Louvre inaugura a maior exposição já realizada sobre Leonardo da Vinci

“A Virgem e o Menino com Santa Ana” (1503-1519). ©RMN-Grand Palais (museu do Louvre)/René-Gabriel Ojéda

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Um artista colossal como o italiano Leonardo da Vinci (1452-1519) merecia, nos 500 anos da sua morte, uma homenagem à altura de sua genialidade. Pode-se dizer que o Museu do Louvre não moderou esforços para isso. A instituição celebra a data reunindo um número inédito de obras de sua autoria em um mesmo espaço para exibição ao público. “Leonardo da Vinci”, mostra que será aberta ao público nesta quinta-feira, e que promete se inscrever como um dos maiores eventos da história do museu parisiense, expõe mais de 160 trabalhos do mestre renascentista, entre pinturas, desenhos, esculturas e manuscritos. A exposição inova também ao revelar o desenvolvimento do método criativo de Da Vinci por meio da exibição de reflectografias de infravermelho de telas do pintor, resultado de análises científicas feitas ao longo dos últimos anos. Ao final do percurso, o visitante poderá viver ainda uma experiência de realidade virtual com a “Mona Lisa”, uma dos mais icônicos quadros do planeta.

‘Cabeça de mulher’ ou ‘La Scapigliata’, pintura em óleo sobre madeira realizada entre 1501-1510,  © Galeria Nacional de Parma

Para preparar o acontecimento, os curadores Vincent Delieuvin e Louis Frank mergulharam durante dez anos no universo de Leonardo da Vinci, período em que também acumularam viagens pelo mundo. Os pedidos de empréstimos de obras começaram a ser expedidos a museus e colecionadores há quatro anos, em uma saga repleta de reviravoltas e de imbróglios diplomáticos e judiciais, provocando suspenses até o último minuto. O Museu Hermitage, da cidade russa de São Petersburgo, só confirmou a liberação da tela “Madona Benois” há pouco mais de dez dias. Após uma disputa entre os governos francês e italiano, o desenho “Homem vitruviano” – célebre estudo das proporções do corpo humano -, cujo empréstimo fora bloqueado por um tribunal de Veneza, foi finalmente autorizado na semana passada a incorporar a mostra parisiense. E mesmo que as chances sejam ínfimas, o Louvre ainda mantém um fio de esperança em poder contar com “Salvator Mundi”, a obra de arte mais cara do mundo, vendida por US$ 450 milhões em um leilão da Christie’s, em 2017, a um comprador anônimo (provavelmente um representante do príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman).

“São João Batista” (1508-1519), uma das cinco pinturas do artista do acervo do Louvre. ©RMN-Grand Palais (museu do Louvre/Michel Urtado

De  um total de 15 a 18 pinturas que são atribuídas a Da Vinci, o acervo do Louvre conta com cinco – a maior coleção do mundo – e mais 22 desenhos, e a isso o museu conseguiu somar um número expressivo de obras. Delieuvin lamenta a ausência de criações como “Ginevra de Benci”, da National Gallery of Art de Washington, “Dama com Arminho”, do Museu Nacional de Cracóvia, e “A Anunciação”, da Galleria degli Uffizi de Florença. Mas essas lacunas não ofuscam, segundo ele, o brilho e o ineditismo da exposição parisiense.

– A rainha da Inglaterra foi de extrema generosidade, pudemos escolher os desenhos que queríamos e obter o máximo permitido, em número de 24. O Vaticano de imediato nos deu o sim para o empréstimo de “São Jerônimo”. Também conseguimos o “Codex Leicester”, da Fundação Bill Gates. A exposição é excepcional porque é a primeira vez que se reúne um número tão grande de telas e desenhos importantes e que se pode explicar o conjunto da vida de Da Vinci, a evolução de sua arte e sua exigência pela pintura. As demais mostras se concentravam em um aspecto ou período de sua trajetória – disse Delieuvin a O GLOBO na última sexta-feira, durante uma das visitas organizadas para a imprensa, que tiveram a inscrição de cerca de 500 jornalistas do mundo inteiro.

