FERNANDO EICHENBERG E GRAÇA MAGALHÃES-RUETHER O GLOBO
PARIS/BERLIM – A acelerada perda de força e de territórios do califado do Estado Islâmico no Iraque e na Síria criou um novo problema para o Velho Continente: o retorno de centenas de combatentes europeus que haviam partido para aderir à Jihad, e também de cônjuges e filhos. Em meio ao clima de constante ameaça terrorista, a questão dos repatriados do EI é fator de tensão nas populações europeias, num complexo debate de aspectos jurídicos, diplomáticos, humanos e de segurança. Entre medidas legais de aplicação imediata — prisão e julgamento — e planos de desradicalização de longo prazo, autoridades e organizações da sociedade civil buscam soluções para neutralizar o risco e, se possível, tentar a reintegração, principalmente de mulheres e crianças.
O analista Richard Barrett, ex-diretor de operações antiterroristas do serviço de inteligência britânico MI6 e coordenador por quase uma década do grupo da ONU de monitoramento dos terroristas da al-Qaeda e do Talibã, sublinha a dificuldade em quantificar os dados relativos aos combatentes estrangeiros do EI — normalmente subestimados —, e acredita que a questão do retorno será um importante desafio para os próximos anos, sempre com algum grau de risco seja qual for a razão da volta para casa.
— Não são muitos os que regressaram que parecem estar envolvidos em projetos ou ataques terroristas cometidos, mas isso não quer dizer que no futuro não estarão. No momento, poucos voltaram, e os que o fizeram estão quietos. Mas há diferentes maneiras de se tornarem uma ameaça, pode ser encorajando outros indivíduos a praticar atentados — diz Barrett, que hoje é membro dos grupos Soufan Center e Global Strategy Network.
O analista define o grupo de combatentes como bastante heterogêneo, os mais perigosos sendo aqueles que nunca alcançaram o EI, que não obtiveram os meios para integrar o califado ou foram interceptados no meio do caminho:
— Essas pessoas se sentem frustradas e fracassadas, e poderiam fazer algo. Além do mais, desde 2016 as instruções do EI são claras em relação à extrema importância dos atentados em casa em vez da adesão ao califado na Síria ou no Iraque.
As mulheres, na sua opinião, não devem ser tratadas apenas como “participantes passivas no EI”, pois muitas delas teriam se mostrado bastante comprometidas com a causa jihadista.
— Elas não são completamente uma “não ameaça”, e podem também encorajar outras pessoas a praticar ações terroristas. Por outro lado, algumas poderão se habituar novamente ao ambiente familiar de volta ao país. Já com as crianças será bem difícil lidar. Muitas foram doutrinadas, talvez os pais tenham sido mortos. Elas poderão viver muitos conflitos em relação à sua própria identidade e seu futuro, e serem vistas com suspeição por seus familiares, o que poderá aumentar o sentimento de alienação. Talvez nunca sejam capazes de esquecer esta experiência de vida no seio do EI.
PROGRAMAS DE DESRADICALIZAÇÃO
Barrett defende leis de segurança para conter a ameaça terrorista, mas acredita que a melhor forma de proteção está no engajamento da comunidade. Como tratar ex-combatentes após terem cumprido pena de prisão? Segundo ele, os países europeus ainda não foram capazes de fornecer respostas satisfatórias para esta questão.
— Na França, os programas de desradicalização nunca deram realmente certo, e o mesmo ocorreu em outros países. Mas aqui na Grã-Betranha está funcionando bem um programa iniciado há alguns anos, envolvendo educadores, assistentes sociais, líderes comunitários. É muito importante preservarmos nossos valores contra as tentativas dos terroristas de miná-los. Não importa qual seja a posição do público, os políticos devem ser firmes na defesa de nossas regras e leis. Quem agiu mal, deve ser investigado e julgado, mas não se pode ter uma só solução para todos os casos.
Na Alemanha, as agências de inteligência monitoram atualmente 1.870 suspeitos, pessoas que retornaram, que entraram como imigrantes ou seus descendentes. Alguns são observados 24 horas por dia. Para isso, foram contratados mais agentes e criado um serviço que registra denúncias. Segundo Hans-Georg Maassen, diretor da agência de inteligência, 90% dos telefonemas são denúncias sérias, com as quais já foi possível diversas vezes evitar uma ação terrorista.
— O Estado Islâmico não acabou e nunca vai acabar, pois é não somente uma organização terrorista. Trata-se também de uma ideologia. O que acabou foi o projeto do califado na Síria e no Iraque. O alvo da organização é agora a Europa — diz o alemão Bruno Schirra, especialista em Jihad, acrescentando que só com a intensa observação foi possível evitar novos atentados.
Mas nem todos os que voltam querem continuar no grupo terrorista. O cientista político alemão Peter Neumann registrou o depoimento de 60 desertores, que voltaram desiludidos com o EI.
— Mesmo os arrependidos continuam na mira da justiça. Como soldados do EI, eles cometeram crimes terríveis — afirmou um porta voz da secretaria de Justiça do estado da Saxônia.
Cinco adolescentes alemãs aguardam na Síria e no Iraque a chance de voltar para a Europa. Linda W. de 16 anos, da Saxônia, havia viajado sozinha falsificando uma permissão dos pais, e hoje está presa no Iraque, onde corre o risco de ser condenada à morte. Ela fazia parte das brigadas Khansa, e policiava a roupa das mulheres.
