FERNANDO EICHENBERG / REVISTA ÉPOCA
PARIS – Rosa Moussaoui entrou para o jornal L’Humanité em 2004, ano do centenário da histórica publicação francesa. “Estou aqui há 15 anos por convicção. É um jornal enraizado nas lutas sociais, na solidariedade internacional e um reflexo de combates ecologistas e feministas. Essa identidade política é extremamente importante para mim. Esse jornal sempre sobreviveu pela vontade daqueles que o fazem e o leem”, diz, assentada na redação situada no número 5 da rua Pleyel, em um moderno complexo de escritórios em Saint-Denis, subúrbio norte de Paris. O tom militante emerge da crise vivida nestas semanas pelo jornal. A secular aventura do L’Humanité, afundado em dívidas, esteve ameaçada de chegar ao fim. No último dia 7, no entanto, o Tribunal de Bobigny concedeu uma sobrevida à publicação e aceitou o pedido de recuperação judicial, com permissão de continuar em atividade por um período de observação de seis meses. Uma nova audiência está marcada para o dia 27 de março.
Não é a primeira vez que as rotativas do emblemático diário francês correm o risco de parar em definitivo. Não muito longe dali, um prédio de amplas curvas e paredes envidraçadas, inaugurado em 1989 e classificado como monumento histórico nacional, é testemunha das consecutivas dificuldades do L’Humanité, também chamado pelos franceses de L’Huma (pronuncia-se “lumá”). A obra, nas proximidades da célebre Basílica de Saint-Denis, foi projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012) para abrigar a sede do jornal. Mas em 2008, sem ter como pagar as contas, a redação se viu obrigada a trocar de endereço e, dois anos depois, vender ao Estado francês a prestigiosa criação do arquiteto brasileiro, comunista convicto, por € 12 milhões. “L’Humanité sempre foi um jornal frágil, desde sua fundação, porque não possui acionistas e não é associado a capitais. Essa fragilidade faz parte de nosso DNA”, admite Rosa.
Fundado em 1904 pelo político Jean Jaurès (1859-1914) como uma tribuna para as correntes do movimento socialista e operário, o jornal acumulou em sua longa trajetória períodos de “luzes e de sombras”, como costumam definir os historiadores. O assassinato de Jaurès, infatigável pacifista, em 31 de julho de 1914 – três dias antes de a França entrar na Primeira Guerra Mundial -, enquanto jantava no Café du Croissant, próximo da então sede do L’Humanité, na rua Montmartre, abalou a publicação. “Jaurès é uma personalidade extremamente importante na França, e sua morte provocou uma guinada. Mas o jornal que deixou como herança acompanhou todos os grandes momentos da vida deste país, no combate pela paz na Primeira Guerra Mundial, nas greves de 1936, na Resistência durante a Segunda Guerra Mundial (foi publicado clandestinamente por quatro anos), na Liberação e em todas as lutas anticoloniais até hoje. Em 2005, fomos o único jornal diário a dizer não à Constituição europeia”, orgulha-se Rosa.
A partir de 1920, o jornal se tornou órgão oficial da Seção Francesa da Internacional Comunista (SFIC), que viria a ser o Partido Comunista Francês (PCF), com direito a foice e martelo sob o título na primeira página. Passadas sete décadas, em 1994 a menção na capa ” Órgão central do PCF” foi substituída por “Jornal do PCF” até desaparecer completamente em 18 de março de 1999, como parte de uma reforma editorial em meio a mais uma crise financeira. “Temos ainda uma grande proximidade com membros do PCF, somos ligados a este mundo comunista, mas também ao restante do movimento progressista e social. Hoje, é um jornal arco-íris que permite a pessoas de diferentes convicções se identifiquem com ele. Em nossas páginas cotidianas de debates, vozes se confrontam com opiniões diversas”, defende Rosa.
A cega defesa dos desmandos da União Soviética e do stalinismo, no entanto, é uma mancha que cola ainda hoje na imagem do L’Huma. No dia da morte do ditador soviético Josef Stálin, em 5 de março de 1953, o jornal titulou em edição especial: “Luto por todos os povos que exprimem, em recolhimento, seu imenso amor pelo grande Stálin”. Três anos depois, quando os tanques soviéticos invadiram a Hungria para esmagar a Revolução de 1956, o L’Humanité celebrou: “Budapeste volta a sorrir em meio a suas feridas”.