“A Virgem, o Menino, Santa Ana e São João Batista” (1500). ©The National Gallery, London

Para o curador, a presença de um grande número de obras de todas as fases do artista cria na exposição a sensação de “se estar penetrando em seu ateliê”. A ideia foi também quebrar com a tradicional abordagem das transformações artísticas de Leonardo Da Vinci em seis períodos cronológicos e geográficos, vinculados as suas viagens entre Florença, Milão, Roma e a França,. A mostra do Louvre está dividida em seções como “Sombra, luz, relevo”, “Liberdade”, “Ciência”, “Vida”, além de “Leonardo em Milão”, “O retorno à Florença” e “A partida para a França”.

– Por muito tempo se ficou preso a este tipo de leitura da vida de Leonardo a partir de seus deslocamentos geográficos. Mas nos demos conta de que as rupturas artísticas em sua vida estão em outro lugar, em outro momento. No final dos anos 1470, ele rompe com o imperativo da forma perfeita. No fim dos anos 1480, sente a necessidade de compreender o movimento do mundo. Isso o leva, na sequência, a dar uma base científica a sua arte, com os estudos de óptica, geometria, matemática, botânica ou anatomia. E se encerra com a realização de “A Última Ceia”, na metade dos anos 1490. Ao se analisar por suas viagens, há uma tendência a separar obras que possuem uma grande ligação artística e técnica e que pertencem ao mesmo período de desenvolvimento – sustenta.

Reflectografia de infravermelho da “Mona Lisa” feita pelo Centro de Pesquisa e de Restauração dos Museus da França. ©C2RMF/Elsa Lambert

Uma das novidades da exposição é a apresentação de importantes telas do artista, entre elas a “Mona Lisa”, no formato de reflectografia de infravermelho, em escala real, o que acabou se revelando também como uma forma de suprir a falta de certas obras. Graças à investigação científica por meio de estudos realizados nos últimos anos em laboratórios da França, Itália ou Inglaterra, foi possível obter novos elementos para o entendimento da gênese das pinturas de Da Vinci.

No final da exposição, o visitante poderá viver uma experiência virtual com a “Mona Lisa”. ©Fernando Eichenberg

– Em 2015, surgiu uma nova técnica, a cartografia de pigmentos, utilizada este ano no estudo da “Gioconda”. Já o infravermelho revela o primeiro desenho de Da Vinci na tela, todas as alterações feitas depois e também parte do começo do trabalho pictural. São informações extraordinárias. É como se estivéssemos atrás dele no ateliê, diante de seu cavalete, vendo como pintou ao longo do tempo. Ele levava cinco, dez ou 15 anos para pintar uma quadro, e fazia constantes modificações. É possível notar o aperfeiçoamento de sua técnica pictural. As primeiras reflectografias são bem diferentes das últimas, em que a matéria pictural é bem mais delicada, em obras nas quais a transição de sombra e luz é muito mais sutil – explica Delieuvin.

Vítima de seu sucesso, a “Mona Lisa” não deixará seu nobre espaço na Sala dos Estados, recentemente renovado, para se integrar à exposição. O visitante poderá admirá-la em seu local habitual, mas terá também a opção, ao final do percurso da exposição, de passar, de forma individual, por uma experiência de realidade virtual, a primeira realizada no Louvre: “Em tête-à-tête com a Gioconda”, de duração de sete minutos.

“Estudo de mãos” (1485-1492). ©Her Majesty Quenn Elizabeth II

Mais de 180 mil ingressos já foram vendidos – em compra obrigatória pelo site do museu – para a mostra, que se encerrará em 24 de fevereiro de 2020. Delieuvin não escondia sua emoção às vésperas da inauguração, após dez anos de trabalho e três semanas acompanhando o desencaixotamento das obras e sua fixação nos muros:

– Conhecia todas essas obras dispersas, e vê-las reunidas é quase como dar vida novamente ao ateliê de Leonardo. Por trás do mito e da “Mona Lisa”, há obras de arte com uma força e uma emoção impressionantes. Ele pintou muito pouco, deixou muitos quadros inacabados, não publicou nada, teve projetos extraordinários, e as pessoas ficaram fascinadas. Esta exposição é uma ocasião de ver o que fez de mais belo em sua vida, mas, sobretudo, de compreender o percurso excepcional deste inigualável gênio da pintura. Creio que ninguém sairá incólume desta visita – aposta.