FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – O título do mais novo ensaio do escritor Amin Maalouf, lançado recentemente na França, não deixa dúvidas sobre seu diagnóstico do estado atual do mundo: “O naufrágio das civilizações” (Grasset). Em considerações históricas entremeadas de testemunhos pessoais, suas palavras descrevem as sociedades ocidentais e árabes em um quadro sombrio de desintegração, com o aumento da violência provocada pelas afirmações identitárias, a expansão dos populismos, o fracasso do projeto europeu, o egocentrismo americano e a ausência de um sistema internacional capaz de indicar um rumo a um planeta sem bússola. “O mundo, hoje, se assemelha a uma selva”, diz, em conversa com O Globo na capital francesa.
Nascido no Líbano, em 1949, Maalouf viveu também no Egito e emigrou para a França em meados dos anos 1970, ao eclodir a guerra civil em seu país natal. Reconhecido romancista, foi laureado em 1993 com o maior prêmio literário francês, o Goncourt, pela obra “O rochedo de Tânios”, e eleito para a Academia Francesa de Letras em 2011. Suas análises também foram recompensadas: em 1999, recebeu o Prêmio Europeu do Ensaio pelo livro “As identidades assassinas”. Antes de assumir a vida de escritor, trabalhou como jornalista. Entre suas inúmeras coberturas internacionais, assistiu à queda da monarquia na Etiópia, estava em Saigon no final da Guerra do Vietnã e também no voo que levou o aiatolá Ruhollah Khomeini de volta do exílio para Teerã, na deflagração da revolução iraniana.
Por que o senhor diz que estamos vivendo o naufrágio das civilizações?
Penso que entramos em uma engrenagem muito grave. De um lado, há o aumento das afirmações identitárias e das violências relacionadas que fez derrapar o mundo na direção de um “desvio orwelliano”. George Orwell (escritor britânico, autor de “1984”) descreveu um mundo no qual seríamos constantemente vigiados, e pensava que isso viria de um uma tirania do tipo stalinista. Na verdade, veio de outra maneira. O medo suscitado pelos atentados – principalmente os ataques espetaculares em Nova York (2001) – criaram uma necessidade de proteção, que o desenvolvimento tecnológico possibilitou traduzir de uma maneira monstruosa, contra nossa vida privada e nossa liberdade. Hoje, tudo que escrevemos, falamos, nossos deslocamentos, podem ser controlados. E consentimos, porque temos a impressão de ser protegidos. Esse é um elemento do naufrágio que será difícil reduzir, porque as causas desse medo que temos, seja dos atentados, dos fenômenos migratórios e outros, não vão desparecer, mas provavelmente se intensificar nas próximas décadas. E as tecnologias que permitem o controle se desenvolvem rapidamente. Seremos cada vez mais controlados e cada vez menos livres. Outro elemento do naufrágio é que não soubemos construir uma ordem internacional que funcione, o mundo se assemelha a um selva. O país que poderia representar um elemento de estabilidade, e que não protagoniza mais esse papel, são os EUA. Temos um grupo de países que poderiam tê-lo substituído nesse papel, a Europa, e que não souberam se dar os meios para isso. Temos um cenário mundial aberto. Há uma nova corrida aos armamentos, que será cada vez mais intensa. E estamos à mercê de uma derrapagem. Devemos ser lúcidos, não podemos tapar os olhos nos dizendo que tudo vai bem. Está claro que o mundo não vai bem, que existem desvios políticos e morais. Será preciso encontrar soluções.
“Hoje, há um recuo do espírito europeu. Vemos um risco real de ver o projeto europeu desmoronar.”
Uma de suas maiores tristezas seria o fracasso do projeto europeu…
A Europa é a região que tem a capacidade de produzir um modelo para a humanidade. O que se começou a construir no pós-Segunda Guerra Mundial ia neste sentido. O que me entristece é que não se foi até o fim deste raciocínio e desta ambição. Não se ousou construir os Estados Unidos da Europa, o que, a meu ver, deveria ter sido feito. Uma Europa integrada, capaz de protagonizar um papel como entidade, poderosa no cenário mundial. Houve sempre uma hesitação entre uma Europa federal e uma zona de livre comércio. E por falta de coragem política se postergou a decisão. A decisão era bem mais fácil a ser tomada com seis ou nove países, o que é quase impossível hoje, com 27 ou 28. Nos encontramos com esta via praticamente cortada, com um mundo bem mais duro, com novas potências, uma nova Guerra Fria que se inicia com uma nova corrida aos armamentos em um mundo violento. Há o Brexit, que é um choque maior. Mesmo que, de minha parte, mantenho até o último momento a esperança de que a Inglaterra, à beira do precipício, fará um passo para atrás e realizará um segundo referendo. Mas, independentemente disso, há um aumento do ceticismo em muitos países, em sociedades que antes nem questionavam isso, como a holandesa, a dinamarquesa ou a italiana. Hoje, há um recuo do espírito europeu. Vemos um risco real de ver o projeto europeu desmoronar. Se compararmos a Europa de hoje com o que era há 60 ou 100 anos, certamente é muito melhor. Mas se compararmos com a situação há 30 anos, não é. Houve um período em que começamos a construir algo, depois marcamos passo. Se supôs que se poderia recuperar o atraso, mas, hoje, estamos no declínio.
