FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – O visitante que desembarcar, hoje, na França, e se deparar com universidades ocupadas por estudantes, greves de trabalhadores e confrontos com a polícia em manifestações de rua poderia, acidentalmente, pensar que retrocedeu no tempo até maio de 1968. As comparações das turbulências contemporâneas com o mítico mês que há 50 anos abalou o país e entrou para a História têm sido frequentes, mas de pronto contestadas pela facilidade de suas coincidências e por seu anacronismo. Em plena efeméride cinquentenária, no entanto, o contexto atual insuflou o debate sobre o legado de 68.
Entre aqueles que acusam o onipresente imaginário do movimento de obstaculizar lutas do presente, os que reivindicam uma inconteste herança positiva e outros que culpam a revolta de outrora por eventuais males deste início de milênio, o emblemático Maio de 68 é esmiuçado na França, entre críticas e celebrações, revivendo bandeiras e fantasmas.
Há exato meio século, em 13 de maio de 1968, uma greve geral foi decretada no país, e uma grande manifestação de trabalhadores e estudantes invadiu as ruas da capital francesa. Naquele dia, a reocupação da Universidade Sorbonne, no Quartier Latin, marcava mais um capítulo da revolta que imortalizou slogans como “É proibido proibir” ou “A imaginação no poder”, e paralisou cerca de 10 milhões franceses durante quase um mês (cerca de sete milhões de grevistas e três milhões de pessoas impedidas de trabalhar).
Para o historiador Philippe Artières, autor de “68, os arquivos do poder – crônicas inéditas de um Estado face à crise” (ed. L’Iconoclaste), ao completar seus 50 anos, Maio de 68 se afirmou na memória coletiva e se tornou objeto do patrimônio francês, retratado em uma infinidade de exposições, filmes documentários, peças de teatro, concertos, performances, debates e uma série de eventos acolhidos em locais como a Assembleia Nacional, a Biblioteca Nacional, o Centro Pompidou, a Cinemateca Francesa ou o Teatro Odéon. Os lançamentos de livros sobre o tema alcançaram cerca de 160 títulos, o dobro do número registrado no aniversário de 40 anos, em 2008.
– Em 2007, o então candidato Nicolas Sarkozy (que depois venceria as eleições presidenciais) disse que era preciso liquidar com a herança de 68 – lembra Artières. – Mas, hoje, a ideia é a de que o movimento faz parte de nossa História. Por trás dos folclorismos e dos slogans, foi a mais importante greve geral da França no século XX. E como disse o sociólogo Luc Boltanski, em 1968 se lutava pelo melhor dos mundos, e hoje se luta pelo menos pior.
Segundo o filósofo e sociólogo Geoffroy de Lagasnerie, Maio de 68 funciona na cultura contemporânea como um mito, categoria que o leva, por definição, a receber interpretações contraditórias. Na sua opinião, há um mito da esquerda que pretende fazer do movimento um puro momento de política radical, revolucionária e emancipadora; já a direita vê o histórico episódio como o começo do fim, causa de uma crise da tradição, da autoridade e do ensino.
– Na esquerda ou na direita, o consenso é fazer uma crítica do presente a partir de 68. Seja para dizer que a esquerda de hoje é menos revolucionária ou, pelo lado conservador, que o presente é menos ordenado. Os dois fazem funcionar o movimento como um ódio ao presente, numa forma de não enxergar os fenômenos de luta e de emancipação contemporâneos. É algo que me incomoda, e não me sinto à vontade nas celebrações de Maio de 68. Há mitos que podem levar à ação, mas outros que nos impedem de agir.
O pensador retoma a ideia do sociólogo Pierre Bordieu, para quem 68 não foi uma fusão, mas sim uma sincronização de lutas. A falsa ideia da convergência de combates, segundo ele, entrava, hoje, o avanço de novas formas de reivindicações e de mudanças:
– Menos um movimento se assemelhar, hoje, a Maio de 68, mais terá chances de ser eficaz. “Nuit Debout” (conjunto de manifestações em praças públicas na França, em 2016) matou a mobilização contra a nova lei trabalhista. Se ampliou e se enfraqueceu. Querer unificar, hoje, estudantes insatisfeitos com ferroviários em greve e habitantes de bairros populares é bom intelectualmente, mas politicamente faz cada luta perder sua singularidade e sua força. WikiLeaks deu certo porque nada tem a ver com 68.
