Élisabeth Roudinesco e Luc Ferry falam sobre a França sob a presidência de Emmanuel Macron

Luc Ferry  © Stephane Lavoue/Pasco
Élisabert Roudinesco © John Foley

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Qual o significado da vitória eleitoral de Emmanuel Macron, que assume no domingo o poder no Palácio do Eliseu, e que desafios aguardam o novo presidente da França? Dois importantes pensadores do cenário intelectual francês, o filósofo Luc Ferry e a historiadora e psicanalista Élisabeth Roudinesco, de reconhecidas reflexões sobre as transformações do mundo contemporâneo, responderam às mesmas questões, separadamente, sobre o presente e o futuro do país, em singulares visões sobre a França que elegeu Macron e as condições que poderão levar ao sucesso ou ao fracasso do novo governo.

Qual sua visão da situação da França hoje, na posse de um novo governo no país?

Élisabeth Roudinesco: Havia uma conjuntura muito difícil, o desemprego que não diminuía. A esquerda fez grandes declarações econômicas, mas era preciso ter um discurso mais ideológico para dar esperança a um país absolutamente melancólico. A característica da França é que somos, na Europa Ocidental, um dos países que têm um dos melhores níveis de vida e, ao mesmo tempo, as pessoas têm medo, e com razão, de perder suas conquistas sociais. Vimos crescer esta Frente Nacional (FN), extremamente perigosa por seu populismo. A situação estava bloqueada.

Luc Ferry: Primeiro, é preciso dizer bravo aos eleitores, porque a FN foi eliminada por seu programa econômico, monetário e europeu delirante, e por um adversário mais duro do que o previsto. Segundo, porque foi evitado o pior, uma final entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. Enfim e sobretudo, porque acabou e não se podia mais com estas eleições que foram as mais desoladoras e medíocres da Quinta República (desde 1958). Deve-se, agora, desejar boa sorte ao nosso jovem presidente, pois seus sucessos e fracassos serão os nossos. Dito isso, estamos longe de um happy end, e as ameaças sobre nós nunca foram tão pesadas.

Emmanuel Macron poderá ser um bom presidente?

Luc Ferry: Se Macron continuar a solicitar àqueles que vão se aliar a ele, de direita como de esquerda, a abandonar suas antigas vestes para se submeter ao seu próprio movimento, optará por ocupar a terceira via, uma via sem saída, aquela de um centrismo desde sempre destinado ao fracasso. A primeira consequência desta escolha seria que as duas esquerdas – a extrema-esquerda e o que resta do Partido Socialista (PS) – e a duas direitas – a direita republicana e a extrema-direita -, ficariam de fora do jogo político, situadas na oposição, o que significaria que o novo presidente começaria seu quinquênio sendo, apesar das aparências, arquiminoritário. Ele deverá, portanto, negociar em permanência com as alas direita e esquerda quando quiser reformar o código do trabalho ou a fiscalidade. Macronistas fanáticos louvam o urbi et orbi da “recomposição completa da vida política”. Trata-se de uma grande piada à qual é preciso ser de uma rara incultura intelectual e histórica para aderir. Não é porque a direita tropeçou, que a esquerda escolheu um candidato de menor estatura política e que um jovem Jedi se aproveitou habilmente para ocupar o centro e se apoderar do Palácio do Eliseu que dois séculos de clivagens direita-esquerda, liberalismo-socialismo, democracia-república vão desaparecer em quinze minutos por encantamento.

