Maria de Medeiros: “Sempre achei que se deveria poder mudar de nacionalidade como de camisa. Deveria ser bem mais fácil. A identidade é algo orgânico, se modificando perpetuamente. É uma esponja, vai captando coisas, repelindo outras, algo em movimento”. ©Victor Hugo
FERNANDO EICHENBERG / REVISTA UP
PARIS – “Quase não fiz viagens de turismo na minha vida”, conta, com singela naturalidade, a atriz Maria de Medeiros, acomodada em sua residência no 14° distrito de Paris. No entanto, é impossível enumerar todos os países por onde já passou até hoje. Seja como atriz ou diretora em uma centena de filmes, protagonista de peças teatrais ou cantora em turnês de seus concertos, ao longo de seus 54 anos ela atravessou uma infinidade de fronteiras nos cinco continentes. Nascida em Portugal e adotada pela França, a capital francesa se tornou para ela um porto aberto para o mundo.
Sua carreira de atriz debutou aos 15 anos, quando o diretor João César Monteiro, um amigo de sua mãe, a convidou para atuar em seu filme “Silvestre”. Desde então, o cinema e o teatro se tornaram sua família e sua profissão. Mais conhecida do público por suas atuações em “Henry e June”, de Philip Kaufman, no papel da escritora Anaïs Nin, ou no cult “Pulp fiction”, de Quentin Tarantino, como Fabienne, a frágil amiga de Bruce Willis, ela coleciona interpretações em obras de diretores das mais variadas nacionalidades. Como diretora e roteirista, se destacou pela primeira vez com “Capitães de Abril”, filme sobre a Revolução dos Cravos em Portugal, selecionado para a competição oficial do Festival Internacional de Cannes de 2000. Como cantora, já lançou três álbuns: “A little more blue”, “Penínsulas & continentes” e “Pássaros eternos”.
Suas peregrinações pelo globo começaram ainda bebê. Seus pais se mudaram de Lisboa para Viena quando tinha poucos meses de vida. Todas suas memórias da infância remetem à capital austríaca, onde a música clássica era onipresente, também por causa de seu pai, António Victorino de Almeida, maestro compositor e pianista. “Viena é um berço para mim, e também cultural. Despertava todas as manhãs com meu pai a estudar no piano. Os compositores de infância que adorava eram Stravinsky, com Petrushka, e Mahler, com a 1° Sinfonia. Conheci-os muito antes de qualquer outra música. Relaciono muito claramente Viena a esse berço musical, à língua – acho o idioma alemão muito belo – e à pintura. Pensei que seguiria nas Belas Artes e seria pintora, e havia a influência de Klimt, Schiele, de toda aquela Escola de Viena. Não podia ter sonhado com berço melhor”, resume. Curiosamente, foi a Áustria que a levou ao francês. Como não havia escola portuguesa em Viena, os pais, francófilos, inscreveram a filha em um liceu francês. “Aprendi a ler e a escrever em francês. No fundo, foi Viena que, depois, me trouxe para Paris”, diz ela, que hoje fala seis idiomas.
Em 1974, aos 9 anos, com a Revolução dos Cravos retornou com a família para Lisboa. Primeiro, se alojaram em hotel ao lado do Parlamento, e quando Maria brincava no parque ouvia os debates dos deputados sobre a nova Constituição do país. Depois, se mudou para uma casa no Bairro Alto, ao lado do Conservatório Nacional de Música. Foi uma época de efervescência e determinante: “Tive uma sorte imensa de viver esses anos pós-revolucionários em Lisboa, em que tudo estava se reinventando. Continua a ser uma cidade repleta de artistas e de criatividade. Por vezes, há períodos em que Lisboa entra em uma depressão, quase em uma falta de autoestima e de confiança em seus artistas e sua cultura. Mas, neste momento, vejo com uma das épocas boas em relação a isso”.
Aos 18 anos, Maria partiu sozinha de ônibus para viver em Paris, acompanhada apenas de seu violoncelo. Na bagagem, levava o sonho de estudar Filosofia, curso que jamais concluiu. Pelos acasos da vida, acabou sendo aprovada no Conservatório de Paris e começou a atuar no teatro, em uma estrada sem volta na carreira de atriz. “No início, fui ajudada por amigos da família aqui em Paris, o que me permitiu morar só em lugares maravilhosos. Minha primeira casa foi no Quartier Latin. Depois, fiquei na rua de l’Abbaye, em Saint-Germain-des-Près, foi fantástico. Mais tarde, me mudei para Montmartre. Ao longo dos anos, tive toda uma trajetória aqui dentro. Quando se muda de bairro em Paris é como se fosse uma outra cidade. Morei também um ano no Quai de Valmy, onde, na época, dava medo caminhar à noite, e hoje é uma festa permanente”.
Universos
A capital francesa, segundo ela, também é marcada por fases. Por vezes, confessa ter dificuldade em conviver com uma certa agressividade do parisiense: “A sociedade francesa é muito antiga e cheia de códigos, e leva tempo para quem vem do exterior decifrá-los. Há aqueles dias de inverno, cinzentos, e alguém nos trata mal, é desagradável. Mas tenho a sensação de que alguma coisa ficou mais solidária desde os atentados. Acho que a cidade está menos crispada e mais benevolente. Estou curtindo muito Paris neste momento”, revela.
A Cidade Luz se tornou, para ela, base de suas descobertas planetárias. Com a peça francesa “Elvire Jouvet 40” (1986), de Brigitte Jacques, viajou em uma longa turnê internacional: “Com essa obra, fui pela primeira vez ao Brasil, Argentina, Nova York. Andamos pela África, no Quênia, Burundi. Também na Europa do Leste. Viajamos por todos os lados. Isso mostra bem como Paris sempre foi para mim uma base para descobrir o resto do mundo”.
