FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – Para o reputado pensador francês Michel Maffesoli, a disputa presidencial entre o centrista Emmanuel Macron e a líder da extrema-direita Marine Le Pen ilustra um sistema político em estado de agonia que “vai ressurgir em algo novo”. Segundo o sociólogo, a França real é representada, hoje, no voto de abstenção.
Como o senhor analisa esta eleição? // É a expressão do que chamo de transfiguração do político. Estamos num momento em que a política está perdendo o que era sua verdadeira vocação, a gestão racional da cité, e assume formas paroxísticas e caricaturais. E o resultado desta eleição é a ilustração disso. É um verdadeiro problema para a França ser obrigada a escolher entre (Marine) Le Pen, um nacionalismo fechado, do retorno às fronteiras, e (Emmanuel) Macron, que para mim é a superficialidade, a impostura política, sem gravidade ou profundidade, o tecnocrata querido, bonito e inteligente, o genro perfeito. Nenhum dos dois está, do meu ponto de vista, em sintonia com a população. Na minha opinião, o primeiro partido da França será a abstenção. E, além disso, há muitos jovens que aos 18 anos não tomaram a iniciativa de se inscrever para votar. Se não o fazem, é porque não se reconhecem mais na política como é hoje.
Acredita em alguma mudança na política a partir desta eleição inédita? // É sintomático que no final da eleição se tenha estas duas caricaturas, porque é sobretudo uma implosão do político. A política tal qual fomos habituados a pensar não existe mais. A essência da política, nos séculos XVIII e XIX, era pensar um projeto distante de organização da sociedade, seja revolucionária, reformista, conservadora. O projeto não funciona mais. As pessoas, em particular os jovens, se interessam mais no presente, no aqui e agora, e não se projetam mais. E há uma saturação da política. Mas há sempre o viver junto, e que hoje se vê nas novas associações, nas redes sociais, em novas formas de solidariedade e de generosidade na internet. As pessoas se organizam de outras formas.
Qual o resultado desta defasagem entre a política tradicional e a vida real? // É interessante notar que os dois principais partidos franceses, Os Republicanos e o Partido Socialista, foram eliminados no primeiro turno. É outro indício do que estamos falando. Restam o extremismo de Le Pen ou Macron, um personagem desencarnado, apoiado pelas finanças e por antigas figuras da política. É o que podemos chamar de canto do cisne, o fim de alguma coisa, e que se dá sempre de uma forma caricatural. É a agonia de uma época. E o ressurgimento vai ocorrer além ou aquém do político, pelas novas formas de organização do viver junto.
O sistema resiste a esta agonia… // É normal. Quando uma época termina, leva seis ou sete décadas antes que algo de novo se instale. Segundo a astrofísica, vemos por muito tempo a luz de uma estrela morta. A estrela do político elaborada nos séculos XVIII e XIX está morta, mas leva tempo antes de nos darmos conta disso. Nos encontramos neste período de crise, em que estamos abandonando algo e ainda não encontramos o novo.
O senhor critica o atraso de uma “elite intelectual” nesta crise.. // Nós, esta classe, permanecemos nos velhos esquemas do Iluminismo, dos grandes sistemas sociais do século XIX, o que Hannah Arendt chamava de elaboração do ideal democrático, e nos vemos desconectados do que representam os valores das jovens gerações.
A palavra democracia perdeu seu significado? // Sim, porque quer dizer em seu estrito sentido “o poder do povo”. E onde está o poder do povo quando o poder é detido por algumas castas? Maquiavel, que era um grande pensador da política, dizia que em certo momento há uma defasagem entre o pensamento do palácio e o pensamento da praça pública. Estamos vivendo isso hoje.
Na sua opinião, não importa quem seja eleito, não haverá grandes mudanças? // Primeiro, será preciso esperar as eleições legislativas de junho. Se não houver maioria parlamentar, o presidente não poderá fazer muita coisa, e corre o risco de um governo ingovernável. Na minha opinião, haverá manifestações nas ruas, vai ser bastante difícil. De qualquer forma, penso que o novo presidente eleito, no sentido etimológico e político do termo, não tem representação, então prevejo uma multiplicação de revoltas e de rebeliões, um pouco como os Indignados madrilenhos.
Como o senhor analisa os 19,5% obtidos pela França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon? // Outro indício interessante. Mélenchon, no fundo, representa o exato complemento de Le Pen. Ou seja, o medo da Europa, um pouco de demagogia populista, e uma maneira de captar este desejo de revolta. E é um homem inteligente, fala bem. Funcionou bem.
O crescimento do populismo na França e na Europa seria mais um sinal desta crise? // É também um sinal do fato que a concepção do político, baseado no antigo contrato social, de Rousseau e Auguste Comte, não funciona mais. Permanecemos neste esquema muito racional, e não se leva em conta o ressurgimento emocional, as novas tribos. Há a emergência do net-ativismo: não são mais os partidos que indicam como se deve fazer, mas as redes sociais. É o aspecto mais interessante que mostra a saturação do político. O partido é a verticalidade, e o net-ativismo é a horizontalidade. A intelligentsia fica na verticalidade, enquanto tudo se passa por contaminação horizontal. Barack Obama compreendeu isso, e fez muito de seu sucesso no uso das redes sociais. O político é racional: “Eu sei o que é bom para os outros, e o povo não sabe.” E isso acabou no momento em que a informação se torna horizontal, para o bem ou para o mal. O político não pode mais ter esta atitude do sábio.