FERNANDO EICHENBERG / UP MAGAZINE
PARIS – Inglesa de nascimento, Jane Birkin começou cedo sua vida artística. Aos 17 anos, debutou nos palcos londrinos em uma peça de Graham Greene. Aos 19, se casou com John Barry, oscarizado compositor britânico, reputado pelas trilhas sonoras dos filmes de James Bond. No cinema, despontou em 1966 no controverso filme cult “Blow up” (Palma de Ouro do Festival de Cannes 1967), de Michelangelo Antonioni, em que provocou escândalo ao protagonizar uma das pioneiras cenas de nu frontal nas telas. Em 1968, conheceu, em Paris, Serge Gainsbourg (1928-1991), poeta maldito e músico irreverente, com quem viveu uma intensa e duradoura relação de 12 anos. Hoje, aos 72 anos, estrela mais uma turnê internacional, interpretando canções de Gainsbourg, acompanhada de uma orquestra sinfônica. Nesta entrevista, fala de suas viagens pelo mundo e do primeiro volume de seu diário, recentemente lançado na França.
Na primeira vez em que Jane Birkin embarcou em um avião, aos 15 anos de idade, em Londres, o destino predizia seu futuro: Paris. Sua avó fez roupas especiais para seu inseparável boneco de macaco, o “Munkey”, que viajou ao seu lado na poltrona, com o cinto de segurança afivelado. O interior da aeronave era todo revestido de tecido com motivos escoceses. “Foi extremamente excitante. Lembro de chegar em Paris, com minha mãe e meus irmãos, passear em Champs-Elysées, tomar chocolate quente, ouvir as pessoas falando francês. Depois, pegamos um trem para a praia, no sul da França. Mas o que me deixou siderada foi meu pai, que se juntou a nós mais tarde, e que colocou seu automóvel dentro do avião em que viajou! Era uma época em que se podia fazer isso”, recorda.
No ano seguinte, em 1963, retornou à capital francesa para uma temporada de aprendizado do francês, hospedada com mais cinco inglesas no apartamento de uma senhora no número 67 do bulevar Lannes, coincidentemente mesmo endereço de Édith Piaf. Quando a célebre cantora morreu, uma multidão de fãs e fotógrafos se aglomerou diante do prédio. Brigitte Bardot e Yves Montand foram algumas das celebridades que vieram ao apartamento de Piaf. Quando a jovem Birkin saiu de casa no dia seguinte, alguém gritou “Françoise Hardy!”, pensando se tratar da popular cantora francesa. “Foi engraçado. Ainda mais que considerava Françoise Hardy formidável. Tinha acabado de comprar seu último disco (“Tous les garçons et les filles de mon âge”). Foi divertido ter sido confundida com ela. Não falava nada de medo que meu sotaque me traísse. Queria deixar que ficasse a dúvida”, conta.
Sua vida sofreu uma definitiva virada ao desembarcar outra vez em Paris, em 1968, para contracenar com Serge Gainsbourg no filme “Slogan”, de Pierre Grimblat, em um papel que havia sido previsto para a consagrada modelo Marisa Berenson. No começo, contrariado, ele não facilitou as coisas para a principiante atriz, mas do encontro frutificou uma relação que os tornaria um dos casais mais emblemáticos de seu tempo, parceiros no amor, em noitadas mundanas ou em projetos artísticos. A dupla se tornou onipresente em capas das mais diferentes publicações e símbolo da liberalização dos anos 1970. A canção “Je t’aime moi non plus“, furor erótico de 1969 de autoria de Gainsbourg, fora inicialmente reservada para Brigitte Bardot, mas os versos de sensualismo explícito e gemidos lúbricos acabaram revelados pelas agulhas dos toca-discos na voz de Jane Birkin.