Para o senhor o Brexit está morto?
Penso que, no último momento, à beira do precipício, a Inglaterra vai recuar. Tudo o que ocorreu recentemente me leva a crer que o Brexit não é mais considerado como um solução séria, mas ainda resiste porque não se quer pôr em causa um voto já realizado. Não se quer decepcionar a população dizendo que esse voto foi menosprezado ou ignorado. Mas tudo mostra que não é mais uma solução. A primeira evidência, hoje, é que se a Inglaterra deixar a Europa, há um sério risco de que a Escócia deixe a Inglaterra no prazo de dois anos. É um preço muito caro a pagar. A segunda evidência vem de boa parte da explicação da vitória do Brexit, que ocorreu por muitas falsas informações e exagerações que enganaram os cidadãos. Está claro que a classe política não quer, e todo este psicodrama na Câmara dos Comuns tem uma explicação, não sei se política ou freudiana, de que as pessoas não têm vontade de dar o passo definitivo que leve ao Brexit. A cada vez há algo que atrasa o processo. Creio que se quer deixar passar o tempo e se dar todos os pretextos para, no final, dizer que se vai refazer um outro referendo. E estou persuadido que, numa segunda vez, o resultado será completamente diferente.
“Há tensões internacionais ligadas ao aumento das exacerbações identitárias, ao terrorismo, ao fenômeno da imigração. E tudo isso cria tensões também nas sociedades.”
Quais as causas desse euroceticismo de hoje?
Há um fator relacionado às instituições europeias. Todos os governos europeus, de esquerda e de direita, adotaram o hábito de, a cada vez que havia medidas impopulares, dizer: “Não é nossa sua culpa, isso é a Europa que nos impõe”. É uma desculpa cômoda que foi constantemente utilizada. E as pessoas integraram esta ideia de que a Europa era um problema, um tipo de autoridade insensível, encastelada em Bruxelas, que nos impõe coisas que não queremos e que os infelizes governos são obrigados a aceitar. Essa ideia fez muitos estragos nos espíritos, e a imagem da Europa se deteriorou bastante por causa disso. Há também o fato de que muitos Estados não quiseram abdicar de uma parte de sua soberania para investir na Europa. E nos vimos com um “governo europeu”, que é a Comissão Europeia, não eleito, mas designado pelos governantes. Nações habituadas à vida democrática não se reconhecem nessas autoridades não eleitas. Então, temos um governo que não é realmente um governo e um Parlamento que não é realmente um Parlamento. Outro fator é que há tensões internacionais ligadas ao aumento das exacerbações identitárias, ao terrorismo, ao fenômeno da imigração. E tudo isso cria tensões também nas sociedades. Alguns países acusam a Europa de não protegê-los destes problemas. Outros consideram que têm necessidade de suas próprias fronteiras. Estas tensões crisparam as opiniões políticas e intelectuais em muitos países, repercutindo em atitudes de desconfiança e de rejeição da Europa.
Como os movimentos populistas crescem neste contexto?
Há em muitas sociedades fenômenos reagrupados sob o vocábulo de populismo. Nem todos compartilham as mesmas aspirações. Na França, há um populismo de esquerda e outro de direita. Mas é verdade que, frequentemente, o populismo acompanha uma afirmação identitária, que se quer simplificadora. Por vezes, é dirigida contra os estrangeiros, outras vezes, contra um país ou uma instituição supranacional. Há na Europa uma forma de populismo ligada à recusa da Europa, a um ceticismo em relação ao projeto europeu. É algo também relacionado, em certas sociedades, ao enfraquecimento dos partidos tradicionais. É um fenômeno muito vasto e difundido em várias regiões do mundo, e é certamente uma das características inquietantes de nossa época. Na Índia, há o Partido do Povo Indiano (BGP, na sigla em inglês), hoje com um discurso claramente nacionalista, que deverá vencer as próximas eleições. Na Turquia, vemos uma situação semelhante. O Brasil do presidente Jair Bolsonaro parece se inscrever em um movimento comparável.
“Historicamente, a extrema-direita utilizou a denominação socialismo, o que não faz estes movimentos serem de esquerda. Suas principais preocupações, ao contrário, eram demolir com a esquerda.”
