Francis Bacon ganha retrospectiva no Centro Pompidou, em Paris

Retrospectiva de Francis Bacon relaciona escritos de Ésquilo, Nietzsche, T. S. Eliot, Joseph Conrad, Georges Bataille e Michel Leiris com as obras do artista. Fotos ©Fernando Eichenberg

FERNANDO EICHENBERG

PARIS – O pintor anglo-irlandês Francis Bacon (1909-1992), um dos artistas mais celebrados da segunda metade do século XX, rejeitava com vigor a onipresente classificação de suas criações como uma obra caracterizada pela temática da violência: “Não se pode jamais esquecer que um quadro não pode ser tão violento como a própria vida. E a vida é tão violenta…”. Diante de seus portraits disformes e distorcidos e de suas criaturas entre o humano e o animalesco, o rótulo colou com indolência como um sentimento geral, mesmo contra a sua vontade.

Bacon não via “nada de hediondo” em suas telas. “Se você é capaz de representar o mais diretamente possível o que a vida tem de apaixonante, então, se vai classificar isso no domínio do horror”. A um crítico que comentou “se ao menos Bacon pudesse pintar uma rosa”, retrucou: “Uma rosa é extremamente mortal. Quando você vê uma bela rosa, no espaço de um ou dois dias, ela declina, sua corola se retrai, e ela se esvanece. Então, existe realmente uma grande diferença entre uma rosa e os meus temas? (…) Procuro, se possível, tornar o tema tão intensamente real como aparece para mim. Ao fazer isso, pode ocorrer que expresse fortemente sua dimensão mortal. Pois, mais a paixão pela vida é forte, mais a consciência da morte deve ser aguda”.

Para o escritor Milan Kundera, o olhar do pintor pousa no rosto como uma “mão brutal”, buscando captar sua essência, o “diamante escondido nas profundezas”. Segundo o autor de “A insustentável beleza do ser”, as figuras baconianas, apesar das distorções a que são submetidas, nunca perdem “sua condição de organismos vivos”. Para o filósofo Gilles Deleuze, os personagens criados pelo artista são “forças vitais”, dinâmicas e pulsantes. Para o escritor Philippe Sollers, Bacon desembarcou de uma outra galáxia, como um pintor “mutante, marciano, mensageiro da antimatéria”. O também escritor, poeta e etnólogo Michel Leiris, via nas criações do artista uma “espécie de presença real”, dotadas de uma “vida autônoma” de carne e de sangue: “Que se ache bonito ou feio, não importa: uma tela de Bacon é tão viva como a própria vida, ela existe e se dirige a nós, de seu muro, com uma força e um alcance sem igual”.

A arte de Bacon seduziu diferentes escritores e pensadores. E também o cineasta Bernardo Bertolucci, que levou Marlon Brando a uma exposição do artista como fonte de inspiração para o ator em sua interpretação em “O último tango em Paris” (1972) – duas telas, inclusive, aparecem no início do filme: retratos de Lucian Freud et Isabel Rawsthorne, amigos do pintor. Bertolucci conta que mostrou as pinturas a Marlon Brando e disse: “Está vendo isso? Quero que você recrie essa mesma intensa dor. Foi praticamente a única direção que indiquei para ele no filme”. A retrospectiva recém-inaugurada no Centro Pompidou, em exposição até 20 de janeiro de 2020, explora o sentido inverso: intitulada “Bacon em todas letras”, evoca a influência de seis obras poéticas, literárias, filosóficas, extraídas da biblioteca pessoal do artista, com pinturas suas produzidas de 1971 até sua morte, em 1992, aos 82 anos. Os autores selecionados foram Ésquilo, Nietzsche, T. S. Eliot, Joseph Conrad, Georges Bataille e o já citado Michel Leiris. Em seis salas dispostas no espaço da mostra, é exposto o exemplar original que pertencia ao artista e ao mesmo tempo se ouve, em gravações feitas por atores e atrizes, trechos das obras em questão. Bacon assumia uma certa inspiração de suas variadas leituras para suas criações, e colocava a literatura, a poesia, a dramaturgia e a filosofia como um estímulo para seu imaginário. Chegou a dizer que conhecia de memória obras de Eliot ou de Ésquilo.

Para o visitante neófito em relação à obra do artista, não será evidente, no entanto, pela ausência de textos explicativos, fazer a ligação entre os livros e as telas, além da ideia partilhada de uma fascinação pela violência conjugada à beleza, ao erotismo ou ao sagrado. Por outro lado, a retrospectiva já se basta pela exposição de cinco obras do período de 1967 a 1971, e 55 outras – sendo 12 de seus monumentais trípticos – criadas entre 1971 e 1992, emprestadas por coleções públicas e privadas europeias, americanas ou australianas.

Aos 16 anos, Bacon foi expulso da residência familiar quando seu pai, criador de cavalos na região de Dublin, descobriu a homossexualidade do filho. Trabalhou como cozinheiro e decorador de interiores. Em 1927, ao visitar uma exposição de Picasso na capital francesa, decidiu ser pintor. 1971, ano em que começa a atual exposição parisiense, é também a data da grande retrospectiva de Bacon nos nobres espaços do Grand Palais, em Paris, que acolheu mais de uma centena de obras. Até então, só um outro artista vivo, Picasso, em 1966, havia sido celebrado desta forma pelo prestigioso museu francês. Dois dias antes do vernissage, Bacon encontrou seu companheiro, George Dyer, morto por uma overdose de álcool com barbitúricos, no Hotel des Saints-Pères. Os três trípticos em homenagem ao amante – de 1971, 1972 e 1973 – estão presentes na exposição. Ao longo dos anos, suas telas cresceram de cotação. Em 2013, seu tríptico “Três estudos de Lucian Freud” foi desmembrado e vendido por € 106 milhões. Na mostra do Centro Pompidou, figura ainda um tríptico de 1976, antes pertencente à família proprietária do domínio de vinhos Petrus, e depois adquirido em leilão, por € 55 milhões, pelo oligarca russo Roman Abramovich.

Francis Bacon em setembro de 1987. ©Raphaël Gaillarde/Gamma-Rapho-Getty

“É uma questão bastante difícil saber por que uma pintura atinge diretamente o sistema nervoso”, questionava Bacon, que costumava apontar como sua primeira qualidade o fato de ser “receptivo”. Ele sempre refutou as interpretações narrativas de sua obra: “Não se pode explicar a pintura. Há imagens que se pode interpretar, cada pessoa as interpreta como quer. Eu não interpreto nunca. Não interpreto meus quadros nem os dos outros. Não sei interpretar Rembrandt. Porque a arte plástica é um lado do sistema nervoso que fala de pronto sem interpretação”.