Élisabeth Roudinesco: Há o desconhecido. Vejo Macron como um homem simpático e pleno de convicções. É um social-liberal, não um ultraliberal, que é detestado pela esquerda, pela direita. Penso que ele fez uma entrada espetacular na cerimônia da vitória no Museu do Louvre. Ele recuperou a autoridade do status de presidente, o que François Hollande não conseguiu fazer. Macron endossou este papel, entendeu que era preciso um ritual para a República, subiu no palco com toda sua família. Eu o vejo como um personagem típico dos romances do século XIX, de Stendhal, de Alexandre Dumas. Há este destino que pode, de repente, emergir. Ele é romanesco. E num momento muito duro para a França, em que estávamos encurralados entre nostálgicos idiotas do “era melhor antes”, adeptos da toda-poderosa tecnologia e funcionários tecnocratas, vemos surgir alguém um pouco inspirado. Em todo caso, ele crê em seu destino. E é a encarnação da chamada felicidade individual. É um homem feliz. Estamos em uma França melancólica, com velhas nostalgias. A questão é se vai conseguir transformar sua felicidade individual em coletiva. Penso que é preciso um novo impulso. Pessoalmente, me lembra Maio de 68, por isso gostei quando Daniel Cohn-Bendit o apoiou. Macron desafia os arcaísmos. Não quer dizer que não veja os defeitos do caráter sedutor.

Quais os principais desafios ao seu governo?

Élisabeth Roudinesco: Para a França, é um governo de risco. Macron foi eleito a 30% por convicção, significa que há 70% contra ele. É evidente que não vai ser fácil. Ele já tem oponentes nas ruas, o que não aprovo, porque nunca fui favorável à política do quanto pior melhor. Vamos entrar numa era de social-liberalismo, e a impressão é a de que a haverá uma forte oposição da esquerda radical. Mas prefiro que a oposição seja encarnada por Jean-Luc Mélenchon (da frente de esquerda radical França Insubmissa) e pelos sindicatos do que por Marine Le Pen (FN). Mas penso que, neste momento, é preciso tentar combater os excessos do liberalismo por um liberalismo social. É o que digo hoje, embora não tenha certeza de que repetirei o mesmo daqui a seis meses. Mas entramos numa era que a imprevisibilidade não me desagrada. Penso no filósofo Jacques Derrida, de quem gostava muito, que dizia que no fundo o principal avanço é admitir que há o imprevisível, riscos. Sou bastante sensível a isso.

Luc Ferry: A verdade é que o “nem direita nem esquerda” vai se confrontar rapidamente contra o muro dos grandes delirantes, aqueles que nunca entenderam nada de economia, que não renderam as armas e que, infelizmente, restam majoritários no país: a extrema-direita e a extrema-esquerda e mais os pequenos partidos, que representam 60% dos eleitores. Isso é ainda mais inquietante porque o centrismo não tem doutrina nem história. O comunismo, o socialismo, o anarquismo, o liberalismo tiveram seus grandes teóricos. Pode-se criticá-los, mas Marx, Jaurès, Tocqueville ou Proudhon tinham outro peso do que os teóricos moles do centrismo. A única alternativa que subsiste quando o centro chega, por milagre, ao poder se faz naturalmente com os extremos. É urgente, portanto, que Macron passe do “nem-nem” a uma verdadeira união nacional, aquela que associa, como na Alemanha, direita e esquerda. Se Macron não nomear um homem da direita moderada como primeiro-ministro, o futuro será incerto, dividido e bloqueado como nunca.

Macron poderá mudar a Europa?

Luc Ferry: É um autêntico pró-europeu, o que é uma boa coisa. Mas tudo dependerá do poder que terá na própria França para fazer as reformas esperadas pela Europa, principalmente na redução dos déficits públicos. No momento, seu poder parece bastante limitado se não ampliar sua base eleitoral.

Élisabeth Roudinesco: É um grande desafio. Necessitamos de uma Europa mais social. Uma Europa menos imersa na austeridade, mais visível, mais encarnada. Para a população, hoje, a Europa é Bruxelas e a deslocalização selvagem de empresas. É preciso convencer a Alemanha a mudar de política. A primeira tarefa de Macron será renegociar de outra forma.

O que espera deste novo governo?

