, nós aqui sabemos quem é o Gregório Duvivier. E pelas novas gerações as pessoas vão buscando outros autores.
MR: Nélson Rodrigues nunca tinha sido editado em Portugal, só o foi agora. É inacreditável. Tem o Antonio Prata, o Mario Sá Carneiro, é um mix. Pode-se ler os dois. É maravilhosa esta troca.
Como é Matilde por Maria e Maria por Matilde?
MR: Acho que a Matilde tem aquela pureza do Manuel Bandeira, de fazer uma poesia que me representa, que tem o prosaico, o café com leite. Ela coloca as coisas graves com uma delicadeza, como se não fosse nada, e isso me toca profundamente. Fiquei apaixonada pela poesia dela. E depois fui ver as entrevistas, e tem carisma, ela é gata. Não parece uma poeta, você olha e acha que ela vive na praia. Acho que ela é brasileira e eu sou portuguesa. Tenho horror a praia.
MC: Eu li isso nas suas crônicas, você reza para chegar o inverno. Quase fiquei anotando as coisas que nos diferem.
MR: É verdade, tem algo assim de “a gente não tem nada a ver uma com a outra”.
MC: As suas crônicas são muito pessoais, né? A gente fica sabendo muitas coisas sobre você. E o ritmo na escrita demonstra que provavelmente é o seu ritmo na vida. No desenho da página é como se visse como você se move numa sala. Ao ler, é quase como se estivesse ouvindo você contando aquelas histórias. Você não tem medo de falhar, e acho isso maravilhoso. Você se assume como é. Isso é uma humildade aliada a uma ternura. Fiquei feliz em te ler. É desempoeirado. E para mim, que vivi muito tempo no Rio, têm muitas coisas engraçadas, porque há muitas referências cariocas. Tem o pedalinho na Lagoa. Muitos portugueses não vão saber o que é pedalinho na Lagoa, mas isso também vai ser bom para irem atrás e descobrir (risos).
Vocês são diferentes no mundo…
MC: Hoje em dia, no mundo em que a gente vive, as pessoas misturam um pouco trabalho com a vida privada. Gosto de dar entrevistas e falar do meu trabalho, mas depois, quando vai para a coisa mais íntima, já fico com um pouco de pé atrás. Por que na verdade é a minha intimidade, a minha vida do dia a dia que me permite gerar poesia, crônica ou até o programa de rádio que faço. Quando escrevo, aquilo é a minha mão, mas têm muitas outras mãos, são cabeças invisíveis. Quando lanço o que escrevi para o mundo, quase sempre é 90% ficção. É uma mistura da minha intimidade com as minhas leituras, os meus passeios na rua, que gera um ser sem nome.
MR: Eu sou o oposto da Matilde, uma egotrip absoluta. Mas esta segurança de que você fala que eu tenho, Matilde, não é verdade. Eu tenho 40 anos, fui ficando mais segura. Mas no início eu morria de medo, e ainda hoje acho muito mais legal quem escreve menos sobre si. Mas eu não consigo. Esta distinção de que você fala, absolutamente não tenho. Eu gosto de aparecer no jornal, de estar bonita na foto. Tenho uma frivolidade, talvez por conta de ser atriz, numa vaidade como deformação da profissão. Mas isso enquanto domino, porque sou muito controladora, e muito rápida, neurótica e acelerada. Tenho um personagem ali que estou vendendo, por mais que ele seja extremamente real e vulnerável. Outro dia o Domingos de Oliveira me ligou e disse: “Nossa, Maria, você é uma pessoa tão frágil, tão delicada, porque no Saia Justa você parece tão provocadora e polêmica?”. Ali sou uma persona. Há uma dramaturgia no programa, me coube este papel. Já a crônica vem de um lugar meu mais vulnerável e real. Mas que topo vender enquanto estou controlando. Quando juntei todas as crônicas que eram publicadas semanalmente e li de uma vez, pensei: “Sou louca, isso aqui é pior do que sair na revista Caras dentro da banheira”. Mas é o que sei fazer, e talvez goste. Não queria gostar, mas gosto.
Como vocês se posicionam no mundo de hoje?
MC: Está um terror viver neste princípio de século 21, numa época de transição. Acho que o homem, principalmente o ocidental, abusou da sorte. Quisemos ser quase deuses, achamos que controlamos tudo. É assustadoramente a decadência de uma época que achamos que iria durar para sempre. Nenhuma época, muito menos dourada, dura para sempre. A história se repete muito. As civilizações só entram em decadência quando o homem abusa da sorte. Por um lado, é tenebroso viver nesta época, mas há este outro lado bom de que a maioria das pessoas tem uma voz. Difícil é ouvir uma voz calma e tranquila no meio desta gritaria toda. Mas há muita gente disposta a fazer diferente. Se for pela via da literatura e da poesia, que bom. Maria dizia que minha poesia faz companhia, é do dia a dia. Quem bom se isso chegar a uma pessoa entre dois empregos tenebrosos e naqueles cinco minutos fizer um efeito. E pode oferecer um princípio de continuidade de pensamento, que faz falta. É uma geração que, apesar de tudo, acho vai dar certo, porque há muitas cabeças pensantes, há muita gente atenta aos outros.
