Lélia Wanick Salgado: “Não gosto de nada parado. O meu sangue roda rápido. Sempre fiz milhões de coisas ao mesmo tempo”

Lélia na Venezuela, em Salto Ángel, a mais alta cascata do mundo, com 979 metros de altura. @Arquivo Pessoal

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Instalada em sua sala na agência de imprensa fotográfica Amazonas Images, no número 93 do quai de Valmy, face ao aprazível canal Saint Martin, em Paris, a arquiteta e urbanista Lélia Wanick Salgado, 72 anos, recorda sua mais recente incursão, há poucas semanas, na Floresta Amazônica: “Fiquei lá uns dez dias. Dormíamos em um barco estacionado em frente a uma aldeia yanomami. Fazíamos dois voos diários de helicóptero. O objetivo principal, desta vez, era fotografar as duas cachoeiras mais altas da Amazônia brasileira. É uma emoção quando a aparelho sobe e se vê aquela floresta que não acaba mais. É tão lindo”. O responsável pelas imagens aéreas, pendurado à porta do helicóptero, era Sebastião Salgado, seu companheiro de vida e de projetos há 55 anos.

Com Sebastião Salgado, na Espanha, em 1986. © Claude Nori

Lélia já vislumbrou um sem número de paisagens dos lugares mais inóspitos do planeta acompanhando as expedições do marido, seja nos recônditos da Etiópia, na península vulcânica russa de Kamchatka ou na Papua Nova Guiné. No entanto, está longe de ser uma turista acidental nas viagens. É parte ativa e fundamental do trabalho do fotógrafo de renome internacional, a quem chama carinhosamente de Tião. Além de administrar o agitado cotidiano da agência, também organiza as enormes exposições em turnês mundiais – da seleção de imagens à cenografia, passando pelas escolha dos espaços – e elabora as vistosas edições dos livros temáticos. “Não gosto de nada parado. Meu sangue roda rápido. Sempre fiz milhões de coisas ao mesmo tempo”, admite ela, que comanda ainda, da capital francesa em frequentes visitas in loco na região de Aimorés (MG), as atividades do Instituto Terra, um ambicioso projeto, idealizado junto com Sebastião, de reflorestamento, educação ambiental, pesquisa científica e desenvolvimento sustentável.

Na Papua Nova Guiné. © Sebastião Salgado

A última viagem ao Brasil fez parte do próximo grande projeto do casal, de exposição e livro sobre a Amazônia, previsto para 2021. Antes disso, porém, foi inaugurada no último dia 16, no Sesc São Paulo, um mostra com as imagens feitas por Sebastião Salgado em Serra Pelada, em 1986. “Nunca houve uma grande exposição com essas fotos, então a grande maioria é inédita para o público. Criei uma cenografia com imagens enormes, penduradas em diferentes níveis, para dar a impressão daquele buraco de Serra Pelada. Imprimimos o livro pela editora Taschen, lá na Itália, estive lá acompanhando, ficou lindo”, conta entusiasmada.

Lélia costuma dizer que ela e Sebastião são a união de “talentos complementares”, em um casamento de amor e também de know-how. Os dois se conheceram em Vitória do Espírito Santo, em 1964. Ela, 17 anos, caçula de uma família de nove irmãos, era professora primária, dava aulas de piano e estudava na Aliança Francesa. Ele, 20, único homem entre sete irmãs, estava no primeiro ano da faculdade de Economia e fazia um bico na Aliança Francesa. “Desde que nos conhecemos, já começamos a fazer projetos juntos. Todo sábado íamos ao cinema e depois comer pizza e beber cerveja em um bar que tinha em Vitória, e ali planejávamos tanta coisa. Após um ano, já tínhamos conta conjunta no banco! Depois, percebemos que ali já havia começado algo forte, um projeto de vida. Só podia dar certo”.

Na Namíbia. © Arquivo Pessoal

O casamento veio três anos mais tarde. E em 1969, aos 22 anos, Lélia viveu uma tragédia: perdeu seus pais em um espaço de três meses. O pai faleceu em 14 de maio, em um incêndio na marmoraria onde trabalhava. A mãe sucumbiu a um câncer no intestino logo após, em 13 de julho. “O céu caiu sobre minha cabeça. Cheguei a ter uma reação física, câimbras. Foi muito violento. Eu era muito jovem. Somente há pouco tempo que comecei a poder falar disso. Antes não conseguia, sempre chorava”, diz, os olhos marejados. Menos de um mês depois, em 10 de agosto, o casal embarcou em um avião rumo a França, fugindo da ditadura militar no país. “Minha vida mudou completamente. Logo me adaptei aqui, ao contrário do Tião, que demorou bastante. Já falava francês, conhecia Paris inteira pelo mapa. E o fato de ter tido esse golpe duro antes de sair do Brasil fez com que pensasse: ‘Bom, perdi tudo, daqui pra frente sou sozinha, não tenho mais retaguarda’”.