Élisabeth Roudinesco: Espero ver novas caras, um novo dinamismo. Espero que ele sacuda com os velhos arcaísmos e das nostalgias do passado. Penso que a clivagem esquerda-direita ainda existe e existirá, mas acredito que este tsunami Macron vai permitir, enfim, uma recomposição das forças políticas para o futuro. Não espero isso dele, mas penso que é o que vai acontecer. Espero que o desbloqueio que ele propõe da legislação trabalhista possa permitir mais flexibilização, embora não espere um milagre. Mas é preciso dar fluidez ao emprego. É preciso corrigir os efeitos nocivos do capitalismo da finança delirante por um social-liberalismo. Se não funcionar, não funcionou.

Luc Ferry: Para ser sincero, não muita coisa, pois não espero mais nada dos políticos. Vi muito de perto o quanto eles só pensam na comunicação, em seu destino pessoal, e carecem de inteligência e de coragem.

A extrema-direita ainda terá um papel no futuro da vida política francesa?

Luc Ferry: Se Macron fracassar na redução do desemprego, a extrema-direita acabará chegando lá. Sabe-se muito bem o que deve ser feito, pelo menos sete países da Europa alcançaram o pleno emprego, mas isso demanda uma enorme coragem, pois serão necessárias reformas impopulares. Se Macron não as fizer, sim, a extrema-direita terminará por ganhar as eleições.

Élisabeth Roudinesco: Marine Le Pen teve menos votos do que o previsto. Mas cerca de 10 milhões de eleitores votaram nela, o que é inquietante. Não é algo anódino. Não subestimemos a extrema-direita, ela existe por toda a Europa. Foi derrotada agora aqui na França, mas pode renascer. Há barragens ao populismo na Europa, na Holanda, na Áustria, mas a que preço? Temos Vladimir Putin na Rússia e seu governo imperialista, um louco furioso no comando dos EUA (Donald Trump) e o Brexit. Estamos numa situação de grande turbulência, que pode favorecer os extremismos.

Qual sua posição, hoje, em relação a sua própria convicção política?

Élisabeth Roudinesco: Sempre fui de esquerda e ainda acredito na esquerda, mas neste momento ela precisa se recompor. É uma esquerda a ser feita. Após as legislativas, haverá a recomposição dos partidos no país. Mas vivemos uma reviravolta, que vai além dos partidos. Não vejo Macron como um homem de direita. Ele é herdeiro de um centrismo progressista. Não é evidentemente de esquerda, mas não é reacionário. Filosoficamente, permaneço socialista, no sentido de que sou progressista. Este novo poder não me incomoda, ao contrário do governo de Nicolas Sarkozy. Votei em Benoît Hamon (PS) nas primárias de esquerda, e depois em Macron já no primeiro turno, com convicção. No início, quando ele lançou seu movimento, pensei que seria mais uma das tantas tentativas de centrismo. Mas depois se percebeu que algo se passava no país. Se viu que a juventude estava farta dos velhos partidos, da idade dos candidatos, da política clássica. Senti que é preciso que algo mude.

Luc Ferry: François Fillon (do partido de direita Os Republicanos) tinha, na minha opinião, o melhor programa, liberal na economia e protetor na política. Para partilhar as riquezas, é preciso antes produzi-las e, como já dizia Aristóteles, para ser generoso é preciso ser rico. Se não deixarmos as empresas produzirem as riquezas e criar empregos, o que supõe um momento liberal, será impossível, depois, impor uma política social. Infelizmente para o país, Fillon foi abatido por uma campanha de mídia violenta e muito eficaz que o destruiu literalmente, enquanto ele não havia feito nada de grave ou de ilegal. É assim, a vida política é totalmente irracional. Contrariamente ao que dizem marxistas e liberais há mais de um século, não são os interesses racionais que dirigem a vida política, mas as paixões irracionais. É assim, voilà.

Emmanuel Macron passa tropas em revistas após sua posse no Palácio do Eliseu.                                   © Fernando Eichenberg