em paris, CRISTIANA REALI LEVA os combates de SIMONE VEIL PARA O PALCO

©Pascalito

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A atriz brasileira Cristiana Reali está de volta aos palcos franceses após uma longa pausa forçada pela pandemia da Covid-19. E retornou encarnando uma das personagens mais emblemáticas, populares e admiradas na França : Simone Veil (1927-2017), sobrevivente de Auschwitz, defensora dos direitos das mulheres, autora da lei que legalizou o aborto no país, primeira presidente eleita do Parlamento Europeu e arauto da reconciliação e construção europeia no pós-Segunda Guerra. Um ano após a sua morte, aos 89 anos, foi entronizada no Panteão, célebre monumento onde repousam as grandes personalidades nacionais.

Cristiana, parisiense desde os nove anos de idade, já havia cruzado com Simone Veil algumas vezes em eventos e cerimônias, mas nunca chegaram a se falar, e a ideia de interpretá-la em cena era um antigo sonho: “Eu a adorava, sempre a achei uma personagem forte, carismática, misteriosa e generosa. Sabia que ela não gostava de ser representada em vida, pensava que nunca seria a sua verdadeira história”, conta, assentada em um café na avenida Trudaine, nas proximidades de sua casa.

A atriz apresentou seu projeto teatral, baseado na autobiografia “Une vie” (uma vida), para a rigorosa apreciação dos filhos e herdeiros de Simone Veil, e recebeu sinal verde. Buscou uma diretora “jovem e feminista”, Pauline Susini, e no último dia 18, no Teatro Antoine, estreou o espetáculo que já tem uma turnê de 80 datas programadas a partir de janeiro de 2022. “Minha filha Elisa me disse um dia: ‘Olha, mãe, ela (Simone Veil) fez coisas muito importantes, cruciais, mas teve gente que lutou muito mais pelas mulheres’. Mas ela se esquece que era outra época. Simone abriu uma porta. Ela não podia ter derrubado a porta, senão não a teriam deixado passar”, diz.

Interpetrar Simlone Veil era um antigo sonho de Crristana Reali. ©Pascalito

Simone Veil foi deportada aos 16 anos, em abril de 1944, para o campo de concentração nazista de Auschwitz. Foi salva por uma ex-prostituta que atuava como “kapo” (prisioneiros de direito comum que supervisonavam os deportados), que uma dia lhe disse: “Você é muito bela para morrer”. Transferida para o campo de Bergen-Belsen, ela escapou da morte, contrariamente aos seus pais e seu irmão, que não sobreviveram à guerra. Mais tarde, como magistrada, encampou uma longa luta para melhorar as condições de detenção das mulheres nas prisões francesas: “Ela defendia que a privação de liberdade não poderia implicar privação de humanidade e de dignidade. Tudo era assim para ela”, resume Cristiana.

Simone Veil ao apresentar o projeto de legalização do aborto na Assembleia Nacional francesa. ©AFP

A atriz ressalta que para obter a aprovação da legalização do aborto na França, em 1975, Simone Veil, então ministra da Saúde,  não pôde invocar o direito das mulheres de disporem de seus corpos. Focou seu projeto de lei em torno das questões de saúde pública, certa de que seria a única maneira de convencer um parlamento majoritariamente conservador e masculino. “Um tempo antes havia surgido a pílula anticoncepcional, e isso não foi problema para os homens. Diante dos deputados, ela dizia: ‘Têm esses homens que quando uma amante ou uma namorada ficam grávidas, levam-nas para fazer aborto. É uma hipocrisia!’ Espero que um dia a legalização possa ser aprovada no Brasil, que é um país muito católico, religioso, onde a Igreja tem muita força. Mas um dia a gente chega lá”.

Simone Veil entrou para o Panteão em 2018, após sua morte aos 89 anos. ©AFP

Para Cristiana, Simone Veil era uma mulher à frente de seu tempo, uma humanista que acreditava no progresso e confiava nos jovens. “Era virada para o futuro. Combateu muito para que as mulheres tivessem tanto poder de responsabilidade quanto os homens na vida social e política. No final, ela fazia tudo muito igual às feministas puras e duras, mas falava de um outro jeito. Foi uma mulher que se impôs”.

Na peça, a atriz fez questão de mostrar também o lado mais íntimo e familiar da personalidade pública, como esposa, mãe, avó e também uma feminista naquela época: “Minha mãe, Amélia, trabalhou quando era jovelm e depois não mais, cuidou das filhas, ajudou meu pai. E ao mesmo tempo organizava muitas reuniões feministas. As outras mulheres a adoravam, mas não sei se a achavam muito feminista. Ela queria que tivéssemos uma profissão para não dependermos de ninguém e foi sempre muito solidária com as mulheres. E Simone Veil era isso. Você não imaginava a feminista que era, a mulher que tanto lutava”.

A peça já tem 80 datas agendadas em sua turnê pela França. ©Monsieur le photographe

O espetáculo foi concebido durante o confinamento, em plena pandemia. Cristiana não esconde sua felicidade em poder novamente atuar: “Sem cultura, a vida é morosa. O que a arte transmite você não vê. Faz você refletir, sonhar, se divertir. Aqui, tivemos ajuda do governo na pandemia. Mas nada é perfeito. E quando as pessoas saem à rua para reclamar, o governo, mesmo que não admita, sente vergonha, porque a cultura faz parte de algo muito importante no país. No Brasil, não é valorizada como deveria. Sem falar no absurdo do tratamento dado à cultura pelo governo Bolsonaro”, conclui.

  • TEXTO PUBLICADO NA REVISTA ELA, EM O GLOBO.

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