FERNANDO EICHENBERG/ O GLOBO
PARIS – Feio e sem talento para atuar no cinema ou no teatro. O cruel veredicto foi por diversas vezes sentenciado ao jovem candidato a ator Jean-Paul Belmondo. Mas, apesar das repetidas rejeições no início de carreira, manteve seu lema: “Perseverar é o axioma, esperar, uma religião”. Hoje, aos 83 anos, exibe um longo e invejável currículo de 87 filmes e três dezenas de peças de teatro, dono de uma reputação artística internacional. Seu destino mudou em 1959, aos 26 anos, um ano após ter sido abordado na rua Saint-Benoît, em Paris, pelo debutante cineasta Jean-Luc Godard, crítico da emblemática revista “Cahiers de Cinéma” e futuro enfant terrible da Nouvelle Vague, para protagonizar o curta-metragem “Charlotte e seu namorado”. Ao final da filmagem, o diretor lhe prometeu: “O dia em que fizer meu primeiro longa-metragem, será com você”. A promessa foi cumprida, e o inesperado sucesso do hoje mundialmente cult “Acossado” (1960), em duo com a atriz Jean Seberg, catapultou Belmondo para a fama e para as câmeras de renomados cineastas. “Havia atuado por dez anos no teatro, em diferentes papeis, e um dia encontro Godard, ele me propõe fazer “Acossado”, e tudo mudou para mim. Mudou minha vida. Se seguiram muitos diretores, e não parei mais”, relembra.
Com Jean Seberg, em “Acossado”, de Jean-Luc Godard.
Assentado em sua poltrona favorita na vasta sala de seu apartamento parisiense na rua de Saints-Pères, nas cercanias do bairro de Saint-Germain-des-Près, o icônico ator, ao lado de seu inseparável cão Chipie – um presente da atriz Brigitte Bardot -, recebeu o GLOBO para conversar sobre sua vida, contada em um livro de memórias recentemente lançado na França. O título da obra não poderia ser mais apropriado a sua trepidante trajetória: “Mil vidas valem mais do que uma” (ed. Fayard). Simultaneamente, saiu do prelo pela mesma editora um álbum de fotos de mais de trezentas páginas, ilustrado por imagens garimpadas de seu arquivo privado.
Com Chipie, o cão que ganhou de Brigitte Bardot. ©Fernando Eichenberg
Após “Acossado”, Belmondo se viu obrigado a trocar o número de seu telefone residencial, tamanho o assédio de produtores e cineastas. Em sua extensa filmografia, trabalhou com diretores como François Truffaut, Alain Resnais, Claude Chabrol, Louis Malle, Claude Sautet, Peter Brook, Agnès Varda, Vittorio de Sica, René Clément, Jacques Deray, Jean Becker, Gérard Oury, Georges Lautner, Bertrand Blier, Claude Lelouch, entre tantos outros.
Com Godard, seu “descobridor”, apesar da boa relação, perdeu o contato: “Não o vejo há cerca de 30 anos. Éramos bons amigos, mas ele tomou outros rumos. E seus filmes de hoje…. Não poderia atuar neles, são incompreensíveis (risos). Mas é um grande diretor de cinema. Em “Acossado”, foi a primeira vez que atuei de forma dramática. Não pensava que poderia fazer este tipo de coisa, adorava a comédia. Ele me fez descobrir este talento”.
“O homem do Rio” (1964), filmado no Brasil, ocupa um lugar especial em sua autobiografia. Sucesso de bilheteria na França, era o preferido de sua adorada mãe, Madeleine, e inspirou Steven Spielberg para a saga “Os caçadores da arca perdida”. Além disso, foi seu “batismo de fogo” nas perigosas cenas em que passou a dispensar dublês, o que se tornou uma de suas características. “Costumava praticá-las apenas fora das filmagens. E as primeiras cenas de perigo fiz no Brasil, onde tive alguns sustos (ficou preso num cabo suspenso). Em “O Magnífico”, acidentei-me e fui obrigado a atuar de muletas”, diz, hoje rindo.
