Jogadores franceses relembram vitória sobre o Brasil na Copa de 1986

Luis Fernandez cobra o último pênalti da série e elimina o Brasil da Copa do México de 86. ©Sebastião Marinho/Agência O Globo

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Em 21 de junho de 1986, Michel Platini, então célebre capitão da seleção francesa e craque da Juventus de Turim, comemorou seu aniversário de 31 anos de forma inusitada. A festa vespertina foi organizada em plena Copa do Mundo, no hotel da concentração da equipe nacional, à beira do Lago Chapala, no México. O chef confeiteiro da delegação havia se esmerado durante horas na preparação de um enorme bolo no formato de um campo de futebol, que nem teve tempo de ser degustado, pois, em clima de comédia pastelão, acabou em poucos minutos lambuzado no rosto e nos cabelos dos jogadores. O ambiente era de júbilo. Poucas horas antes, Platini e seus fiéis companheiros haviam eliminado o Brasil nas quartas de final do Mundial do México, num jogo que entrou para a história da competição.

Assentado em um café parisiense, Luis Fernandez, o carrasco dos brasileiros na decisiva cobrança de pênaltis, relembra os momentos precedentes ao apito inicial:

– Era o aniversário de Michel, desejávamos lhe dar um presente fazendo uma grande partida. Havia um espírito festivo. Sabíamos que o estádio estaria todo vestido de amarelo e não queríamos nos ridicularizar contra os brasileiros, mas sim participar da festa.

A seleção brasileira, comandada por Telê Santana, exibia nomes como Sócrates, Zico, Careca, Júnior, Branco, Edinho ou Alemão. Os franceses, liderados pelo técnico Henri Michel, contavam com seu “carré magique” (quadrado mágico), formado por Platini, Alain Giresse, Jean Tigana e Luis Fernandez, além de Manuel Amoros, Dominique Rocheteau ou o goleiro Joël Bats. No tempo normal, o jogo terminou empatado em 1 a 1 (1T: Careca, aos 16min, e Platini, aos 41min). Após a prorrogação sem gols, a França venceu nos pênaltis por 4 a 3, encerrando, naquele ano, com o sonho brasileiro do tetra.

A previsão de Fernandez se cumpriu. No dia 12 de junho, em Guadalajara, o lendário estádio Jalisco, palco de cinco das seis vitórias brasileiras na conquista do tricampeonato em 1970, se tornou monocromo: mal se notavam escassas manchas azuis em meio ao mar amarelo da torcida.

– Tinha 11 anos quando vi Pelé, Gérson, Tostão ou Rivelino jogarem em 1970. Me lembro bem da preleção de Henri Michel. Respeitávamos os brasileiros, queríamos jogar contra os mestres, aqueles que eram amados, os artistas. A Copa do Mundo de 1986, para mim, era como se fosse a de 1970. E o jogo contra o Brasil era como se fosse a final.

Sócrates escapa da marcação de Jean Tigana. ©Anibal Philot/Agência O Globo

Para Tigana, outro integrante do “carré magique”, o embate das quartas de final se tornou mítico e inesquecível:

– Ainda hoje, mais de trinta anos depois, tenho prazer em assistir a este jogo. É raro isso acontecer. É uma partida atemporal. A cada vez que os brasileiros recuperavam a bola, a música retumbava no estádio: “bum, bum, bum”. Quando tínhamos a posse de bola, a música parava. E isso se repetia. Estávamos em outro planeta. Mas Henri havia dito que era possível fazer o Brasil duvidar de si mesmo, e que podíamos fazer o impossível.

A partida começou com vantagem brasileira até o gol de Careca, e teria sido graças à intervenção dos jogadores franceses junto ao técnico que a relação de forças se equilibrou. Henri Michel havia escalado de início Luis Fernandez como lateral direito, para conter os avanços de Branco, desfazendo assim o “carré magique”. Vendo que o esquema não funcionava, os próprios atletas, de dentro do campo, pediram ao treinador que recompusesse o quadrado.

– Nossa tática não se mostrou eficaz – conta Tigana. – Quando tomamos o gol, mudamos, e Luis Fernandez voltou para o meio comigo. A partir deste momento, começou a haver um equilíbrio. Nós quatro tínhamos uma cumplicidade. Havia dois jogadores mais defensivos, Luis e eu, e outros dois mais ofensivos, Platini e Giresse. Foi neste momento que “ganhamos” o jogo. Se não tivéssemos feito esta alteração tática, teríamos perdido.