Em Paris, o escritório de advocacia de William Bourdon, reconhecido por sua atuação em crimes contra a Humanidade e fundador da associação Sherpa (de proteção aos direitos de cidadãos vítimas de crises econômicas), defende atualmente cinco casos de mulheres e crianças – um no Iraque, três na Síria e outro na Líbia — que viviam sob a autoridade do EI e desejam retornar à França. Entre eles, estão Melina, de 27 anos, e seus quatro filhos — um bebê de nove meses, duas meninas de 3 e 8 anos, e um menino de 5 anos —, capturados pelas forças iraquianas na batalha de Mossul.
Para Vincent Brengarth, um dos advogados encarregados dos dossiês, as recentes declarações do presidente Emmanuel Macron defendendo o “estudo caso a caso” para mulheres e crianças ajudou a “evoluir o debate”:
— Caminhamos para um julgamento de Melina no Iraque, e seus filhos devem retornar antes. Reconhecemos uma soberania das autoridades judiciárias iraquianas neste caso, mas este direito não pode varrer os direitos elementares, e a França deve evitar que seus cidadãos sejam passíveis da pena de morte. Mas defendemos uma família na Líbia e outras na Síria, locais sem reconhecimento internacional nos quais a França não possui representação nacional, e no momento não existe diálogo com as autoridades. São situações complicadas — resume.
ESTADO DE TENSÃO
Recentemente, o ministro britânico do Desenvolvimento Internacional, Rory Stewart, disse que, na grande maioria dos casos, a única maneira de lidar com os combatentes do EI de seu país seria matando-os. Já a ministra francesa da Defesa, Florence Parly, defendeu que tudo deve ser feito para derrotar o EI, e acrescentou que “tanto melhor” se jihadistas morrerem em combate. Para Brengarth, declarações “desmesuradas” deste tipo não colaboram para atenuar excessos por parte da opinião pública que defende o discurso “se os combatentes partiram para se juntar ao diabo, que lá permaneçam”.
— Há um estado de tensão em tudo o que se relaciona ao terrorismo. As emoções estão à flor da pele por causa dos atentados, fazendo com que hoje sejamos um pouco extremos na maneira de enxergar as coisas. Há um tipo de desumanização — diz o advogado. — Não se trata de defender o retorno destas pessoas no anonimato e na ignorância das autoridades. Falamos de uma volta acompanhada. A lei é precisa, os adultos serão colocados em detenção provisória e julgados. A responsabilidade dos pais deve ser examinada pela Justiça, mas devemos proteger as crianças, as duas coisas não são incompatíveis. É preciso evitar cair na armadilha de dizer que queremos os combatentes livres em nosso território.
Para Jean-Luc Marret, especialista em terrorismo da Fundação para a Pesquisa Estratégica (FRS, na sigla em francês), o fluxo de retorno de combatentes traz diferentes problemas políticos, sociais e de segurança para os países de origem. Ele compara a situação atual com a militantes que lutaram na Chechênia, em 2002, ou no Afeganistão, nos anos 1980.
— Um certo número destes indivíduos se retirou, criou uma família e abandonou naturalmente a jihad. Outros, continuaram a luta e se deslocaram pelo mundo ou retornaram a seus países, se tornaram heróis para alguns, e atuaram como facilitadores: recrutaram, radicalizaram, produziram propaganda. Outros ainda, pareciam ter virado a página, mas se remobilizaram com uma nova crise sofrida nas terras do Islã — diz Marret, para quem o maior problema será a emergência de uma nova terra da jihad no pós-Síria.
François Burgat, do Instituto de Pesquisas e de Estudos do Mundo Árabe, do Centro Nacional de Pesquisas Sociais (CNRS, na sigla em francês), acredita que o retorno dos combatentes estrangeiros do EI é um teste para a capacidade das sociedades europeias de respeitar ou não seus sistemas de valores:
— Não se poder fazer exceção de um dossiê particular, o dos jihadistas. Como primeiro princípio, devemos salvar em urgência absoluta as crianças, que não devem sofrer uma dupla pena, de seus pais e da rejeição emocional irrefletida da sociedade de seu país. Em segundo, devemos individualizar os casos. Não se pode ter soluções globais do tipo “que morram todos”, como infelizmente disse a ministra francesa. Isso é inaceitável. É uma negação da tradição judiciária e humanista à qual somos ligados. O papel exercido por esses jovens no seio do campo jihadista é muito diferenciado, bem como eram suas motivações quando partiram.
Para o analista, as medidas defensivas e repressivas não têm nenhum sentido se “combatemos o terrorismo com uma mão e o alimentamos com a outra”.
— É preciso uma reflexão profunda. Nós nos contentamos em condenar as ideologias radicais, o salafismo, mas isso é um reflexo extremamente limitado. O mais importante é condenar a disfunção dos mecanismos políticos que fabricam indivíduos que adotam as ideologias radicais — defende. — Não precisamos dos que regressam para que a ameaça subsista. A questão é saber se podemos ou não compreender que temos uma parte decisiva de responsabilidade na fabricação destes radicais. O estado de espírito da população não nos leva a esperar uma reação racional, por isso penso que vamos na direção de mais catástrofes — diz, pessimista.
Asiem El Difraoui, especialista do mundo árabe contemporâneo, autor de ensaios e documentários sobre o tema, acredita que o retorno dos combatentes pode se tornar um problema importante para países europeus e um dos grandes desafios no nível da desradicalização.
— Entra-se numa outra geração de jihadistas, que podem dissimular sua ideologia. A maioria vai presa. Mas é preciso que a prisão tenha os instrumentos necessários para abordar o problema. Outros sairão da prisão depois de um tempo. É necessário um acompanhamento de longo prazo. E há a questão das crianças, como se vai destraumatizá-las? Tudo isso é um processo lento, difícil e custoso.