MR: Sou otimista. Ao mesmo tempo em que fico muito preocupada com a onda conservadora na Europa e agora também o Brexit e esteja triste com o que está acontecendo no Brasil – o impeachment da Dilma (Rousseff) foi uma porrada na nossa democracia, não importa o quão ruim ela tenha sido como presidente -, as pessoas estão indo para a rua, e isso é muito novo, começou há três anos, em 2013. Nunca tivemos educação política, existe um politiquês de forma que as pessoas não participem da vida pública. Acho muito triste Michel Temer na presidência do Brasil, mas, por outro lado, estamos indo para a rua.
Vocês duas se expõem de forma diferente.
MC: Estamos vivendo hoje num mundo tão rápido, de internet, de vídeo, em que as pessoas precisam ver tudo. Às vezes, numa conversa de amigos parece que se está numa reunião com power point, porque as pessoas estão contando e já querem mostrar no celular. “Mas não precisa, conta para mim como que é”. É a mesma coisa com os livros. Muita gente que diz que não gosta de ler. Por isso é bom ler em público. O fato de eu estar ali ajuda, porque a presença do ser humano que mexe as mãos, e tem o som. É algo que chama, como faz o cinema, a música. Chego em casa e digo que é este disco do Cole Porter que vou ouvir agora para relaxar. E ouvir a pessoa lendo em voz alta tem disso. E é uma sorte a Maria não ter este medo de dar a cara, seja a cara física ou a emocional, que está nas crônicas. Eu tenho contrário na minha poesia, o que faço é como desenhar aventuras da minha imaginação, não exatamente da minha vida real. E por outro lado, quando as levo no corpo, para ler para o público… Gostaria ter mais disso, de poder me deixar levar mais à vontade, pois tenho muita dificuldade nisso. Tem sido para mim um parto fazer estas coisas. Me convidam e eu vou, porque viajo, conheço pessoas, e é bom ver elas ouvindo.
MR: Mas eu tenho muito mais fascinação pela obra quando não sei da pessoa. O que mais tenho medo é de perder o mistério. Eu me exponho tanto, e conforme as pessoas vão tendo uma ideia a respeito do que eu sou, quero mudar. Fico de saco cheio de mim mesma. A Matilde, por exemplo, não tem Instagram. Tenho muita inveja das pessoas que não têm Instagram. Adoraria que meu Instagram fosse só pelo motivo de divulgar o trabalho, mas não é. Eu gosto daquela merda, preciso me comunicar, tenho um prazer imenso nisso.
MC: Mas é que eu gosto muito da vida lá fora. Fora disso, desta representação.
MR: Mas não é assim. A vida aqui dentro (segurando o celular) é imensa. A coisa que mais amo no mundo é gente. Gosto de conhecer as pessoas profundamente, as cidades, sou muito intensa. Acho grave é a dispersão. Fiz amigos pelo Twitter. Às vezes, estou insegura e coloco uma foto minha em que estou com uma luz boa, para as pessoas dizerem “Linda”. Aí coloco um post político, e sou muito xingada. Outro dia botei uma foto da Dilma, e em um dia perdi três mil seguidores. Mas eu gosto desta porra. E invejo qa Matilde que não tem Instagram, e aí fico pensando: “Mas quem é ela?”.
MC: Mas não tem a ver com querer manter um mistério. Olhe o jeito como nos conhecemos no ano passado, caminhando na rua. Estava no Alfama, na vida real.
MR: Mas eu te conheci virtualmente. Já me relacionava com você. Fiquei um mês me relacionando com a sua obra, e você não tinha nada a ver com isso. Houve um encontro, e foi por meio virtual.
MC: Mas este tipos de encontros são quase unilaterais. Agora sim, somos dois seres humanos a conversar.
MR: Nunca é, Matilde. Estou me esforçando muito para ser inteligente aqui para você. Não existe verdade. É como documentário, um recorte da vida pelo cara que está com câmera.
MC: O bom da vida é que não tem edição. Não tem o “Corta!”.
MR: Sou contra, acho que a vida tinha de ter replay, para poder modificar. A análise para mim é replay. E acho que meu livro tem muito a ver com Freud…
MC: Mas o maravilhoso da análise é que ela não ensina a apagar nada. Ensina a dar um passo atrás, mas levando na mochila exatamente o que você fez. É aquela história de você estar olhando o quadro com o nariz encostado nele. Está vendo? Não. Então chega um pouco para trás. Mas o quadro não mudou, é o mesmo. Também faço análise há muitos anos, e gosto que não tem edição, não tem cortes, ajuda você a dar a volta por outro caminho, examinando exatamente os gestos que você fez.
