O combate de Tran To Nga: última esperança para as vítimas do agente laranja na Guerra do Vietnã

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Tran To Nga, em 1968, em meio aos embates na Guerra do Vietnã / ©Foto Arquivo Pessoal.

FERNANDO EICHENBERG/ FOLHA DE SÃO PAULO

PARIS – Em plena Guerra do Vietnã, num dia de 1966, a jovem combatente vietcongue Tran To Nga, então com 24 anos, escrevia sob a luz de lampião em seu esconderijo no labirinto de túneis escavados na região de Cu Chi, nas cercanias de Saigon, quando escutou o ruído de um avião sobrevoando em baixa altitude. Intrigada, saiu de seu abrigo subterrâneo para averiguar. Na superfície, vislumbrou uma nuvem branca saindo das entranhas de uma aeronave militar C-123, desenhando enormes manchas no azul do céu. Estática, observava aquela curiosa imagem “como se contempla a dança de um voo de aves migratórias”. De repente, uma chuva gosmenta começou a gotejar em seus ombros, grudando em sua pele e provocando um acesso de tosse. Sua mãe irrompeu aflita, implorando para que jogasse água no corpo e se desfizesse de suas vestes, ao mesmo tempo em que gritava: “É desfolhante! É o agente laranja, Nga!”. Seria a primeira de inúmeras chuvas químicas a que seria exposta ao longo do conflito.

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Tran To Nga hoje, em sua casa nos arredores de Paris. ©Fernando Eichenberg

Tran To Nga é uma das mais de 3 milhões de vítimas estimadas dos bombardeios de herbicidas despejados em cerca de 80 milhões de litros (sendo 60% do total correspondente ao agente laranja) pelas forças americanas no Vietnã, entre 1961 e 1971. O líquido era usado para destruir as colheitas e as espessas florestas nas quais os vietcongues se refugiavam em seu embate pela Frente Nacional para a Liberação (FNL) contra as tropas governamentais e dos Estados Unidos. O produto, de um alto grau de toxicidade por causa do elevado teor da dioxina TCDD utilizado na época em sua fabricação por empresas químicas americanas, é considerado como cancerígeno e causador de diferentes patologias, transmitidas até hoje ao longo de gerações por malformações congênitas e variadas intoxicações.

Tran To Nga, hoje com 74 anos, se tornou a derradeira esperança de reparação às vítimas da arma química usada no conflito do Vietnã. Cidadã francesa desde 2002, ela entrou com uma ação judicial penal no Tribunal de Grande Instância de Évry, no subúrbio de Paris (perto de onde reside), contra 26 empresas americanas fornecedoras do agente laranja para o governo dos EUA durante a emblemática guerra no sudeste asiático. Entre os réus do processo em andamento, estão conhecidos nomes como Dow Chemical e Monsanto. Seis audiências já foram realizadas, e a sétima está marcada para este ano, em um julgamento no qual as alegações finais de acusação e defesa ainda não têm data para acontecer.

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Em 1982, com suas duas filhas, uma nascida no mato, me meio à guerra, e a outra, na prisão de Saigon. ©Foto Arquivo Pessoal.

No passado, na impossibilidade jurídica de responsabilizar o governo dos EUA, veteranos de guerra americanos, vítimas indiretas do agente laranja no Vietnã, já haviam recorrido aos tribunais de seu país contra 37 empresas americanas. Em 1984, em troca da sustação de todo e qualquer processo judicial, os fabricantes depositaram US$ 180 milhões em um fundo de compensação para os ex-militares atingidos pelo herbicida. Associações de vietnamitas vítimas do agente laranja no conflito fizeram o mesmo, mas a justiça americana, até a última instância na Suprema Corte, em 2009, rejeitou todas as ações e recursos.