Fernandez, que naquele ano estava prestes a partir do Paris Saint-Germain, se diz consciente de seu papel no quarteto da seleção nacional:

– Era, talvez, tecnicamente, o menos dotado de todos. Mas o mais dotado para durar por mais tempo. Didier Deschamps fez parecido depois. E veja o Brasil de hoje, com Fernandinho, Paulinho. Teve também Dunga no passado. Para que os grandes talentos possam se expressar, são necessários estes tipos de jogadores de personalidade e caráter mais forte.

Para Alain Giresse, que atuava junto com Tigana sob as cores do Bordeaux, o “carré” tinha mais a ver com a complementaridade do que com táticas e estratégias:

– Tem a ver com capacidade de cada um jogar com os outros e pelos outros. Platini era nosso mestre de obras. Eu o acompanhava num registro mais técnico. Tigana e Fernandez ficavam mais no apoio. E se criou essa complementaridade pela inteligência de cada jogador – resume.

O Brasil x França de 1986 é uma unanimidade entre amantes do futebol como uma das melhores partidas de todas as Copas. A intensidade do jogo surpreende até hoje, inclusive os protagonistas. O atacante Bruno Bellone, do AS Monaco, assistiu à partida na maior parte do tempo do banco de reservas, antes de entrar em campo aos 99min, com pelo menos duas participações importantes: um lance de quase gol diante do goleiro Carlos, aos 11min do 2T da prorrogação, e o pênalti convertido na série decisiva.

– Era como um filme, você está no banco e contempla a partida. O jogo era muito rápido, a bola ia de um lado a outro do gramado. Havia contra-ataques sem parar. A bola quase não saía de campo. Foi impressionante – recorda.

Para Fernandez, a bola estava “imantada nos pés de brasileiros e franceses”.  Mas a energia dispensada tinha seus custos. O confronto, marcado para às 12h, para satisfazer os horários televisivos europeus, foi disputado sob tórrido sol, numa temperatura em torno dos 40°C, a cerca de 1.500 metros de altitude. Os franceses, habituados a sensações menos tropicais, acusaram o desgaste físico.

– No intervalo, havia um esgotamento geral, e todos respiravam nos cilindros de oxigênio à disposição no vestiário – relata Bellone. – As condições climáticas eram muito complicadas, e o menor esforço em campo se pagava na hora. Era muito cansativo fazer acelerações e depois recuperar. A ordem era errar o mínimo possível de passes, pois a cada vez que o fazíamos, os brasileiros reagiam muito rapidamente.

Franceses comemoram a vitória sobre o Brasil. ©Luiz Pinto/Agência O Globo

No segundo tempo, aos 26min, Zico, que estava no banco por causa da recuperação de sua lesão no joelho, entrou no lugar de Müller, e em seu primeiro lance colocou Branco sozinho diante de Joël Bats. Pênalti a favor do Brasil. Nesta hora, para os franceses, a classificação “c’est fini”, lembra Fernandez.

– O lance teve origem numa bola que eu havia perdido. Na hora em que o pênalti foi marcado, Platini veio correndo em minha direção e disse: “É melhor que eles errem, senão vou te dar um chute na bunda!”. E quando Zico falhou na cobrança, fui logo abraçar Bats.

Tigana admite que quando o árbitro romeno Ioan Igna assinalou a penalidade máxima contra a França, tudo parecia perdido:

– Para nós, foi um choque. Mas Bats fez uma defesa excepcional. E no rebote, me encontro entre dois brasileiros (Careca e Sócrates). Sou eu que coloco a bola para escanteio. Se não estou lá, haviam dois brasileiros para marcar.

A suplência de Zico neste e nos demais jogos da seleção na Copa do México surpreendeu os franceses.

– Nós não entendemos porque Zico, o Pelé branco, era reserva – diz Fernandez. – Platini jogou com uma lesão muscular durante toda a competição. Estava todo dia na fisioterapia, na massagem, recebendo cuidados. Não estava fazendo cinema, tinha dor. Ele queria ser campeão do mundo, e forçou a lesão. No fim, já não podia mais.

