Em novo livro, economista Thomas Piketty procura demonstrar que a desigualdade é uma escolha política e ideológica

Em novo ensaio publicado na França, Piketty lança as bases do que chama de “socialismo participativo” e explica por que o Brasil é um dos países de maior desigualdade.

FERNANDO EICHENBERG / REVISTA ÉPOCA

PARIS – Neste final de 2019, o francês Thomas Piketty, um dos raros economistas a figurar nas listas de obras mais vendidas, está de volta às vitrines das livrarias com mais um título para animar acirrados debates entre seus críticos e simpatizantes. Em 2001, época em que ainda não havia alcançado o status de economista de renome mundial, Piketty escreveu o ensaio “Os altos salários na França no século 20”, um estudo das desigualdades salariais no país no período de 1908 a 1998.

Em 2013, seu best-seller internacional, “O capital no século 21”, vendido a mais de 2,5 milhões de exemplares e traduzido em 40 idiomas, ultrapassou as fronteiras da França na abordagem das disparidades da distribuição de riquezas ao focar também em países como Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido. Já  “Capital e Ideologia” (ed. Seuil, com lançamento previsto no Brasil no próximo ano pela Intrínseca), recém-impresso na França, é uma obra geograficamente e historicamente ainda mais ambiciosa.

O cartapácio de 1.232 páginas pretende traçar uma história econômica, social, intelectual e política das desigualdades em âmbito mundial. O autor, diretor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, na sigla em francês) e professor da Escola de Economia de Paris, amplia seu mapa ao analisar também os casos de países como Brasil, China, Índia, Japão, Rússia, Irlanda, Suécia ou Irã, passando pelas sociedades feudais, os regimes escravocratas, as colônias americanas sob dominação europeia até chegar às democracias eleitorais atuais e ao “hipercapitalismo moderno”. Mas não se contenta com a perspectiva analítica e, ao final, sugere soluções, já alvo de polêmicas, para a construção de um novo horizonte igualitário de proporções universais, um tipo de “socialismo participativo” para o século 21, em uma nova ideologia da igualdade sob formas alternativas de organização da sociedade, da propriedade, da educação ou dos impostos.

Sua premissa é apresentada como uma asserção: as desigualdades são resultado de escolhas políticas e ideológicas, e todos os discursos que as descrevem como naturais e inevitáveis, porque relacionadas à economia e às tecnologias, e buscam legitimá-las, são questionados pela História. Seu livro é, assumidamente, uma tentativa de propor uma história dos sistemas de justificação e de estruturação da desigualdade social, romper com o fatalismo que alimenta os desvios identitários de hoje e abrir o caminho para a superação do estágio atual do capitalismo e da propriedade privada e a construção de regimes mais igualitários. “Se não transformarmos profundamente o sistema econômico atual para torná-lo menos desigual, mais justo e durável, tanto entre países como em cada país, o ‘populismo’ xenófobo e seus possíveis sucessos eleitorais poderão muito rapidamente deflagrar o movimento de destruição da globalização hipercapitalista e digital dos anos 1990-2020”, alerta.

Nas sociedades contemporâneas, a explicação da desigualdade se sustentaria em um discurso “proprietarista, empreendedor e meritocrático”. A desigualdade moderna seria justa, escreve Piketty, porque deriva de um processo livremente escolhido, no qual cada um possui as mesmas chances de acesso ao mercado, à propriedade, e onde cada um se beneficia espontaneamente das acumulações dos mais ricos, que são também os mais empreendedores, os mais meritórios e os mais úteis. Porém, segundo ele, desde o fim do século 20, na esteira da derrocada do comunismo soviético e do triunfo do hipercapitalismo moderno, essa narrativa se tornou cada vez mais frágil e contraditória.

