Abusos por violência e racismo colocam a polícia francesa na mira

Críticas contra a violência das forças da ordem no país fazem Macron prometer reforçar ações para conter excessos, e policiais também vão às ruas para protestar, abrindo uma nova crise com o governo

Em Paris, policias reprimem manifestantes em protesto contra a violência das forças de segurança contra minorias: corporação se diz abandona pelo governo diante das críticas.
©Anne-Christine Poujoulat/AFP

FERNANDO EICHENBERG/ O GLOBO

PARIS – Os protestos emergidos no rastro da morte de George Floyd nos Estados Unidos reacenderam na França o recorrente tema da violência policial e do racismo. Manifestantes saíram às ruas em várias cidades do país para aderir ao movimento Black Lives Matter e reivindicar justiça para o jovem negro Adama Traoré, morto sob custódia da polícia em 2016, em um processo judicial até hoje inconcluso. As denúncias de uso ilegal da força e de discriminação por parte das forças de ordem francesas, propaladas há anos por associações de defesa dos direitos humanos e endossadas por organismos internacionais, aumentaram recentemente durante as revoltas dos coletes amarelos e as greves contra reformas do governo.

A família de Adama Traoré recusou esta semana um convite da ministra da Justiça, Nicole Belloubet, para um encontro. “As palavras não servem mais, são ações judiciárias que pedimos”, justificou Assa, irmã da vítima. O presidente Emmanuel Macron prometeu “reforçar as ações” contra as violências policiais e o racismo, mas defendeu que os excessos cometidos representam casos isolados na corporação. O ministro do Interior, Christophe Castaner, anunciou a proibição da técnica de “estrangulamento” nas interpelações policiais, o que provocou a cólera dos sindicatos da categoria, contrariados também com sua intenção de suspender os agentes com “suspeição confirmada de racismo”. Os policiais organizaram protestos em Paris — diante do Palácio do Eliseu e do Ministério do Interior — e outras cidades da França, dizendo-se abandonados pelo governo, abrindo mais uma crise para o Executivo.

Jérémie Gauthier, sociólogo da Universidade de Estrasburgo e coautor do livro “Polícia: questões sensíveis”, acredita que as atuais mobilizações traduzem uma crescente conscientização do problema, mas questiona o alcance das ações do governo :

– O efeito das medidas anunciadas permanece discutível, porque, se visam aumentar as sanções para os policiais faltosos, não questionam as dimensões institucionais do racismo, das discriminações e das brutalidades policiais.

O site de notícias Street Press revelou na semana passada a existência de dois grupos privados de policiais no Facebook, com um total de 17 mil membros, com mensagens de propósitos racistas e sexistas. As queixas recebidas pela Inspeção Geral da Polícia Nacional (IGPN), a chamada “polícia das polícias”, registraram um aumento recorde em 2019, de 23,7% em relação ao ano anterior: dos 1.460 inquéritos, 868 (+41%) correspondem a “violências voluntárias”. O Defensor dos Direitos, Jacques Toubon, um ouvidor público, pleiteou a rastreabilidade dos controles policiais, frequentemente acusados de discriminatórios.

No período de confinamento por causa da Covid-19, a seção francesa da Anistia Internacional identificou 15 vídeos que mostram o uso ilegal da força e propósitos racistas e homofóbicos da parte de policiais. Para Anne-Sophie Simpere, responsável da Anistia pela denúncia, há “uma vontade de dizer que somos todos iguais, mas é falso”.

– Hoje, um negro tem dez vezes mais chance de ser controlado do que um branco. Para nós, são necessárias reformas profundas na polícia. Há estratégias, principalmente nas manifestações, que encorajam o uso da força, que deve ser o último recurso. É muito difícil debater racismo e discriminação com as autoridades, que tratam isso caso a caso, enquanto é algo estrutural. Nosso temor é o de que o governo veja isso como uma momento de comunicação, e que não trate o problema com o objetivo de solucioná-lo.

Os protestos do movimento dos coletes amarelos e as manifestações contra as reformas do governo Macron provocaram fortes críticas à atuação repressiva das forças de ordem. A polícia foi constantemente acusada de abusar da violência e desrespeitar os códigos de deontologia da corporação, no uso desmedido de armamentos, causando mortes, mutilações e ferimentos.