O presidente Bolsonaro criou uma polêmica ao declarar que o nazismo era um movimento de esquerda. Qual a sua opinião?
Historicamente, o nazismo e o fascismo queriam combater o comunismo, afirmando que eram socialistas nacionais, daí o nome do partido nazista, que se dizia “Nacional Socialista”. Provavelmente, houve no início do nazismo personagens de sensibilidade de esquerda, como os irmãos Strasser (Gregor e Otto), que rapidamente foram varridos por Hitler e seu grupo. No começo de sua carreira, Benito Mussolini era considerado como um leninista militante. Sempre houve uma vontade nos movimentos nazista e fascista de se afirmarem socialista e nacionalista. Historicamente, a extrema-direita utilizou a denominação socialismo, o que não faz estes movimentos serem de esquerda. Suas principais preocupações, ao contrário, eram demolir com a esquerda. E foram apoiados por um certo período por grandes industriais alemães porque prometiam destruir a esquerda. Na França, os colaboracionistas no momento da ocupação alemã eram traumatizados pela vitória da Frente Popular de esquerda. Eles viam no nazismo e no fascismo uma maneira de se livrar da Frente Popular e do comunismo. Se você for ler o que escrevia Winston Churchill no início, ele falava de Mussolini com uma certa fascinação, dizia que ele talvez fosse “nos livrar do comunismo”. Mas Churchill sabia avaliar a importância das coisas, e compreendeu que Mussolini iria se tornar, como um aliado de Hitler, mais perigoso para a Inglaterra do que o comunismo.
Qual sua análise sobre o EUA do presidente Donald Trump?
Ao longo do século 20, houve três grandes conflitos, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Um potência saiu triunfante nos três e não cessou de ganhar importância: os EUA. Ao final, eles tinham a capacidade de implantar uma nova ordem internacional, na qual teriam uma supremacia que ninguém ousariacontestar, como primeira potência militar, econômica, política e cultural. São eles os criadores da civilização moderna. E os 30 últimos são a história de um fracasso. Os EUA não souberam fundar uma nova ordem internacional. Em vez de dirigir uma vasta coalizão de países, começaram cada vez mais a agir sós. Hoje, estão ainda mais sós, e reivindicam essa condição. Neste caso, há uma mudança ligada à personalidade de Donald Trump. Ele tem um modo de funcionamento de um homem de negócios, não de um político. Um político cria coalizões, possui aliados, adversários e uma estratégia, procura formar uma aliança mais forte do que a de seus adversários para ganhar. Para o homem de negócios, não há aliados nem adversários, todos são concorrentes. Muitos países que eram tradicionais aliados dos EUA, hoje se sentem marginalizados. Mesmo os ingleses estão completamente desamparados, e talvez seja uma das razões pela qual hesitam em deixar a Europa. E, além disso, os EUA hoje não têm muita autoridade moral. Isso se acentuou com a eleição de Trump e sua maneira de governar, mas já era um pouco o caso antes. Os EUA de George W. Bush se lançaram em aventuras que não souberam finalizar, como a Guerra do Iraque. Barack Obama tinha uma outra estatura moral e intelectual, mas não conseguiu levantar a autoridade moral do país. Um dos momentos determinantes foi na Guerra da Síria, quando disse que o uso de armas químicas era a “linha vermelha”, o limite a não ser ultrapassado, e depois, quando foram utilizadas, voltou atrás. Quando se faz o balanço destes 30 anos, é extremamente decepcionante para os EUA. Hoje, assistimos ao começo de uma nova corrida armamentista, que se acelera e que se passa num quadro internacional sem controle. Trump não quer nem mais acordos sobre os armamentos. É evidente que países como a China, Índia, Rússia, Irã, Paquistão, Israel, França ou as duas Coreias vão participar disso, a sua maneira, e não sabemos aonde isso vai dar.
Para o senhor, o mundo de hoje nasceu em grande parte em 1979, com a revolução do aiatolá Ruhollah Khomeini no Irã e a chegada ao poder de Margaret Thatcher no Reino Unido.
Chamo 1979 de “o ano do grande reviravolta”. Há, efetivamente, dois acontecimentos pivôs que ocorreram em três meses de intervalo: as chegadas ao poder de Khomeini, em fevereiro, e de Thatcher, em maio. No caso de Khomeini, há um movimento político caracterizado por um grande conservadorismo social e radicalismo político. A revolução no Irã foi o momento capital na direção de um mundo com uma afirmação identitária muito mais forte No início, havia a impressão que dizia respeito somente ao mundo muçulmano, mas se difundiu por outras regiões do planeta. O movimento lançado por Thatcher, retomado muito rapidamente por Ronald Reagan nos EUA, criou uma nova forma de governar. O capitalismo, que durante o período da Guerra Fria procurava competir com o comunismo para ver quem seria o mais social dos dois, renunciou a essa ambição. Esses dois movimentos, de um lado o aumento das afirmações identitárias e, de outro, o questionamento do papel do Estado e a primazia das leis do mercado, construíram juntos o mundo de hoje. Nos movimentos de hoje, muito afirmativos no plano identitário e liberais no plano econômico – seja na Índia, na Turquia e em outros países – se vê essa mudança. A consequência de tudo isso é que há tensões identitárias e sociais cada vez mais fortes e uma fragmentação das sociedades.