No caso brasileiro, sua análise começa pela “forma mais extrema de regime desigual”: as sociedades escravocratas, “modelo de quase sacralização da propriedade privada que dominava no século 19 e que deu origem ao mundo moderno”. Uma das grandes questões nas abolições da escravidão, sinaliza, é o fato de os países ocidentais não terem indenizado financeiramente os escravos, mas sim seus proprietários. O alto grau de mestiçagem da população brasileira – mais de 90% do total de habitantes no fim do século 19 e começo do 20, segundo seus dados -, não impediu “a distância social, a discriminação e as desigualdades, que permanecem, até hoje, excepcionalmente fortes no Brasil”.

Após o fim da escravidão, em 1888, a Constituição de 1891 excluiu os analfabetos do direito de voto, “o que eliminou cerca de 70% da população adulta do processo eleitoral nos anos 1890, mais de 50% em 1950, e em torno de 20% em 1980”. Na prática, diz Piketty, não somente os antigos escravos, mas os pobres em geral foram afastados do jogo político durante um século, de 1890 a 1980. “Por comparação, um país como a Índia não hesitou em instituir um sufrágio verdadeiramente universal desde 1947, apesar das imensas clivagens sociais e estatutárias originadas do passado e da pobreza do país”, acrescenta. Será preciso esperar o fim da ditadura militar (1964-1985) e a Constituição de 1988, observa, para que o direito de voto seja, finalmente, estendido a todos. E conclui: “É impossível compreender a estrutura das desigualdades modernas sem começar por levar em conta a pesada herança desigual originada da escravidão e do colonialismo”.

Piketty examina também o período brasileiro entre 1989 e 2018, da formação de um sistema partidário de “tipo classista” até a eleição do candidato “nacionalista-conservador” Jair Bolsonaro, que considera como “uma nova virada na história política do país”. Nota que o PT, em seu início, realizava seus melhores escores entre os trabalhadores do setor da indústria, assalariados urbanos medianos e a classe intelectual que se mobilizara contra o regime militar: “À saída da ditadura, como na Índia após a independência, a estrutura de voto não era espontaneamente classista no Brasil. É depois da chegada de Lula ao poder que a composição social do voto do PT vai claramente evoluir. Ao longo das eleições de 2006, 2010, 2014 e 2018, se constata que o PT realiza, sistematicamente, seus desempenhos mais importantes entre os eleitores menos diplomados e aqueles com renda menos alta”.

Para o economista, não há dúvida de que as políticas de redistribuição implementadas pelo PT no governo, como o programa Bolsa Família, e o aumento de uma clivagem classista contribuíram para “engendrar uma certa vontade de retomada do controle da situação por parte das elites brasileiras tradicionais”, movimento traduzido na destituição de Dilma Rousseff e na eleição de Bolsonaro. Mas, em su análise, a usura natural do poder em uma democracia eleitoral também teve um papel na reviravolta política, bem como as “evidentes insuficiências das políticas conduzidas pelo PT entre 2002 e 2016”: “Pensa-se, naturalmente, na incapacidade do PT em combater seriamente o problema da corrupção no Brasil, isso quando ele mesmo não contribuiu para perenizar o sistema”.

Piketty sublinha ainda um balanço médio do PT na luta contra as desigualdades. Um dos principais problemas, segundo ele, é que a melhora da situação das pessoas de baixa renda foi feita inteiramente em detrimento das classes médias, mais precisamente dos grupos sociais situados entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos. Mais: nesse processo não houve nenhuma desvantagem aos 10% mais ricos, que conseguiram manter sua posição, já incomumente elevada no Brasil, diz ele. “Tratando-se do 1% mais rico, se observa, inclusive, entre 2002 e 2015, um aumento de sua parte na renda total, que se mantém duas vezes mais alta do que a fatia relativa aos 50% mais pobres. Esses resultados decepcionantes e paradoxais se explicam simplesmente: o PT nunca fez uma verdadeira reforma fiscal. As políticas sociais foram financiadas pelas classes médias e não pelas mais ricas, pela boa e simples razão que o PT jamais conseguiu combater a regressão fiscal estrutural do país, com pesados impostos e taxas indiretas sobre o consumo (indo, por exemplo, até 30% nas faturas de eletricidade), enquanto os impostos progressivos sobre as rendas mais altas e os patrimônios são, historicamente, pouco desenvolvidos”.