“Henry e June” foi totalmente filmado na capital francesa, tanto em cenas externas como em estúdio. Maria foi chamada por sua evidente semelhança física com seu personagem, Anaïs Nin, escritora e amante do também escritor Henry Miller. “Era curioso, porque no filme usaram fotos verdadeiras minhas e dela, tal a nossa semelhança. Outro motivo que ajudou foi o fato de falar diversas línguas. Na minha história de vida, saltava de um idioma para outro de forma muito natural”. O russo é uma língua que gostaria ainda de aprender. No filme “Viagem a Portugal”, de Sérgio Tréfaut, ela interpreta uma ucraniana, em uma experiência singular: “Faço todo o filme falando em russo. Mas não falo o idioma. Nem sei o que estou dizendo, trabalhei com um coach. E ficou uma certa frustração em relação a isso”.
Conhecer cidades e universos diversos é uma das coisas que lhe atrai no métier artístico: “Não cresci com a fascinação pelos símbolos do cinema americano. O que me divertia era a possibilidade, por meio das viagens, de estar em contato com pessoas e culturas muito diferentes. Acho que teria sempre ido para uma profissão que me levasse a isso”, admite.
A canadense Montréal, por exemplo, é uma das cidades que considera “maravilhosa” e para onde sempre aprecia retornar. “Apesar daquele inverno interminável, é sempre uma experiência muito enriquecedora e de grande carinho para mim com as pessoas e os artistas de lá. Trabalhei com o Robert Lepage e fiz vários filmes em Montréal”. Trabalhar na Itália, para ela, é uma “delícia”, e os vários períodos de filmagem no país permitiram que aprendesse o idioma local. “Em Nápoles, atuei em um filme do qual gosto muito, ‘Il resto de niente’, da Antonietta de Lillo. Pude conhecer de forma mais íntima essa cidade extraordinária, repleta de surpresas. Entra-se por um beco escuro e, de repente, surge um palácio incrível”, conta.
Os acasos aconteceram em sua vida mais ou menos da mesma forma. Maria conheceu Quentin Tarantino na cidade francesa de Avignon, durante um encontro de cinéfilos. Ainda em início de carreira, o jovem diretor estava lá para apresentar seu primeiro filme, “Reservoir dogs” (1992). “Era um festival de filmes independentes, que já não existe mais. Achei o filme superinteressante e, ele, completamente fascinante, supervivo, culto, mesmo novinho. Voltamos a nos encontrar uma outra vez no Brasil, na Mostra de Cinema de São Paulo. Tempos depois, me enviou o roteiro de “Pulp fiction”, e me recordo de ter ficado impressionada com a qualidade literária”. Ela não hesitou em aceitar o papel, o que a fez embarcar mais uma vez em um avião, pois as filmagens foram todas feitas nos EUA. O filme, no entanto, nada tinha das grandes produções americanas. “Lembro que era para ser um filme independente e de baixo orçamento. Cheguei no set de filmagens em um dia no qual não atuaria, só para me apresentar. Entrei para conhecer todo mundo, e lá estava uma câmera coberta com plástico e sangue falso por todo o lado. Era tudo bem artesanal mesmo”, recorda, aos risos.
Em movimento
A atriz sugere aos viajantes que leiam autores cujas obras possam, de alguma forma, ajudar a se sentir no ambiente local. Foi o caso para ela em Dublin, onde, enquanto participava de uma filmagem, devorou “Dublinenses” e “Ulysses”, do irlandês James Joyce. “Foi maravilhoso para mim. Caminhava pela cidade e eram as mesmas ruas do livro. As pessoas me diziam que ‘Ulysses’ era muito obscuro, mas eu tive a sensação de entender tudo, de estar dentro daquela linguagem, aquele espírito. Ler Fernando Pessoa em Lisboa também é bom. No México, li Roberto Bolaño, que não é completamente mexicano (nasceu no Chile), e foi igualmente algo muito interessante. É um exercício que recomendo muito”.
Maria, que solicitou a nacionalidade francesa por causa de suas duas filhas, não acredita em uma “identidade fixa”. Defende a ideia de “raízes em evolução”. “Sempre achei que se deveria poder mudar de nacionalidade como de camisa. Deveria ser muito mais fácil. A identidade é algo orgânico, que está perpetuamente se modificando. É uma esponja, vai captando coisas, repelindo outras, algo em movimento. Raízes tem mais a ver com língua, as referências culturais. É a frase de Fernando Pessoa, minha pátria é minha língua. Tem tudo a ver com cultura e muito pouco com fronteiras”.
Nos dias seguintes ao encontro com a UP, Maria de Medeiros partiria para Lisboa, para representar na peça “Um amor impossível”, de Céline Pauthe. Na sequência, voaria para Santo Domingo, na República Dominicana, para as filmagens da adaptação do livro “No país das últimas coisas”, de Paul Auster, dirigida pelo argentino Alejandro Chomski. Depois, trabalharia em Cartagena, na Espanha, na preparação de seu próximo concerto, de musicalidade rock, em parceria com o artista português Paulo Furtado, conhecido como The Legendary Tigerman. Por fim, viajaria ao México para finalizar a pós-produção do filme “Aos nossos filhos”, que dirigiu no ano passado no Brasil, e que tem no elenco a atriz Marieta Severo. “É sempre algo bem-vindo descobrir como se vive em diferentes cidades. Acho que estou em acordo com esta cultura portuguesa, da paixão pelas viagens”, conclui.