Mutilações e mortes

De acordo com os números estimados, desde o início das manifestações dos coletes amarelos, em novembro de 2018, duas pessoas morreram, mais de 20 perderam um olho, cinco tiveram uma mão arrancada e cerca de 2.500 sofreram algum ferimento causado pela ação policial. Cenas de violência policial nas manifestações urbanas suscitaram indignação na opinião pública e também repreensões de organizações francesas e internacionais. A Liga dos Direitos Humanos francesa tentou, sem sucesso, junto ao Conselho de Estado, jurisdição administrativa suprema, a interdição do LDB-40 (Lançador de Balas de Defesa), uma versão do flashball de projéteis de borracha. O Conselho da Europa igualmente solicitou ao governo francês a “suspensão imediata” do armamento e a revisão da doutrina de seu uso. O grupo de Especialistas Independentes em direitos humanos das Nações Unidas condenou as ações “desproporcionais” da polícia e a utilização “excessiva” de armas ditas não letais, como o flashball e granadas de efeito dissuasivo, além de encorajar a França a “repensar suas políticas em questão de manutenção da ordem” para garantir o exercício da liberdade de manifestar. Os deputados do Parlamento Europeu endossaram o coro e votaram por recriminar o recurso “desmesurado” à força pelas autoridades francesas.

Para Gauthier, o movimento dos coletes amarelos provocou uma ruptura na dinâmica de pacificação dos conflitos, alterando as estratégias das forças de ordem face às novas práticas dos manifestantes – como a ausência de declaração das manifestações, de representantes designados e protestos em locais habitualmente não permitidos, como a avenida de Champs-Élysées.

– Os responsáveis policiais e políticos optaram por uma resposta repressiva extremamente severa, e em um contexto que atingiu pessoas que não tinham o hábito de confronto com a polícia. A violência utilizada pelas forças de ordem foi sem precedentes desde Maio de 68. Embora não seja comparável com o Brasil ou os Estados Unidos, a situação na França impõe um sério problema democrático – avalia.

A manutenção da ordem é, segundo ele, uma questão “eminentemente política”. A decisão de equipar os policiais com “armas de guerra” como o LDB e as granadas de defesa contra civis é uma vontade política, diz:

– No final de Maio de 1968, o chefe de Polícia de Paris, Maurice Grimaud, escreveu em uma carta aos policiais palavras que ficaram célebres: “Bater em um manifestante caído no chão é bater em si mesmo, em uma atitude que prejudica toda a função policial”. Essa frase diverge da postura de negação dos responsáveis políticos atuais.

O advogado criminalista Eduardo Mariotti já atendeu mais de 50 casos envolvendo violências policiais em manifestações. Para ele, não há dúvida de que houve um uso abusivo do LDB, mas também de outros armamentos, como as granadas de dispersão que estilhaçam borracha.

– E também a granada GLI-F4, que se tornou tristemente famosa – acrescenta. – Contém uma carga de TNT, faz um estrondo e solta gás lacrimogênio. O problema é que manifestantes que tiveram a má ideia de pegá-la ao cair no solo, perderam a mão. Defendo um manifestante que não estava fazendo absolutamente nada, levou uma bala de borracha na cabeça e hoje está com hemorragia cerebral. Também um pai e uma filha que foram espancados. Ele ficou três semanas no hospital. A situação é essa.

As críticas miram também a introdução para agir nas manifestações, ao lado das Companhias Republicanas de Segurança (CRS), da Brigada Anticriminalidade (BAC), habituada a combater a delinquência nos subúrbios, sem formação no controle de multidões e com uma hierarquia menos presente, nota Fabien Jobard, especialista em questões policiais do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês) e coautor do livro “Sociologia da polícia – políticas, organizações, reformas”.

O índice de confiança da população na polícia caiu, segundo as sondagens, de 75% para 60% no movimento dos coletes amarelos. São índices da Europa do Leste, não do Oeste. Na Alemanha, a aprovação alcança 90 – diz Jobard. – Na organização, no equipamento, nas modalidades de resposta ao movimento social, se tem uma polícia neoliberal em uma sociedade que é o produto de políticas públicas com menos recursos e de uma negação dos políticos à voz das ruas. Em 2008, um ano após ter aprovado a lei sobre o serviço mínimo em tempo de greve, o então presidente Nicolas Sarkozy disse: “Agora, quando há uma greve na França, ninguém percebe”. O social voltou.

Segundo Gauthier, certos países europeus souberam melhor adaptar suas polícias à democratização. E cita o exemplo da Europa do Norte, onde armas como o LDB e as granadas de dispersão foram interditadas.

– Na Alemanha, o investimento em estratégias de prevenção, conjugado a uma clara divisão do trabalho entre serviço público e luta contra a criminalidade, parece obter resultados em termos de liberdades públicas e direitos humanos: menos brutalidades e discriminações nos controles policiais. A comparação nos lembra que diferentes polícias são possíveis, que a maneira como as forças de ordem são utilizadas tem a ver com escolhas políticas, e que a brutalização das técnicas policiais é incompatível com a democratização e a pacificação das sociedades.

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