Lagasnerie destaca a importância da emergência de um espírito libertário e anti-institucional na época, e aponta embates que foram acelerados ou freados pela revolta de 1968. Para ele, os movimentos feminista, gay e antirracista obtiveram conquistas e inventaram novos registros de ação, mais autônomos, de caráter jurídico ou de espetacularização, e foram capazes de criar o “tempo político”. Por outro lado, a “mitologia de Maio de 68” teria colaborado para a “crispação do movimento operário”, estagnado em formas tradicionais e desgastadas de protesto, ineficazes em sua capacidade de ameaçar o Estado.
– O movimento trabalhador parou seu tempo político e regrediu. Além disso, os movimentos de hoje são defensivos. Em 1968, os estudantes queriam uma outra universidade, os jovens desejavam uma outra relação com a sexualidade e os operários entraram em greve por menos horas de trabalho e mais salário. Hoje, o Estado diz que vai reformar a universidade e o estatuto dos ferroviários, e se entra em greve para impedir as mudanças. Nos movimentos contemporâneos, ganhar não quer dizer que se vai progredir, mas manter a situação presente.
As reverberações da revolta de 68 resultaram no surgimento, em 1973, do jornal de tendência esquerdista “Libération”, cofundado e dirigido em seu primeiro ano de existência pelo filósofo Jean-Paul Sartre. Instalado em sua ampla sala na nova sede da publicação, ironicamente localizada ao lado do Ministério da Defesa francês, o atual diretor de redação, Laurent Joffrin, autor do livro “Maio 68, uma história do movimento” (ed. Points), logo ressalta uma exceção francesa:
– Após Maio de 68, a França não derivou na violência terrorista como a Itália ou a Alemanha. Aqui, criamos um jornal em vez de uma organização militar. Era mais inteligente.
Joffrin tinha 16 anos em 1968. Aluno no colégio Lavoisier, situado nas proximidades do bulevar Saint-Michel, criou com colegas um comitê de ação que reivindicava o direito de usar cabelos compridos, fumar no pátio da escola e, num espectro maior, a “refundação total do sistema de educação”. Hoje, se insurge contra as críticas a 68, e rejeita também a tese de que o individualismo hedonista da época tenha aberto a via para o neoliberalismo:
– Estudantes e trabalhadores se mobilizaram em nome de valores como a liberdade individual, é verdade, mas também pela solidariedade e igualdade. O liberalismo se instalou a partir dos anos 1980, deflagrado não por Maio de 68, mas pela revolução conservadora que nasceu na Califórnia, com Ronald Reagan, e no Reino Unido, em 1979, com a vitória eleitoral de Margaret Thatcher. O prolongamento político de 68 não foi a revolução liberal, mas sim a vitória da esquerda em 1981 (eleição do socialista François Mitterrand à presidência da França). O individualismo de 1968 é contra a hierarquia. O individualismo de mercado é pela sociedade de consumo, denunciada por Maio de 68. É um contrassenso comparar os dois – sustenta.
Segundo ele, a relação de forças entre direita e esquerda, hoje, é desigual, e uma nova geração de integristas, identitários e xenófobos incentiva o debate crítico em 68.
– E a extrema-esquerda, como sempre, faz o processo da esquerda, mas isso é assim há um século – acrescenta. – Mas a grande maioria das críticas são reacionárias, de pessoas que não aceitam a evolução da sociedade e querem recuar. É absurdo, ninguém quer viver como era antes de 1968, quando os filhos de casais divorciados eram malvistos, as mulheres recém haviam sido autorizadas a assinar cheques, e as relações familiares, nas universidades e no trabalho eram bastante autoritárias.