Na série de pênaltis que definiria a seleção classificada para a semifinal, pelo lado do Brasil, Sócrates e Júlio César erraram suas cobranças, e pelo lado francês, Platini, o craque do time, lançou a bola na estratosfera. Bellone passou perto do fracasso, seu chute colidiu na trave direita, mas, para sorte dos franceses, a bola rebateu no goleiro Carlos e foi para o fundo das redes.

– Eu não estava na lista para os pênaltis, mas um jogador nosso se recusou a bater, e Henri Michel me obrigou a ir. Lembro que enquanto me preparava, Zico e Carlos fizeram todo um cinema para me colocar pressão, mas isso só me despertou. Quando fui bater, queria afundar o goleiro. Mas, nesta hora, todo um filme se passa na sua cabeça, e pensava que, se erro, não poderia mais voltar para a França. Carlos se atirou para o lado certo, mas, de alguma forma, o bom Deus me ajudou. Estava tão irritado com o que ele havia feito antes, que gritei “Toooomaaaaa!”.

O quinto e decisivo pênalti estava nos pés de Luis Fernandez. Se marcasse, a França se classificaria. Se errasse, a série continuaria. Normalmente, Platini deveria ter sido o quinto batedor, mas Fernandez, acostumado a cobrar sempre em último, assumiu seu lugar.

– Antes da cobrança, lembro que Platini, Bellone e Stopyra vieram falar comigo, e eu disse: “Fiquem calmos, tranquilos”. Quando tiro, já sei onde vou colocar. E tive sorte, a bola foi para um lado e o goleiro para o outro. Foi uma alegria enorme, saí correndo, mas na beira do gramado não havia torcedores franceses, só aquele estádio amarelo. Se pudesse, correria até Paris para abraçar minha mulher e meu filho recém-nascido, de três meses.

A vida de Bellone se prestaria a uma autobiografia – e não faltaram propostas de editoras. A certeza de sua vocação para o futebol profissional surgiu, segundo ele, aos 11 anos, quando despertou em uma madrugada e viu uma aparição: uma mulher vestida de branco, apenas com os olhos a descoberto, e que lhe disse, por telepatia, “Você será jogador de futebol”. Certa vez, ele deveria ser operado, mas na véspera, já hospitalizado, seu cirurgião, um caçador de tubarões, foi treinar com o arpão na piscina de casa, a flecha bateu na borda, voltou de traseira, atingiu a cabeça e deixou o médico paraplégico. Bellone foi trapaceado por seu agente, se viu obrigado a abandonar a carreira aos 28 anos por causa de uma lesão, e teve um divórcio que lhe deixou sem dinheiro. Sem falar na morte de Grace Kelly: o Rover acidentado, que provocou os ferimentos letais na princesa, caiu da estrada de Monaco no jardim da casa em que morava com dois outros jogadores.

– Quando voltamos do treino, já tinham retirado tudo, e nos disseram que a Grace Kelly havia caído no jardim de nossa casa – relembra Bellone. – É verdade que tive uma vida bastante atípica e caótica. Mas se tem uma lembrança maior que guardo, é a da cobrança de pênaltis em 1986. Foi um momento duro e também bonito.

Encerrada a partida, já no vestiário, Tigana começou a entoar “Aquarela do Brasil”, batucando numa mesa, e de pronto foi acompanhado por outros jogadores, que começaram também a dançar, Platini em primeiro lugar. Bellone garante que na troca da Marselhesa pelo samba não havia a intenção de zoar dos brasileiros, mas sim uma forma de respeito pelos adversários em um clima de alegria.

– Foi uma maneira de dizer “bravo!” às duas equipes e “estamos orgulhosos de vencer o Brasil” – argumenta. – E houve uma frase magnífica no vestiário. Numa hora, Platini nos fez parar de cantar e disse: “Pessoal, obrigado, vocês salvaram a minha cabeça!”. Se tivéssemos sido eliminados, ele sabia que seria massacrado pela França inteira por ter falhado seu pênalti.

Após a derrota nos pênaltis, time brasileiro deixa abatido o campo. ©Sebastião Marinho / Agência O Globo

Os quatro jogadores recorrem a adjetivos similares e adotam o mesmo tom de admiração e de excepcionalidade para descrever um momento “mágico” vivido no pós-jogo. Em meio à celebração, os franceses se deram conta de que, ao final da partida, não haviam pego as camisetas dos jogadores brasileiros, um precioso suvenir de um confronto memorável.