Nas filmagens de “O Homem do Rio”, em que passou a dispensar dublês.
Eterno zombador, o ator se ilustrava também por constantes travessuras no dia a dia. Em seu hotel no Rio, repetiu uma costumeira brincadeira: ganhava o jogo quem atirasse mais rápido pela janela os móveis do quarto (exceto os mais pesados). Acabou tendo de se esconder da polícia carioca embaixo da cama do diretor do filme, Philippe de Broca. No hotel de Manaus, colocou farinha na tubulação de ar condicionado, causando hilários transtornos para vários clientes. “São boas lembranças. Éramos uma boa equipe. E de Broca era o primeiro a fazer besteiras (risos). Vivi três meses de sonho no Brasil em 1963. Brasília havia sido recém-concluída. Uma pena que na Amazônia não exista mais a aldeia de pescadores em que filmamos. Era formidável”.
Na parede, desenhos de seu pai, o artista-escultor Paul Belmondo. ©Fernando Eichenberg
Apontado como símbolo do “charme viril à la française“, sua soi-disant feiura, a qual ele mesmo agradece – “sem meu nariz de boxeador não teria passado de um simples figurante” -, Belmondo seduziu na tela as mais belas atrizes, como Anna Karina, Jeanne Moreau, Sophia Loren, Gina Lollobrigida, Catherine Deneuve, Jacqueline Bisset, Raquel Welch ou Claudia Cardinale. Duas outras, inclusive, se tornaram amores reais: a suíça Ursula Andress, primeira James Bond girl do cinema, numa relação de sete anos, e a italiana Laura Antonelli, com quem viveu por oito anos.
“Bébel”, como é carinhosamente chamado pelos franceses, contradisse a predição de Pierre Dux, seu professor no Conservatório, que lhe havia vaticinado: “Você não terá jamais uma mulher em seus braços no cinema ou no teatro”. Mas o mundo gira: “Certo dia, passeava em Champs-Élysées abraçado a Ursula Andress, cruzei por acaso com Pierre Dux, e lhe disse: ‘A gente faz o que pode’. Ah, a vingança… (risos)”. Mais uma razão para ele apreciar a célebre boutade da cantora Édith Piaf: “Eu saio com Alain Delon, mas volto para casa com Belmondo”: “É uma excelente frase!”, diz, sorrindo.
Com Ursula Andress…… e Laura Antonelli.
A brasileira Carlos Sotto Mayor, que nos anos 1980 participou de três filmes estrelados pelo ator, também conquistou o coração do ídolo francês, em um idílio que durou seis anos. Uma relação que ele define como “apimentada e festiva”. Hoje, ela vive nos Estados Unidos, onde se converteu ao rock metal. “Falo seguido com Carlos pelo telefone. Sempre permaneci em bons termos com minhas ex-mulheres. Hoje ela faz heavy rock em Los Angeles, é formidável”.
Com a brasileira Carlos Sotto Mayor, nas filmagens de “O Marginal”.
Ator de “150 milhões de espectadores”, Belmondo sempre preferiu o plebiscito da plateia aos julgamentos, muitas vezes severos, da crítica especializada. “A crítica? Oh la la la. Hoje, me elogiam, mas na época me destruíam. Mas havia o público ao meu lado, é o que importa. O público também tem bom gosto. A perenidade do ator reside nisso. Certos críticos querem apenas filmes intelectuais, mas não é apenas o que existe. O Festival de Cannes, por exemplo, não recompensa nunca a comédia. Tive seis filmes em Cannes, e nunca fui premiado”.
À parte a indiferença dos diferentes júris, o celebrado festival decidiu, em sua edição de 2011, homenagear Belmondo com uma Palma de Ouro pelo conjunto de sua obra. Mas além do cinema, o teatro, onde começou, era uma grande paixão. “O teatro era o meu amor. Por causa das muitas solicitações do cinema, fiquei 28 anos sem subir no palco. E quando voltei, foi a felicidade total. A peça com a qual retornei em cena era um texto difícil, “Kean” (de Jean-Paul Sartre, em 1987). E durante um ano e meio foi uma alegria incrível”.
