FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – A segunda metade do governo do presidente Emmanuel Macron começou sob a ameaça de dossiês potencialmente abrasivos e uma crescente contestação social. Temas como a reforma das aposentadorias, a ecologia, a imigração e o projeto de lei sobre a reprodução assistida prenunciam inflamados debates no Parlamento e na sociedade civil. Para o chamado Ato II de seu mandato, o líder francês se esforça em demonstrar que aprendeu lições da revolta dos coletes amarelos e que pretende encerrar seu quinquênio com um método de governança marcado pelo diálogo e a concertação, sem no entanto renunciar as suas ambições de reformar o país.
Depois de dois anos sem passar pela prova do voto, Macron enfrentará, a partir de março do ano que vem, eleições municipais, departamentais e regionais. Seu caminho até o pleito presidencial e a tentativa de reeleição, em 2022, promete ser repleto de obstáculos.
Aposta ecologista
Em um contexto social conturbado, em que mesmo as forças de ordem do país organizam, no próximo dia 2, uma “marcha nacional da cólera” para denunciar suas condições de trabalho, o presidente adiou para o ano que vem a anunciada reforma das aposentadorias – pensões que correspondem, hoje, a 14% do PIB -, uma de suas principais bandeiras de campanha. Na explicação oficial, o governo quer estender o prazo para ouvir sindicatos e representantes das diversas categorias profissionais e poder apresentar um projeto de maior consenso. “Provavelmente, dei a impressão que queria reformar contra o povo, e, por vezes, minha impaciência foi ressentida como uma impaciência em relação aos franceses. Não é o caso”, justificou Macron em recente entrevista à revista Time. Se depender das ruas, no entanto, as negociações serão bastante laboriosas.
– Essa é a principal reforma social que Macron deseja implementar – diz o analista político Christophe Bouillaud, da Universidade de Grenoble. – Ele pretende, sobretudo, retardá-la para depois das eleições municipais. Muitos grupos sociais já se mostram inquietos. A recente greve do metrô de Paris contra a reforma foi um sucesso. Houve também um forte mobilização de enfermeiros, advogados e outros profissionais (a associação SOS Aposentadorias agrupa 14 profissões liberais). Macron não está conseguindo controlar as ruas, e, na minha avaliação, o Ato II é puro teatro. O método continua o mesmo, e o fascinante é sua incapacidade de fazer uma inflexão de trajetória.
Nesta segunda etapa de governo, diferentemente de muitos de seus predecessores, o presidente optou por manter a mesma equipe liderada pelo premier Edouard Philippe. “Cabe a vocês mudarem”, desafiou em recente reunião do Conselho de Ministros. E para provar que não é o mesmo líder “jupiteriano”, criticado por governar encastelado no Palácio do Eliseu sem atentar para as demandas da população, decidiu tornar o Grande Debate – reuniões com cidadãos, prefeitos e políticos locais -, lançado inicialmente para conter a ira dos coletes amarelos, em uma iniciativa permanente. A polêmica reforma das aposentadorias está entre os temas a serem discutidos pelo presidentes com os franceses nestes encontros informais.
Para Bruno Cautrès, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), as medidas, no entanto, são insuficientes para caracterizar uma significativa virada:
– Macron investe na comunicação sobre a mudança de método, mas existe um sentimento de que sua mensagem se torna difícil de decodificar. Ele ziguezagueia à esquerda e à direita, nos âmbitos nacional e internacional, e há muita agitação em torno de dossiês complicados, como a aposentadoria, a imigração ou a ecologia. Sua mensagem começa a se tornar confusa, com muitas frentes abertas. E as razões que levaram à explosão da cólera ainda estão presentes. Não é com um pouco a mais de poder de compra que vai mudar a percepção de que se vive em uma sociedade injusta e reabsorver todas as desigualdades sociais.