Marie-José Sirach, há 25 anos no jornal, acredita que não se pode varrer o passado: “Isso faz parte da nossa história, e é preciso encará-la de frente. O L’Huma foi o órgão central do PCF, justificava tudo o que se fazia, é nossa parte sombria. Por outro lado, ser jornalista naquele tempo comunista devia ser complicado, pois muitas pessoas na redação eram críticas. Louis Aragon (poeta e escritor francês, 1897-1982), por exemplo, defendia nas páginas do L’Huma toda uma geração de poetas russos que morreu no gulag ou foi proibida de publicar. O jornal era sensível a essas pessoas com um ideal comunista que não correspondia ao stalinismo”, relativiza.
Ela prefere destacar a mobilização do jornal em torno das frentes antifascistas desde os anos 1930; seu papel na revelação de massacres cometidos pelas forças do general Franco na Guerra Civil Espanhola (1936-1939); o engajamento anticolonial nas guerras da Indochina (1946-1954) e da Argélia (1954-1962) e contra a guerra do Vietnã (1959-1975); a luta pelos direitos políticos das mulheres na França ou a solidariedade a Angela Davis no combate pelos direitos cívicos nos Estados Unidos – a ativista americana foi, em 2013, convidada como editora-chefe do jornal por um dia. “L’Huma constrói passarelas para mostrar que não se está só. É um jornal que vive, respira, por vezes tosse um pouco, hoje atravessa uma grande crise, mas temos recebido mensagens de apoio e de carinho, e se desaparecer será um mau sinal para a democracia na França”, alerta.
Para poder prosseguir em sua resistência, o L’Humanité lançou uma vasta campanha de doações e de assinaturas. Até a semana passada, a arrecadação havia alcançado pouco mais de € 1 milhão. Personalidades de diferentes áreas e políticos de todas as tendências, inclusive da direita, têm se manifestado em apoio ao jornal. O deputado Aurélien Pradié, do partido conservador Os Republicanos, tuitou: “O L’Humanité não costuma defender as minhas ideias. Mas tenho um profundo respeito pelos seus valores e pela exigência de seus jornalistas. O debate público precisa do L’Huma. Acabo de fazer uma assinatura. Não hesitem…”
No próximo dia 22, uma jornada de solidariedade será organizada no espaço La Bellevilloise, em Paris. Para engordar seus cofres, o jornal conta ainda com sua tradicional “Fête de L’Huma”, evento anual realizado no parque La Courneuve, em setembro, que no ano passado alcançou o recorde de afluência com 800 mil visitantes em três dias. A festa foi criada em 1930 como mais uma iniciativa para enfrentar a falta de recursos do jornal, e oferece inúmeros debates, exposições e concertos. Já passaram por seus palcos nomes como Jacques Brel, George Brassens, Juliette Gréco, Pink Floyd, Joan Baez, Leonard Cohen, Patti Smith e New Order. Na edição de 2018, uma das principais atrações foi o grupo escocês Franz Ferdinand, mas não faltou também a auto-ironia do Soviet Suprem, duo francês formado por Sylvester Staline e John Lénine, com uma mistura de música soviética-balcânica, eletrônica e hip hop, em uma tentativa bem-humorada de imaginar “um gênero que existiria se a URSS tivesse vencido a Guerra Fria”.
O clima na redação entre os 175 assalariados – 124 jornalistas – ainda é de preocupação e angústia em relação ao futuro da publicação, mas também “extremamente combativo”, assegura Rosa: “Pensamos nos nossos predecessores. Anatole France (escritor francês,1844-1924) escreveu, certa vez, que não havia dinheiro nem para comprar velas. Vamos fazer com que este jornal sobreviva. Existe uma ideia de que a França sem o L’Humanité não seria a França. As pessoas precisam do L’Huma pela sua voz singular e dissidente. É uma parte do nosso patrimônio nacional que não se quer ver destruída”.