MR: Mas você vai ressignificando de acordo com a sua maturidade. Fiz recentemente um filme da Laís Bodanzky, “Como nossos pais” (estreia em 2017), é um personagem sofrido. Eu tinha raiva de certas coisas que tinham acontecido comigo, e depois me disse: “Não teria conseguido fazer aquela personagem sem isso”. A gente vai reciclando. Hoje em dia vivo situações, e já penso numa crônica. É quase um mau-caratismo. Mas eu tenho esta contradição: me exponho para caralho no meu livro, e gostaria que as pessoas vissem meus filmes e não soubessem quem eu sou.
- MATILDE PERGUNTA PARA MARIA
Escritora ou atriz, o que você escolhe?
Escritora. Mas na ficha do hotel coloco “atriz”.
Por que não coloca a verdade na ficha do hotel?
Ao mesmo tempo em que posso ter um certo preconceito com a profissão de atriz, ela me libera de um monte de coisas.
- MARIA PERGUNTA PARA MATILDE
Você realmente acha que não se expõe na sua poesia?
Tento não me expor. O engraçado é que às vezes as pessoas acham que estou me expondo em uma parte que não me expus. E muitas vezes me exponho em coisas que as pessoas não reparam. E gosto muito deste jogo.
Você não gostou de ser chamada de “musa da Flip”, que é redutor. Eu, por exemplo, fiquei muito encantada pela sua figura. Você prefere que as pessoas te leiam sem saberem do seu rosto, do seu carisma?
A palavra “musa” tem vários significados possíveis. Se você diz que foi o conjunto que encantou, que ótimo. Gosto de pensar que o que chega às pessoas é o meu trabalho, o que escrevo. Hoje em dia a poesia é muito feita para ser dita, em público, e isso gera uma cumplicidade entre quem fala e quem ouve. Nunca quis não ser Matilde, não ser eu. Sou isso, tenho essa cara, essas mãos. Tenho 33 anos, sou portuguesa, sou mulher, tenho olhos castanhos, quase pretos. E esse pacote levo comigo para onde quer que vá. E acho que temos de ser os primeiros a fazer disso um não assunto. E seja em relação a alguém que escreve ou a um tenista, um jóquei… Tem a ver com o que é por dentro, não por fora. Tem a ver com meu jeito, com a minha cabeça. Não vamos fazer disso um grande tema, enquanto estamos lutando diariamente para tratar de outras coisas. O mundo está muito mais ferido e perigoso do que isso.
- RIO-LISBOA
Verão ou inverno?
Maria Ribeiro: Inverno.
Matilde Campilho: Verão.
Sente a angústia da folha em branco?
MR: Completamente.
MC: Não.
O objeto livro vai acabar?
MR: Nunca. Como diz o Verissimo, no mínimo será usado na decoração.
MC: Não vai acabar, e acho até que vai aumentar.
Um lugar no Rio?
MC: Praia Vermelha.
Um lugar em Lisboa?
MR: A livraria Ler Devagar.
Uma palavra brasileira?
MC: Jabuticaba.
Uma palavra lusitana?
MR: Me apaixonei por uma expressão que ouvi de um taxista outro dia. Elogiei a Carminho, que estava cantando no rádio, e ele disse: “A Carminho me enche as medidas”.
Uma comida no Rio?
MC: Suco de acerola.
Uma comida em Lisboa?
MR: Vou ser óbvia, mas sou tarada por pastel de nata.
Uma supresa no Rio?
MC: Os Dois Irmãos, pela manhã.
Em Lisboa?
MR: A familiaridade.
Uma decepção no Rio?
MC: A violência latente, que sabia que havia, mas que nunca tinha sentido na pele até ter ido morar lá, e que impede muita coisa de acontecer.
Em Lisboa?
MR: O deslumbre com as novelas brasileiras, algo que já deveria ter passado. No sentido de que a gente não faz só novela.
Como define o carioca?
MC: É alegre, venha o que vier. É o mais alegre dos latinos.
E o lisboeta?
MR: Conservador.
Um cheiro do Rio?
MC: O cheiro das amendoeiras quando ainda estão verdes e está úmido.
De Lisboa?
O cheiro do elétrico (bonde).
O que traria do Rio para Lisboa?
MC: Café Pilão.
De Lisboa para o Rio?
Queijo da serra e Matilde Campilho.
Um sonho hoje?
MC: Gosto muito da vida que tenho, das partes boas e das más. Guardo o sonho para escrita, e está ótimo assim.
MR: Levar meus netos num estádio de futebol.