O teatro o ajudou também a superar a tragédia da morte de sua filha Patricia, em 1994, de 40 anos, em um incêndio no apartamento em que vivia: “Foi terrível. Fui até o prédio dela às 6h da manhã, estava completamente queimado. Voltei para casa, e meu médico me disse: “Se você não atuar hoje, não atuará nunca mais”. E às 15h entrei em cena. Era uma peça cômica, “Alfaiate para senhoras” (de Georges Feydeau). Devia fazer o público rir, e de modo que eles não percebessem a minha dor”. Mesma atitude teve quando faleceu sua mãe, em 1996, e estava em cartaz com a peça “Com a pulga atrás da orelha” (também de Feydeau, com a atriz brasileira Cristiana Reali no elenco). “Voltei ao palco. Para sobreviver. Não penso na morte. A única coisa é que não se sabe como ocorrerá. Tenho uma vida muito bela, e não tenho medo de morrer. É preciso continuar”.
Em 2001, um acidente vascular cerebral (AVC) afetou a motricidade de seu braço direito e o deixou mudo. Os médicos previram que nunca mais voltaria a falar. Mas, graças ao seu esforço, reverteu o diagnóstico pessimista. “Foram dois anos inteiros sem conseguir falar. Mas lutei, e venci. Fiquei com os movimentos mais limitados, mas sou a mesma pessoa, de bem com a vida. Vivo o momento. O passado foi maravilhoso, mas é preciso também viver o presente”.
Apesar de seu natural otimismo, o presente também o inquieta.: “Estava em Cannes quando ocorreu o atentado em Nice (em julho passado). Foi horrível. É covarde. São loucos. Como pará-los? Não se sabe. O que ocorre na Síria também é uma loucura. Eu já estou no final de vida, mas penso no futuro das crianças de hoje. O que vai se passar? Eu não sei”. A situação política na França e na Europa também é motivo de preocupação: “Em quem votar? É triste. É um mundo que se vai. Não sei para onde vamos. Há o desemprego. Donald Trump foi uma surpresa nos Estados Unidos, nunca poderia imaginar que pudesse ganhar. E ganhou. Mas Hillary Clinton, vamos ser sinceros, não era muito melhor”.
Belmondo desperta diariamente às 6h30, e vai dormir por volta da meia-noite. Costuma caminhar no Bois de Boulogne na companhia de Chipie e de fiéis amigos. A família é sua prioridade (além de seus netos, tem a filha Stella, de apenas 13 anos). E não perdeu de vista sua agenda cultural. “Continuo indo ao cinema e ao teatro. Hoje mesmo vou assistir a uma peça do meu amigo Robert Hirsch”.
Seu único tom nostálgico surge ao evocar a “grande época das noites de amor e das caves de Saint-Germain-des-Près”, em que reinava “um tipo de impunidade”, uma “vertigem de prazeres”: “Moro ainda aqui em Saint-Germain, mas não tem mais nada a ver com o que era antes. O bairro foi tomado por butiques, é cruel. É uma pena. Não há mais alma. Acabou. Antes nos divertíamos muito, havia encontros formidáveis. O Café de Flore e o Deux Magots eram outra coisa. Não tenho mais idade de me divertir como antes, mas, mesmo se tivesse, não teria a mesma graça”.
Entre suas frustrações, Jean-Paul Belmondo lamenta não ter realizado a adaptação para o cinema de “Viagem ao fim da noite”, de Louis-Ferdinand Céline, seu livro de cabeceira, e nunca ter possuído um grande trem elétrico de brinquedo, um sonho de criança. Dois pequenos detalhes em meio ao turbilhão de suas mil vidas. “Eu amo a vida”, conclui, no singular.