“Hoje, as classes médias se empobrecem. Na França, muitas pessoas se sentem abandonadas e, ao mesmo tempo, não sabem ao que recorrer. As pessoas estão completamente desorientadas, a crise dos coletes amarelos é um pouco isso. O futuro e a noção de progresso ficaram comprometidos.”
As potências ocidentais, na sua opinião, descreditaram seus próprios valores e cometeram faltas morais e traições, como em relação ao princípio de igualdade.
Essa é uma das consequências da revolução thatcheriana. A partir do momento em que se considera que o espaço do Estado deve ser reduzido, que as leis do mercado são soberanas, há toda uma série de consequências e de desvios que vieram normalmente por estes movimentos conservadores, em sua maneira de conceber a economia e a política. Isso fez com que em todas as sociedades se se notasse um aumento da corrupção e das desigualdades. Nos EUA, a partir dos final dos anos 1970, se vê um aumento das disparidades. Hoje, as classes médias se empobrecem. Na França, muitas pessoas se sentem abandonadas e, ao mesmo tempo, não sabem ao que recorrer. Antes, havia o capitalismo e o socialismo. Hoje, após a falência do sistema comunista, se não se quer o capitalismo, não há outra opção. As pessoas estão completamente desorientadas, a crise dos coletes amarelos é um pouco isso. O futuro e a noção de progresso ficaram comprometidos.
A esquerda, na sua opinião, também errou na maneira de encampar as lutas das minorias, caindo na armadilha identitária dos conservadores…
A esquerda europeia se perdeu entre o desmoronamento do comunismo, afundado por seus crimes e calamidades – tudo o que fizeram Stálin, Mao, Pol Pot, Kim II-sung e muitos outros pelo mundo -, e o triunfo do tatcherismo. Em muitas sociedades, forças tradicionalmente à esquerda, hoje intelectualmente e politicamente em dificuldade, têm a tentação de se reencontrar em afirmações ligadas a minorias e grupos marginais, considerando ser esse seu combate e renunciando a oferecer uma visão mais ampla para a sociedade. Nos EUA, na disputa para decidir o candidato do Partido Democrata às últimas eleições presidenciais, havia a linha Hillary Clinton e Bernie Sanders. Hillary adotou a linha da coalizão de minorias. A visão de Sanders talvez fosse demasiado à esquerda para os americanos, mas ele não jogou essa carta, e sim a da população em geral. Ele é um pouco, como se diz, “colour blind”, não vê que as pessoas são diferentes. Estima que não deve agir em função de diferenças étnicas, religiosas e outras, mas falar à nação. Creio que se um dia a esquerda, hoje na defensiva, quiser se reerguer, deverá ser via um novo universalismo e não por uma coalizão de particularismos. A esquerda não consegue formular, hoje, uma alternativa.
As revoltas em curso na Argélia e no Sudão podem ser consideradas como um prolongamento da Primavera Árabe, deflagrada em 2011?
Na Argélia e no Sudão há situações específicas, ligadas às realidades dos países, com, nos dois casos, elementos mais confiantes em relação às sublevações de 2011. As populações são mais maduras e aprenderam com os erros ocorridos em outros países. Os movimentos no mundo árabe foram minados pela dimensão islamista. Na Argélia, creio que ninguém quer isso. Vemos a sociedade civil à frente, avançando com mais sabedoria e seriedade do que antes. Pode-se esperar que não haverá as mesmas desventuras ocorridas na Síria, no Egito ou na Líbia. Em todos os países havia segmentos da população com aspirações modernistas e um verdadeiro desejo de democracia e de progresso social. A ideia de que as sociedades muçulmanas seriam, por sua natureza e religião, alérgicas à laicidade e à modernidade, está, hoje, tão enraizada nos espíritos que é muito difícil dizer o contrário. Mas penso que é uma ideia falsa. Se olharmos para os últimos trinta anos, é claro que se foi para o lado de mais intolerância, radicalização e uma interpretação mais estreita dos textos religiosos. Mas esse cursor poderá novamente mudar na direção de sociedades mais abertas e menos radicais. Não sei estarei vivo para ver isso, mas penso que é possível e espero que se produza.