A desaceleração da economia francesa é menos acentuada se comparada à zona euro, mas os indicadores do país ainda deixam a desejar: crescimento de 1,3%, índice de desemprego de 8,5%, déficit e dívida públicos de 3,2% e 99,6% do PIB, respectivamente. Macron elegeu a ecologia como uma das prioridades de seu governo do ponto de vista ambiental e econômico, procurando se impor, inclusive, como uma liderança internacional. No entanto, a aposta, segundo o analista Claude Pennetier, do Centro Nacional de Pesquisas Sociais (CNRS, na sigla em francês), ainda não está ganha:
– Há um verdadeiro movimento pela ecologia, e Macron tenta recuperá-lo para si. Mas seu espaço político junto aos agricultores é fraco. E não consegue tomar medidas fortes em relação aos agrotóxicos e fertilizantes, por exemplo. É bastante hesitante e não possui o controle deste debate ecológico. Os resultados na luta pela ecologia no país ainda são muito modestos. Para que ele alcance uma dimensão internacional, é preciso que a França tenha mais coragem nessas questões. Mas Macron é muito hábil, e a situação no plano internacional é tão catastrófica com as loucuras de Donald Trump, o Brexit de Boris Johnson ou o Brasil de Jair Bolsonaro, que consegue aparecer como um elemento de equilíbrio e responsável.
No debate já deflagrado sobre a reprodução assistida, o presidente terá de enfrentar a oposição de políticos conservadores e os protestos da Igreja e de associações católicas, a exemplo do que ocorreu com a lei sobre o casamento homossexual, aprovada no governo François Hollande.
– O movimento de evolução da sociedade é muito forte, e isso é algo que não conseguirá ser detido – diz Pennetier. – Segundo as pesquisas, a maioria da população é a favor, mas a Igreja já toma posições contrárias. Macron corre o risco de perder um pouco do apoio da direita tradicional já conquistado até agora.
Sem alternativas
Nos últimos dias, o presidente surpreendeu a todos, inclusive seu próprio campo político, ao relançar o explosivo tema da imigração, sempre tão caro à direita e à extrema direita. O governo cogita limitar o reagrupamento familiar e também restringir auxílios sociais e o acesso dos imigrantes ilegais ao atendimento de saúde gratuito garantido pelo Estado. O presidente assumiu a intenção de “falar calmamente sobre a imigração”, para a qual defendeu uma política “humana e eficaz” no país. Um primeiro debate parlamentar sobre o tema está previsto para esta segunda-feira.
Cautrès rejeita a “explicação simplista” de que Macron, ao ressuscitar a discussão sobre a imigração, deseja enviar sinais aos eleitores da direita:
– Penso, sobretudo, que é uma vontade de mostrar aos franceses que ele não pode ser classificado ou rotulado. Se dizia que a segunda metade de seu mandato seria social e, de repente, ele adentra no terreno da direita. Acredito que deseja consolidar a imagem daquele que, em suas próprias palavras, “olha a realidade de frente”. E creio também que se trata de fazer um pouco de diversionismo em meio a uma atualidade social tumultuada, com um crescente movimento de greves que recebe a adesão de um maior número de pessoas.
Nas próximas eleições municipais, o noviço partido governista República em Marcha, ainda em processo de estruturação em nível local, reconhece suas dificuldades na conquista de prefeituras do país e afirma modestas ambições. Para a eleição presidencial de 2022, Macron conta com a divisão das oposições, a falência da esquerda e a ausência de um nome à direita em condições de superá-lo nas urnas.
– O principal trunfo de seu campo político é o próprio Macron – sustenta Bouillaud. – Nessa personalização da vida política, ele considera, com razão, que é o único em seu partido com capacidade e com carisma para direcionar a opinião pública. Ele é o chefe. Em 2022, haverá muitas pessoas que o detestarão, mas não terão uma outra alternativa clara. A ameaça para ele seria a emergência de um verdadeiro líder na direita republicana, capaz de reagrupar os conservadores. Mas as personalidades da direita, hoje, são medíocres. Tudo indica que enfrentará novamente, no segundo turno, a extrema direita, e a Reunião Nacional de Marine Le Pen é um partido que parece ainda não ter condições de vencer uma eleição presidencial.