A legislação francesa permite a um cidadão do país que tenha sofrido um prejuízo extraterritorial cometido por um agressor estrangeiro recorrer à justiça na França. Tran To Nga atualmente é a única vítima viva conhecida que sofre de doenças causadas pelo agente laranja no Vietnã e que possui cidadania francesa. No início, ela não queria abandonar seu pacato e anônimo cotidiano para enfrentar uma longa e desigual batalha nos tribunais. Mas acabou convencida por um reputado militante da causa, o francês André Bouny, presidente do Comitê Internacional de Apoio às Vítimas Vietnamitas do Agente Laranja. “Já sou de idade avançada, não preciso de problemas com a justiça e nunca pensei em fazer um processo contra quem quer que seja, e quando me propuseram, recusei. Mas depois que me explicaram que sou a última chance jurídica para as vítimas afetadas pela dioxina – e não apenas vietnamitas, mas do mundo inteiro -, decidi aceitar. O destino fez de mim este elo entre a justiça e todas as vítimas do agente laranja”, conta Tran To Nga, ao receber a Folha em sua casa nos arredores de Palaiseau, ao sudoeste de Paris.

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Tran To Nga no tempo da Guerra do Vietnã. ©Foto Arquivo Pessoal.

Ironia da história, em maio do ano passado, o presidente Barack Obama anunciou, em visita oficial a Hanói, o fim do embargo de vendas de armas americanas ao Vietnã, em vigor há cerca de 50 anos.

Para ela, tudo mudou em uma manhã da primavera de 2011, ao abrir o envelope contendo uma simples página A4, remetido pelo laboratório alemão Eurofins GfA, dois meses após ter enviado seus exames médicos para análise. O resultado, assinado pelo médico Olaf Paepke, atestava que seu sangue registrava um índice de dioxina muito superior ao limite tolerado. Pelo menos quatro das enfermidades de que sofre figuram entre as 17 patologias relacionadas à exposição ao agente laranja na lista elaborada pelo Instituto de Medicina da Academia Nacional de Ciências de Washington. “Sofro de problemas cardíacos, sanguíneos, respiratórios, tenho nódulos por todo lado. Acabei de retirar dois tumores, um no seio. São todas doenças incuráveis ligadas à dioxina”, desabafa, ao mostrar curativos das três operações a que havia sido submetida nos dois últimos meses.

À frente do processo acusatório, já comparado por alguns a um embate de Davi contra Golias – pelo poderio financeiro das grandes empresas americanas e sua capacidade de mobilizar um exército de advogados -, está o especialista francês em direito penal William Bourdon, reconhecido por sua atuação em crimes contra a humanidade e fundador da associação Sherpa, de proteção aos direitos de cidadãos vítimas de crises econômicas.

Bourdon não aprecia a analogia da batalha jurídica de Tran To Nga com a história bíblica do duelo entre o gigante Golias e o jovem Davi. “Isso apaga a dimensão coletiva do combate dela. Se vencer, milhões de vietnamitas serão indiretamente indenizados. Eles vão vivenciar uma vitória jurídica como uma gratificação e um alívio. E não nos importamos em afrontar grandes escritórios de advocacia, pelo contrário, isso só nos encoraja e estimula” assegura, assentado à mesa de seu escritório, na rua de Rivoli, próximo ao Museu do Louvre.

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Nas fotos acima e abaixo, crianças deficientes vítimas da dioxina do agente laranja, no hospital de Ho Chi Minh.

Em 2009, um Tribunal Internacional de Opinião, sem alcance jurídico, composto de juízes de sete diferentes países (EUA, França, Índia, Romênia, Japão, Argélia e Chile), acusou a responsabilidade das empresas americanas e do governo de Washington pela criminosa utilização do agente laranja. William Bourdon participou do Tribunal, e na ocasião viajou até o Vietnã para colher elementos para o julgamento.

“É muito impressionante visitar o andar do hospital de Ho Chi Minh (ex-Saigon) reservado às crianças vítimas da dioxina. Se tem a impressão de estar diante de um quadro de Bosch (pintor holandês do Renascimento conhecido por retratar personagens grotescos e fantasmagóricos), tanto a desfiguração e o sofrimento destas crianças”, diz o advogado.

Em meio aos trâmites do processo, Tran To Nga lançou este ano o livro autobiográfico “Ma Terre Empoisonnée” (Minha terra envenenada, ed. Stock), um relato de sua turbulenta trajetória, desde seu nascimento no delta do rio Mekong, em 1942, seus estudos no liceu francês Marie-Curie, passando por seus combates no duradouro e sangrento conflito, até as portas do tribunal na França.