Para Joffrin, os estudantes foram apenas o estopim da revolta de 1968, que acabou se alastrando pela sociedade:
– O Folies Bergère entrou em greve, a Federação Francesa de Futebol foi ocupada por jogadores, o Festival de Cinema de Cannes parou. Em 1968, os ferroviários queriam mudanças, já os de hoje, numa greve clássica, querem deixar tudo como está. Maio de 68 foi otimista, um movimento direcionado para o futuro, com um lado utópico, no final de um período de extraordinário crescimento. Hoje, as pessoas estão muito pessimistas. Não há mais mitos revolucionários na França. Em 1968, ainda havia.
A pensadora e historiadora da psicanálise Élisabeth Roudinesco garante que em 1968, aos 24 anos, não temia os confrontos de rua.
– Cuidava para não receber um paralelepípedo na cara. Mas não tive medo um só momento. E nunca pensei que haveria uma revolução, no sentido de tomada de poder, ou que De Gaulle enviaria o Exército contra a população, com tanques nas ruas de Paris.
Para ela, hoje não se trata de superar Maio de 68, mas de entender o movimento em meio a um mal-estar atual da sociedade que nada tem a ver com o clima de revolta de 50 anos atrás.
– Naquela época não havia desemprego de massa, era uma situação de euforia. Hoje, não há reivindicações, mas pequenas rebeliões, porque a política do presidente Emmanuel Macron tem defeitos, é a passagem ao liberalismo, o que não será feito de maneira simples. É um período tumultuado, com a recusa da construção da Europa e o crescimento dos populismos. Maio de 68 foi algo raro, uma cristalização que gerou um acontecimento maior, mundial. Hoje, o acontecimento maior é o terrorismo islâmico e, depois, a eleição de Donald Trump, nos EUA, que foi uma catástrofe.
Autor de várias obras sobre Maio de 68, o historiador Boris Gobille refuta as críticas de que o movimento teria gerado laxismo, crise de autoridade na escola, perda de valores ou um individualismo exacerbado. Para ele, a revolta de 1968 favoreceu tipos de ações coletivas, via um engajamento militante e também associativo, o que seria refletido, hoje, na profusão de formas de autogestão ou em experiências comunitárias. Na sua análise, o essencial de 68 foi a articulação da contestação dos estudantes com a greve dos trabalhadores e assalariados em geral, principalmente na grande manifestação do dia 13 de maio.
– Hoje, também há esta tentativa de tentar unificar lutas. Há estes movimentos nas universidades, na SNCF (estatal ferroviária), e ainda na Air France, nos Correios e entre os advogados e magistrados. Mas o contexto global e econômico não é o mesmo, e no setor privado o nível de sindicalização caiu muito desde aquela época.
Para Gobille, maio de 68 não foi uma revolução, mas chegou a se configurar como uma “situação revolucionária”, o que provocou críticas ao Partido Comunista Francês e a centrais sindicais por não terem se aproveitado do momento para tomar o poder.
– Em 1968 havia mais utopia, mais ideologia. Hoje, os movimentos são mais defensivos. Como se sabe, a História não se repete, e não se pode avaliar a combatividade das lutas atuais pela ótica de 68.
Em um texto publicado no jornal “Le Monde” em 10 de maio de 1968, nomes como Jean-Paul Sartre, Jacques Lacan e Marguerite Duras afirmaram sua solidariedade à contestação das ruas e a “importância capital” da manutenção por parte do movimento dos estudantes de uma “força de recusa capaz de abrir um novo futuro”. Em seu ensaio “A revolução inexistente – reflexões sobre os acontecimentos de maio de 68”, publicado em julho de 1968, o filósofo Raymond Aron definia a revolta como, ao mesmo tempo, “anacrônica e futurista”. Em 2018, maio de 68 continua inflamando paixões, mas para Boris Gobille esta poderá ser a derradeira comemoração importante do movimento:
– O cinquentenário e mais a conjuntura atuam muito na intensidade das celebrações de hoje. É incrível pensar que o tempo passado entre 1918 e 1968 é o mesmo do período entre 1968 e 2018. Talvez seja o último aniversário que se comemora desta forma.