Na Amazônia, com Sebastião Salgado. © Arquivo Pessoal

Quando Sebastião se afirmou como fotógrafo, a parceria profissional do casal já era uma evidência. Poucos reconhecem todo o labor feito por Lélia, algo que nem sempre foi fácil para ela: “O que aparece é a foto. As pessoas não se dão conta de que existe um trabalho enorme por trás. Às vezes, estava ao lado dele,  alguém pegava o livro de fotos e elogiava, dizendo que estava muito bem feito e produzido, e ele agradecia. Aí eu me incomodava! Disse uma vez para ele: ‘Você tem de falar que não foi você quem fez. Agradece pelas fotos, mas não pelo livro’. Mas, depois, se deu conta que só é quem é, com todo o peso de seu trabalho, porque somos dois”.

No Instituto Terra, com o cineasta Wim Wenders, coautor do documentário “O Sal da Terra”, sobre o trabalho de Sebastião Salgado. @ Sebastião Salgado

Ao longo das décadas, ela soube se impor face ao mundo dos homens. Mas apesar dos progressos alcançados pelo combate feminino nos últimos anos, não acredita que verá, em vida, a mulher completamente liberada. A liberação, ressalta, não está só na divisão de tarefas, mas também na palavra: “Sou fundadora do Instituto Terra, e no nosso Conselho de Administração, antes, só havia eu de mulher, hoje somos duas. Em uma reunião, estava com a palavra, um homem interviu e todo mundo começou a olhar para ele, me ignorando. Bati na mesa e exclamei: ‘Estou falando!”. E depois dizem que sou grossa, ‘she’s very though’ (risos). Eu não deixo passar. Mas leva tempo para essas coisas acabarem. É algo cultural, enraizado. Ainda nos falta muito, mas um dia chega”, diz, otimista.

Com o segundo Filho, Rodrigo, o Digo. © Fernando Ricardo

Mãe de Juliano, 45, Rodrigo – o Digo -, 40 em agosto, e avó de Flávio, 22, e Nara, um ano e meio, Lélia, em meio a sua atribulada agenda de trabalho e de viagens, cultiva a família. Pensava que não teria filhos, e a vinda ao mundo do primogênito foi uma de suas maiores alegrias. Cinco anos depois, o nascimento de Digo, portador da síndrome de Down, foi uma enorme lição de vida, e, como diz, ser mãe se tornou também uma profissão. “Quando o Digo nasceu, me perguntava: ‘O que vai ser de mim?’. De repente, minha cabeça mudou e pensei: ‘Lélia egoísta, você está muito bem, a questão é o que vai ser dele?’. Ainda no hospital, ele bebezinho, uma enfermeira simpática veio conversar comigo e eu disse: ‘Esse é meu filho, vou cuidar dele e vai ser um menino legal’. Obviamente, quando a criança ainda é pequena, a gente compara muito, e isso dói. Saía com ele, as pessoas ficavam olhando, isso machucava, mas depois a gente acostuma. Ele sempre foi para todo lado com a gente”. Digo é fã do futebol do Paris Saint-Germain e do Barcelona, luta box e toda semana vai ao atelier do artista Michel Grange, um amigo da família, pintar. “Há pouco, ele trouxe um quadro tão lindo para casa. Uma vez fiz, inclusive, uma exposição em casa com as criações dele, retiramos todos as obras da parede e colocamos só as telas que ele pintou”, diz, orgulhosa.

Com o primogênito, Juliano. © Arquivo Pessoal

Já nas inúmeras expedições feitas com Sebastião para o projeto fotográfico Gênesis, de exploração das regiões mais puras e virgens do planeta, em viagens que chegavam a se estender por um mês a cada vez, confessa ter alterado sua maneira de encarar a vida. “Ficávamos sem internet e telefone, e vivíamos bem. Não estou dizendo que se deve voltar para as cavernas, mas mudar a percepção de crescimento econômico. É uma pena que não tenhamos a capacidade de imaginar uma vida melhor com menos coisas. Aprendi muito isso com o projeto Gênesis, de só ter o essencial no dia a dia. Precisamos retornar um pouco para isso e depender menos do consumo de inutilidades. Devemos nos tratar melhor”.

Na Etiópia. © Arquivo Pessoal

A frágil situação do meio ambiente no planeta a preocupa, mas, por outro lado, se mostra esperançosa com a tomada de consciência ecológica das novas gerações e iniciativas assumidas por cidadãos e ONGs em diferentes países. A globe-trotter Lélia não se cansa de fazer e desfazer malas e viver seus dias em um constante e também workaholic carpe diem. Apesar do acúmulo de milhagens percorridas em seu currículo, não faltam no mapa-múndi lugares que ainda gostaria de explorar: “Nunca tive a oportunidade de ir ao Vietnã. Também tenho um sonho de viajar pelo Taiti e de visitar Lençóis, no Maranhão. Mas nem se vivesse duzentos anos conseguiria ver todas as coisas belas deste mundo”.