Festival Panorama: cancelado no Brasil, evento de dança é abrigado na França

“O samba do crioulo doido”, de Luiz de Abreu, será apresentado no Panorama francês por Calixto Neto. ©Gil Grossi

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Cancelada no ano passado no Rio, a 28ª edição do Festival Panorama, mais tradicional evento de dança e performance do país, foi resgatada pela França. O Centre National de la Danse (CND), instituição pública criada por iniciativa do Ministério da Cultura francês, promove o festival em suas instalações em Pantin, no subúrbio de Paris, de 5 a 21 deste mês. O convite é oficialmente assumido pelos anfitriões como “uma reação às medidas populistas do governo de Jair Bolsonaro”, que “levaram à anulação da edição 2019”, e uma afirmação da “solidariedade internacional” e da definição de arte como “pleno ato de resistência”.

A diretora artística do Panorama, Nayse López, alega duas razões para a recente anulação do festival: a dificuldade de obtenção de recursos, com problemas no funcionamento das leis de incentivo fiscais e a perda do patrocínio da Petrobrás, e a necessidade de repensar o evento.

– Tive a sensação de que o que está ocorrendo no Brasil hoje é de uma outra natureza, e que o cenário político e social que estamos vivendo exigia uma reinvenção do festival após 28 anos de existência. Acho que ha um espaço para repensar nossa atividade, nossos formatos, como um projeto de arte e de dança contemporânea com um caráter tão político.

Aymar Crosnier, responsável pela programação artística do CND, conta que o convite francês foi feito na época da vitória de Bolsonaro à Presidência.

– O programa do governo em relação à sociedade civil e aos artistas foi, infelizmente, aplicado. O Panorama foi obrigado a cancelar, pela primeira vez desde 1992, o festival. É um convite tipo “terra de asilo” ao evento, que, espero, possa ocorrer novamente no Brasil. Foi, principalmente, um ato de solidariedade. Na minha carreira de programador, é um dos projetos mais políticos que já tive. É um privilégio receber o festival aqui. Um triste privilégio, infelizmente.

Felipe de Assis, Leonardo França & Rita Aquino na performance “Lopping: Paris Overdub”. ©Patrícia Almeida

O “Panorama Pantin” será totalmente financiado pelo CND, em um custo estimado de €150 mil. Na França, o festival ocorrerá ao longo de três semanas, de quinta a sábado, e em cada dia haverá um espetáculo/performance, um debate e um momento festivo. A programação está dividida em três temas: “Passado – os corpos que nos fazem, as danças que partilhamos” -, “Presente – democracia, censura, guerra da informação” – e “Futuro – corpos do amanhã, educação, liderança da juventude”.

– Na temática do “Presente”, vamos pegar o Brasil como pretexto, na forma do uso das redes sociais pelo governo – adianta Aymar. – Haverá especialistas para debater sobre a arma digital e propor alternativas. E será apresentada a peça “Domínio público”, com Wagner Schwartz, vítima das redes sociais com sua performance “La bête” (na qual se apresenta nu e tem seu corpo manipulado pelo público).

Schwartz, que se apresenta entre os dias 19 e 21 com Elisabete Finger, Maikon K e Renata Carvalho, celebrou a sobrevida do Panorama em sua versão francesa, embora diga que não tenha sido uma surpresa:

– Fazer arte no Brasil sempre foi difícil, mas os ataques, hoje, são mais explícitos e também legitimados por parte dos políticos que estão no poder. Em países como a França, se vê que a arte e a cultura são foco de maior apoio público, e no Brasil sempre fomos descreditados. Temos conseguido viver e produzir arte também por conta deste apoio internacional. Isso é muito sintomático.

O bailarino Calixto Neto interpretará a coreografia “Samba do crioulo doido”, criada por Luiz de Abreu em 2004, definida por ele como um dos “clássicos da dança contemporânea brasileira”.

– É uma peça provocativa, com a presença de um corpo negro de uma forma muito destemida, se apropriando de símbolos nacionais. E uma referência para uma geração de bailarinos, especialmente para as pessoas negras relacionadas à dança – afirma Calixto. – Luiz de Abreu é um dos poucos coreógrafos negros, e conseguiu furar uma bolha de uma dança contemporânea que se fazia no Brasil, elitista e muito branca. Neste momento em que a política cultural está esfacelada, é importante este apoio internacional aqui.

Nayse López defende o diálogo do setor artístico com a nova titular da Secretaria Especial da Cultura do governo, Regina Duarte, embora não tenha esta expectativa.

– Ao aceitar o cargo, ela mostra que está alinhada com a postura antiarte e anticultura disfarçada de democratização populista, que é o discurso do presidente. Penso que existe neste momento uma falência da política pública para as artes, para a cutura e para os direitos humanos. No plano federal, certalente. E, depedendo do governo estadual, isso é mais ou menos grave. No caso do Rio de Janiero, é muito grave. Temos muitos problemas para sobreviver como espaço de reflexão e de contestação do sistema em que estamos inseridos.

O Panorama francês conta ainda com as participações do ColetivA Ocupação, Frederico Paredes, Wellington Gadelha, Federica Folco/Coletivo Periférico, Original Bomber Crew, Felipe de Assis, Leonardo França & Rita Aquino.