Para essa falha de política de governo, o economista aponta “limitações doutrinais e ideológicas”, mas também a “ausência de uma maioria parlamentar adequada”: “No Brasil, como na Europa e nos Estados Unidos, é impossível reduzir as desigualdades tanto quanto seria desejável sem transformar igualmente o regime político, institucional e eleitoral”, defende. E sinaliza ainda a importância de “influências exteriores”: teria sido mais fácil para Lula e o PT aplicar o imposto progressivo sobre a renda e a propriedade se houvesse um contexto político e ideológico internacional em que essas políticas estivessem sendo estimuladas, o que poderá ocorrer no futuro. “Inversamente, o agravamento do dumping fiscal atua objetivamente a favor de orientações de desigualdades e identitárias encarnadas por Bolsonaro e o movimento nacionalista-conservador”, conclui.

Por um lado, os índices referentes à saúde, ao poder de compra e ao acesso à educação e à cultura nunca foram tão positivos na história da humanidade, nota Piketty. Por outro, esses progressos mascaram imensas desigualdades socioeconômicas, recrudescidas em praticamente todas as regiões do mundo a partir dos anos 1980-1990. Em 2018, a parte que os 10% mais ricos abocanhavam da renda total atingia 54% no Brasil, 65% na África subsaariana e 64% no Oriente Médio. Nos casos da Índia, Estados Unidos, Rússia, China e Europa, esses índices, que se situavam entre 25% e 35% em 1980, estavam entre 35% e 55% em 2018. Nessa mesma região, os 50% mais pobres representavam de 20% a 25% da renda total em 1980, contra 15% a 20% em 2018, índice que caiu a pouco mais de 10% nos Estados Unidos, “o que é particularmente inquietante”, ressalta. No período 1980-2018, a parte do crescimento mundial total da renda captada pelo 1% mais rico do planeta foi de 27%, contra 12% para os 50% mais pobres.

A desigualdade não é econômica ou tecnológica, mas política e ideológica, resume Piketty. Dito isso, reconhece que não se pode suprimi-la em um passe de mágica. Entre as medidas pregadas por seu receituário estão a instauração de um regime de propriedade social e temporário, baseado na partilha de direito de voto e de poder com os assalariados nas empresas – a exemplo do que já ocorre parcialmente na Alemanha -, de um sistema de imposto progressivo sobre a renda e a propriedade ou de uma dotação universal em capital. Uma de suas apostas é um imposto anual progressivo sobre o patrimônio que poderia alcançar até 90% para os bilionários, e que, na França, viabilizaria uma dotação de € 120 mil ao jovem que completar 25 anos. “Não se vai esperar que Marck Zuckerberg ou Jeff Bezos cheguem aos 90 anos e transfiram suas fortunas para que comecem a pagar impostos”, justifica. Piketty vai mais longe do que a americana Elizabeth Warren, candidata da esquerda democrata nas primárias presidenciais do partido, que propõe um imposto de 2% sobre as fortunas de mais de US$ 50 milhões, e de 3% para acima de US$ 1 bilhão. O economista acredita, aliás, que Warren tem uma “verdadeira chance” no pleito americano, segundo disse em uma entrevista, pois “encarna uma forma de novidade e apresenta um programa extremamente construído sobre a justiça fiscal, mas também sobre a regulação do Gafa (Google, Apple, Facebook e Amazon), a educação pública ou o papel dos assalariados na governança das empresas”.

“Capital e Ideologia” já suscitou na França vivas discussões,  com opiniões contra e a favor. Para o autor, segundo sua conclusão final, este era o resultado desejado: “Este livro, tem, no fundo, um único objetivo: contribuir à reapropriação cidadã do saber econômico e histórico. Que o leitor se sinta em desacordo com algumas de minhas conclusões não há nenhuma importância, pois se trata, para mim, de abrir o debate, nunca de encerrá-lo. Se essa obra pôde despertar seu interesse sobre novas questões e permitir que se aproprie de saberes que não possuía, então meu objetivo foi completamente atingido”.