– Fomos até o vestiário dos brasileiros, batemos na porta e nos deixaram entrar – conta Giresse. – Foi um momento extraordinário e impressionante. Imagine, éramos vencedores, felizes, e diante de nós tínhamos estes grandes jogadores que choravam, completamente abatidos. Foi um momento muito raro e único, de enorme intensidade emocional. Nos sentíamos como intrusos, incomodando pessoas que estavam na dor. Mesmo que déssemos um tapinha amigável, não iríamos consolá-los, porque éramos os autores de sua decepção. Mas não havia rancor. Eles não nos disseram: “Saiam daqui, não venham nos importunar”. Foi um momento totalmente pessoal, porque não era público, ninguém assistiu, mas que também faz parte do conjunto do jogo.

Giresse trocou de camiseta com Júlio César, e lembra que o zagueiro brasileiro estava apoiado na pia do vestiário, a cabeça baixa. O francês lhe deu um “tapinha” nas costas e fez o gesto sugerindo a troca de uniforme.

– Ele estava derrotado, e além do mais havia perdido seu pênalti. O que eu poderia dizer? Não há o que falar. Nenhuma palavra pode consolar tamanha desilusão. Pouco depois, ele veio jogar no Brest, eu estava no Marselha. E o segundo jogo do campeonato foi Brest x Marselha. Falei de Guadalajara, ele se recordava da camiseta. Foi engraçado, era como se houvesse uma história entre nós naquela partida. Isso também é a magia da Copa do Mundo.

Tigana trocou de camiseta com Sócrates, num emotivo momento abraçado ao craque brasileiro, que chorava.

– Sócrates era tão alto em relação a mim. Foi um momento forte, sem palavras. Guardo sua camiseta com carinho, ainda mais hoje, pois na época não sabia de tudo o que ele fazia pelo povo, suas lutas. Era alguém muito sensível. Recentemente, quando assisti a um documentário sobre ele, me vieram lágrimas nos olhos. Era um grand monsieur. Essa é a minha maior lembrança, os brasileiros nos receberam admiravelmente no vestiário.

Para Bellone, que recebeu a camiseta de Zico, a sensação não foi diferente:

– Ante do jogo, havia combinado com Zico, e ele disse “ok, com grande prazer”. Pensei que ir até o vestiário depois da partida seria bastante complicado, pois sabia que os brasileiros estavam muito decepcionados. Muitos deles choravam. Mas Zico me ofereceu sua camiseta e nos demos as mãos. Foi magnífico, algo muito belo.

Um pequeno consolo para os brasileiros veio no dia seguinte, na vitória de Ayrton Senna no Grande Prêmio de Detroit, nos Estados Unidos, justamente à frente dos franceses Jacques Laffitte, em segundo lugar, e Alain Proust, em terceiro. Na volta da vitória rumo aos boxes, Senna percebeu um torcedor segurando uma pequena bandeira brasileira. Parou sua Lotus, pediu que lhe alcançassem a bandeira, e finalizou o percurso segurando-a ao vento, num gesto inédito que se tornaria símbolo de suas conquistas.

Fernandez credita o bem-sucedido percurso da seleção francesa no Mundial de 1986 (apesar da derrota na semifinal para a eterna rival Alemanha) em grande parte à extrema união do grupo.

– Não havia nenhum problema entre nós. Nem entre titulares e reservas. Nos onze que jogavam, ninguém era contestado. Nunca vi uma discussão sequer. Nos treinos, nunca ocorreu nada de ruim. Brincávamos e ríamos juntos. Não tenho nenhuma lembrança de ter vivido um só mau momento. Havia um clima fantástico, e isso nos dava muita força. Por isso, quando tirei o pênalti, estava tranquilo. Com um grupo unido assim, pode-se até perder que não há problema.

Platini revelou que havia jurado a si mesmo de nunca mais marcar pela França, para que o gol contra o Brasil, no dia de seu aniversário, se eternizasse como o último de sua carreira na seleção. E assim foi. No ano seguinte ao Mundial do México, em sua derradeira partida pela equipe nacional, contra a Islândia, o capitão de número 10 às costas passou em branco no marcador. Se foi por falta de oportunidade ou proposital, não se sabe.