FERNANDO EICHENBERG / REVISTA ÉPOCA
PARIS – O escritor Alain Mabanckou viveu 22 anos na República do Congo, sua terra natal, outros 17 na França e, há 15, reside nos Estados Unidos, onde leciona literatura francesa na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Seus livros, como costuma dizer, habitam a geografia imposta por sua transumância, entre a África, a Europa e a América. Laureado pela Academia Francesa e finalista do Prêmio Internacional Man Booker, ele acaba de lançar na França “Rumeurs d’Amérique” (Rumores da América, ed. Plon), uma série de crônicas com impressões sobre o país que o adotou nos últimos anos.
Mabanckou manifestou nas ruas de Los Angeles junto ao movimento Black Lives Matter, e teme uma guerra civil nos EUA se o líder americano, Donald Trump, se recusar a aceitar o resultado das próximas eleições presidenciais em caso de derrota. O escritor conversou com Época em um café parisiense, em meio a promoção francesa de sua mais recente obra.
Como o senhor vê a questão racial, hoje, nos EUA?
Vejo nos EUA de hoje uma luta contra o racismo, mas também entre duas classes, uma que possui todos os privilégios, e uma outra que não tem quase nada. E a classe sem privilégios quer participar da distribuição de riquezas do país. O racismo é um departamento dentro da luta de classes. A questão racial não pode ser resolvida de forma mecânica. O racismo é algo embutido no inconsciente. Nos EUA, é ainda mais complicado, porque o mal vem desde a educação, que não dá ao negro a possibilidade de entrar no sistema escolar, nas universidades. O racismo só pode ser combatido por meio de progressos sociais. Quando se caminha por Los Angeles, se nota todo o desespero, pessoas em situação de precariedade, mendigos. As desigualdades pesam cada vez mais, vejo os EUA à beira de uma explosão.
O senhor participou das manifestações do Black Lives Matter?
Sim, estou inscrito na seção do Black Lives Matter de Los Angeles, e manifesto. É minha forma de participar à luta pelo respeito aos negros nos EUA. Apoio como posso. As manifestações foram pacíficas, e adorei estes momentos, que cristalizam, talvez, a imagem de um novo país, em que as pessoas estão federadas por uma causa e não por interesses individuais.
O senhor observou uma importante presença de brancos nas manifestações…
Os negros americanos chamam os manifestantes brancos de “aliados”, um termo que desaprovo. Como se fosse uma guerra em que fôssemos pedir a outro país fazer uma aliança. Mas, cada vez mais, a jovem geração de brancos não quer ser responsável pelas torpezas de seus ancestrais. E há cada vez mais brancos nas manifestações de Black Lives Matter, porque eles compreenderam que não poderão ter um futuro tranquilo se os negros não forem melhor tratados. Senão, os negros herdarão uma cultura da violência, o que os brancos não desejam.
O escritor americano Ernest J. Gaines (1933-2019) lhe deu esperança na ideia de que muitas coisas podem ser salvas pela literatura. Hoje, o senhor diz que tempo da palavra passou, chegou a hora da ação.
Gaines tinha razão, mas penso que já demos sinais suficientes neste sentido. Acredito profundamente na literatura, que nos possibilita entrar em outros imaginários e também nos incita a refutar o mundo que querem nos impor. Mas é preciso passar à ação, mostrar que não nos contentamos em conjugar nossos verbos no futuro, enquanto o presente está sendo desmanchado. Esses movimentos que ocorrem hoje, Black Lives Matter, #MeToo, feminismo, estão redefinindo nossas relações, e podem dar em algo novo
O movimento dos supremacistas brancos americanos o preocupa?
É algo muito inquietante, porque os supremacistas estão armados. Sem ser paranoico, creio que aqueles que pensam na possibilidade uma guerra civil não estão equivocados. O que ocorrerá se Trump, face a uma derrota eleitoral, disser que não deixará a Casa Branca? Trump sempre votou por correspondência, e hoje se diz contra. Claro, a maioria dos votos por correspondência são de democratas, e ele quer evitar que votem.
Por que o senhor é contra a derrubada de estátuas de personagens que representam a escravidão e o colonialismo?
Se você simplesmente derrubar uma estátua, não saberá o que aconteceu para que ela estivesse ali antes. Há personagens históricos que merecem estar sempre face às pessoas que maltrataram. Precisamos dessas estátuas para que a Europa continue a ter vergonha do que fez naquela época, elas fazem parte da narrativa. Quando se destrói uma estátua, se apaga também a história da resistência. Proponho uma contraleitura da História, que se acrescente outros monumentos a esses, para que se entenda o contexto.
O senhor também não concordou com a alteração, na França, do título do livro “Dix petits nègres” (Dez negrinhos, em tradução literal), de Agatha Christie, para “Ils étaient dix” (Eram dez).
Não somos nós, africanos, que temos vergonha do termo “nègre” (como o “nigger” americano, e diferente do “noir” francês, referente a “negro”). É um problema ocidental. O Ocidente está se dando conta de que há provas linguísticas do que fizeram na História. A palavra “nègre” foi uma invenção do Ocidente, que queria, ao usar essa expressão, rebaixar o grau de humanidade do negro, para justificar a escravidão. No genocídio de Ruanda, se dizia aos hutus que os tutsis eram baratas. E baratas são esmagadas. Estamos em uma situação análoga. Mas os africanos empregam a palavra “nègre” como objeto de reflexão. Dela, criaram o conceito de negritude, corrente de cultura africana. Léopold Senghor, Aimé Césaire, transformaram a humilhação do “nègre” em uma estética e um termo de resistência, um desvio do universo ocidental: “Você pensa que esta palavra é suja, nós fizemos dela algo belo”. Hoje, são os brancos que se sentem envergonhados com o título do livro de Agatha Christie e que têm medo da palavra “nègre”. O pior é a hipocrisia, se aproveitam disso para vender o “livro da polêmica”.
O senhor morava em Santa Monica, onde dizia se sentir como “uma mancha no meio de uma página branca”, e há cerca de uma ano se mudou para o centro de Los Angeles. Por quê?
Antes, em Santa Monica, estava rodeado de brancos, ricos e burgueses. Hoje, estou em meio a minorias, vejo todos os dias pessoas de todas as cores, o que não ocorria em Santa Monica, um local monocrômico onde se refugiam as estrelas que não querem ser incomodadas em Hollywood. É muito fechado. Quando estava lá, se as pessoas ao redor se sentiam mais ou menos à vontade comigo é porque sou um ‘negro da França’: “Ele é professor na universidade e vem de Paris”, então está ok.