Em 5 de janeiro de 1966, então instalada em Hanói, capital do Norte comunista, Nga se lançou com duas centenas de vietcongues na saga da mítica “Trilha Ho Chi Minh”, rumo ao embate pela liberação do Sul aliado dos EUA: quatro meses de marcha por quase dois mil quilômetros de densas florestas e montanhas escarpadas, sob constante bombardeio inimigo. Durante a guerra, ela atuou como redatora da agência de comunicação clandestina ou agente espiã de ligação. Sua mãe, Nguyen Thi Tu, que presidia a União das Mulheres pela Liberação do Vietnã do Sul, morreu no conflito (o pai ela havia perdido aos cinco anos de idade).

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Sua autobiografia, lançada na França.

Em plena floresta, em 30 de junho de 1968, sua primeira filha, Viet Hai, nasceu com tetralogia de Fallot, uma cardiopatia congênita, também citada entre as enfermidades ligadas ao agente laranja. O bebê não resistiu à doença e faleceu aos 17 meses de vida. Tran To Nga teve ainda duas outras filhas: Viet Lien, nascida em 1971, também no meio do mato da guerrilha, e Viet Hong, em dezembro de 1974, na prisão de Saigon. Detida em agosto de 1974, Nga foi interrogada e torturada grávida, e deixou sua cela, com o bebê em seus braços, somente em 30 de abril de 1975, data da tomada de Saigon pelas forças comunistas e marco do fim da Guerra do Vietnã.

Tran To Nga sonhava com a paz e a reunificação do país, mas no pós-guerra sofreu sob o “permanente clima de suspeição”, a “vigilância revolucionária” e a “arrogância dos vitoriosos” com seus campos de reeducação. Sobre os novos dirigentes, escreveu: “Eles me traíram, eles nos traíram a todos”.

Em 1993, ela obteve permissão para viajar à França, onde se empenhou em arrecadar fundos para ajudar hospitais vietnamitas e organizou tours turísticos ao seu país natal. Num deles, levou cerca de trezentos veteranos da Guerra da Indochina a Dien Bien Phu, palco da épica batalha, travada em 1954, que deflagrou o fim da presença colonial francesa na região. Por sua contribuição à “amizade franco-vietnamita”, foi condecorada em 2004 com a Legião de Honra pelo então presidente Jacques Chirac.

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Tran To Nga próxima a sua casa. ©Fernando Eichenberg

Hoje, ela diz não se arrepender de suas lutas no front, dedicadas não a “um idealismo, ao comunismo ou a alguma ideologia”, mas à independência de seu país. “O que dá força e me sensibiliza é que, com este processo, pessoas no Vietnã se unem novamente. Há gente que na época da guerra estava do outro lado, e que hoje me apoia. Isso para mim é uma felicidade. Não se pode esquecer o passado, mas se pode deixar o ódio no armário para que possamos avançar juntos, o que atualmente não ocorre no país. Há uma política de reunificação, mas sem sucesso”.

A tragédia pessoal de Nga, seu embate na Justiça francesa e os efeitos nocivos da dioxina do agente laranja são também tema do documentário em produção “Madame Tran’s Last Battle” (A última batalha de Madame Tran), com direção de Alan Adelson e Kate Taverna. O filme é produzido pela Fork Films, de Nova York, especializada em direitos humanos e justiça social, com ênfase nas lutas de mulheres pelo mundo.

Independente do veredicto da Justiça, Tran To Nga já sabe o que fazer: voltará a viver no Vietnã. E no caso de vencer no tribunal e obter alguma indenização financeira, adianta que utilizará o dinheiro para construir escolas de formação profissional para crianças deficientes vítimas do agente laranja no Vietnã. “Na política, mais se é poderoso, mais se tem dificuldade em reconhecer o mal feito. Acho que é simples assim. Para reconhecer um erro, é preciso ter coragem. Não peço que a Dow Chemical, a Monsanto e todas as demais empresas se desculpem, mas que tenham a coragem de admitir o mal que cometeram, assim é possível ajudar a repará-lo”.

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Tran To Nga ©Foto Arquivo Pessoal.