FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – Em 22 de março de 1968, cerca de 150 estudantes, liderados por Daniel Cohn-Bendit, ocuparam a Universidade Paris Nanterre, nos subúrbios da capital francesa, no episódio simbolicamente considerado como marco deflagrador do movimento que se expandiu pelo país no mês de maio. Os jovens exigiam a liberação de um militante contra a guerra do Vietnã, preso alguns dias antes em uma manifestação no centro de Paris, e também a livre circulação de estudantes dos sexos feminino e masculino nas residências universitárias. Neste maio de 2018, Paris Nanterre é uma das universidades ocupadas na França por estudantes contrários ao projeto de lei do governo que altera regras de admissão no ensino superior. Sem desmerecer conquistas de maio de 68, mas também críticos ao movimento, a nova geração de rebeldes evita equiparar suas lutas de hoje com as barricadas de 50 anos atrás.
Sentada na mureta de um dos prédios ocupados da universidade, Armeline Bard, 26 anos, estudante de História da Arte e Arqueologia, ensaia cantos revolucionários com duas colegas. Para ela, Maio de 68 não tem nenhuma relação direta com a contestação estudantil de hoje. Em termos de referências, seus exemplos são a Frente Popular, de 1936, ou movimentos surgidos logo após o fim da Segunda Guerra Mundial.
– Muitos dizem que se foi possível em 1968, também pode ser este ano para nós. Isso dá uma motivação suplementar de mobilização, mas, pessoalmente, não vejo mais do que isso. Por causa da data de aniversário, se faz a comparação, mas penso que a politização do nosso movimento é, hoje, muito mais forte do que a de 1968. Não queremos entrar numa guerrilha com o governo, mas sermos ouvidos.
Armeline reconhece o papel de Maio de 68 na liberalização dos costumes e no avanço de direitos das mulheres, dos trabalhadores e dos estudantes, mas acredita que não tem lições a receber dos líderes da época.
– Não queremos uma retomada de 1968 e nem um Daniel Cohn-Bendit bis. Muitas das pessoas que se apropriaram politicamente e midiaticamente de Maio de 68, hoje pregam o liberalismo. Cohn-Bendit é inteligente, tinha carisma e as palavras, e se aproveitou de uma situação, mas não representa sozinho Maio de 68. Ele virou politicamente. E a sua maneira de querer se apoderar da revolta é algo muito pretensioso. É uma das razões pelas quais decidimos não ter um porta-voz, são vários estudantes que falam pelo nosso movimento – diz Armeline, cujo sonho é que a França volte a ter “o aspecto multicultural que havia conseguido manter até os anos 1980”.
Já Mathias Onni, 19 anos, estudante de Teatro e Cinema, defende uma “atualização de Maio de 68”:
– Cinquenta anos depois, notamos que as melhorias de 68 não mudaram muito e que nosso sistema permanece doente. Vejo, hoje, uma verdadeira esperança de que podemos ir além do que foi feito naquela época. Não digo que tenha sido um fracasso, mas os sonhos de 68, de construir uma nova sociedade, não se concretizaram, e devemos mostrar, hoje, que queremos nos revoltar e mudar as coisas.
As últimas cinco décadas, segundo ele, promoveram um salto tecnológico, mas conservaram problemas essenciais da vida em sociedade.
– Há muita diferença na maneira em que vivemos hoje, com os telefones celulares e toda a tecnologia, mas o fato de estudar, para depois trabalhar, voltar para casa para dormir e ter dinheiro para a aposentadoria, isso não mudou em 50 anos. Meu sonho é que alteremos nossa maneira de ver o mundo. Estamos numa dinâmica muito individualista, com muita concorrência, que é a lógica do sistema, e isso bloqueia o diálogo.
Estudante de Ciências Humanas, Gaspar Karel, 20 anos, alerta para o risco de se ver a História como uma repetição, mesmo diante de aparentes coincidências.
– Em 1968, havia “A imaginação no poder”, “Sejamos realistas, exijamos o impossível” e tudo mais. Mas prefiro refletir de forma concreta, não utópica. E considero completamente hipócrita a reitoria da universidade querer comemorar Maio de 68 com tudo o que se passa aqui hoje – dispara.
Victor Mendez, 20 anos, estudante de Sociologia, rebate a nostalgia de lutas passadas, mas reivindica um dos aspectos de 68: a união dos combates.
– Para nós, hoje, não se trata de refazer Maio de 68, mas de fazer Maio de 2018. Sabemos que as classes dominantes são tão ou mais avaras do que eram em 68, que a crise é mais grave, o desemprego mais elevado, a precariedade mais importante, e a guerra está em escala mundial. Se quisermos avançar, é preciso que o conjunto de nossas greves convirjam. Na França, há muitas lutas em ordem dispersa, e a questão, hoje, é se unir para vencer o governo Macron.
A estudante de Direito, Alexia Mounassa, 20 anos, confessa não se sensibilizar com as celebrações em torno do cinquentenário.
– Não são lembranças e memórias nossas, não vivenciamos isso. A universidade destaca bastante o que se fez aqui naquela época, prédios foram rebatizados com nomes de professores que participaram das manifestações, foi um belo movimento, mas não é algo que me toca pessoalmente. As pessoas tentam insuflar um pouco a chama de 1968 agora nos bloqueios das universidades, mas não parece funcionar como antes. Nossas reivindicações não estão alinhadas com as lutas da época. Havia muito pouco feminismo em Maio de 68, por exemplo.
Anaïs Godard, 23 anos, estudante de Negócios Públicos da Universidade Sorbonne-Paris-Cité, espera que o aniversário de 50 anos possa decretar a emancipação em relação a 68:
– Talvez esta comemoração possa permitir que se diga: “Bom, agora Maio de 68 faz parte da História, mas é um horizonte que precisamos superar, e não devemos mais sermos obrigados a nos agarrar a isso a cada novo movimento social”. É uma oportunidade que se esteja fazendo este paralelo hoje, e quem sabe amanhã possamos nos agarrar a Maio de 2018, se acontecer.
Para ela, apesar dos avanços conquistados, Maio de 68 propunha uma utopia, e não uma real alternativa. E lamenta o destino dos expoentes do movimento:
– A maioria, entre muitos que atuam no espaço público, virou a casaca. Eram jovens, tinham 20 anos, e se tornaram de direita com a idade. Cohn-Bendit, infelizmente, diz muitas besteiras hoje, mas, ainda assim, há um certo espírito de 1968 que ficou.