Depois de seu monótono casamento com John Barry, a vida boêmia em Paris com Gainsbourg foi a descoberta de um novo mundo. O casal se divertia nas conhecidas casas noturnas da época – como Régine, Castel, Madame Arthur ou Raspoutine – ou pernoitavam de improviso em um hotel de prostitutas no bairro Pigalle. “Era um território estrangeiro e completamente fascinante. E vivia como se ninguém em casa, em Londres, fosse saber o que fazia. Era uma vida secreta. Me sentia em liberdade total. Quando fiz fotos nuas para a revista Lui, acreditava que nada se saberia fora da França, e fiquei horrificada quando vi um exemplar sob a mesa da sala na casa dos meus pais, em Chelsea. Era uma liberdade que jamais tive em Londres. Minha mãe (a atriz Judy Campbell) recusou uma peça formidável com Peter O’Toole no Royal Court Theatre porque teria de dizer ‘fuck’ em seu texto. Ela me falou: ‘Não posso fazer isso para o seu pai’. Imagine eu, com ‘Je t’aime moi non plus’. Me sentia livre na França. Sei que o Swinging London foi bastante excitante naquela época, mas estava casada, e para mim não era. E, em Paris, se podia ficar horas em um café, onde as pessoas falavam e discutiam sem parar. Era para mim uma cidade de liberdade”, resume.
Naturalizada francesa, Jane Birkin jamais perdeu seu sotaque britânico e nunca mais abandonou Paris, cidade que a acolheu e onde viveu as mais belas aventuras. “Sou feliz de morar pelo bairro de Odéon. É um sonho poder caminhar até os cinemas, os pequenos restaurantes. Para mim, é um dos lugares mais bonitos de Paris”. Seu cotidiano, no entanto, ela reconhece ser atípico: “Como as pessoas me conhecem e me tratam tão bem, me dou conta de que me proporcionam uma vida realmente extraordinária. Deixam entrar meu cachorro, Dolly, nos restaurantes. Em um café, dão sempre um jeito de me arrumar uma mesa. Na rua, me sorriem, por vezes me tocam, dizendo: ‘Obrigado, somos contentes que você esteja aqui’. E é um amor recíproco, adoro os franceses e seus defeitos, gosto do jeito que se queixam o tempo todo. Não são lógicos como os ingleses. E me fazem rir”.
Ao longo de sua carreira, atuou em mais de 70 filmes e lançou mais de uma dezena de discos. Mãe de três filhas (a fotógrafa Kate Barry – que se suicidou no final de 2013 -, do casamento com John Barry; a atriz e cantora Charlotte Gainsbourg, de sua relação com Serge Gainsbourg, e a também atriz e cantora Lou Doillon, cujo pai é o cineasta Jacques Doillon), a ex-sex symbol e hoje avó permanece uma artista curiosa e uma incansável viajante. “Minha mala está praticamente sempre pronta na porta de casa, porque estou a toda hora partindo”, conta, referindo-se as suas intermináveis turnês musicais pelos quatro cantos do planeta ou as suas viagens por causas humanitárias. “Adoro as viagens de avião e as refeições nos voos. Quando chega a bandeja de comida, é um pouco como na escola, tudo me parece excitante, inesperado. Por vezes, estava mal em Paris, e quando entrava no avião, me sentia bem de novo. Uma longa viagem, como ir ao Japão, é o melhor remédio. E quando passam a pequena toalha quente enrolada para as mãos… É como ser uma criança, nas alegrias da infância”.
Em sua longa relação com Gainsbourg, no entanto, as viagens aéreas eram mais complicadas. “Ele tinha medo, sentia vertigem. Nas decolagens e aterrissagens, segurava forte minha mão como fazem os passageiros aterrorizados. Não me deixava fazer xixi durante o voo, porque temia que eu fosse desequilibrar a aeronave se caminhasse no corredor. Era um verdadeiro pânico. Mas à medida que fomos viajando mais, o medo foi diminuindo. Quando fomos à Índia juntos, já estava melhor. Ele teve a má sorte de ter se relacionado um tempo com uma ex-aeromoça, que forneceu informações que lhe foram fatais. Agradeço a essa jovem, Sylvie, por ter lhe deixado louco com as viagens de avião”, diz, em tom irônico.
De Portugal, revela ter uma das mais belas lembranças: o Palácio dos Marqueses de Fronteira, em Lisboa. Para ela, é o castelo do clássico “A Bela e a Fera”. “Os jardins são impressionantes. E há azulejos nos muros, com animais fantasiosos, morcegos que bebem chá. O solo branco é lindo. Tudo é bonito. E além disso, os portugueses são engraçados, têm um humor atípico que não sei de onde vem”. Istambul é um de seus lugares preferidos no mundo, onde sempre costuma retornar, para mostrar seus encantos a pessoas próximas. “Adoro seus mercados de peixes, os restaurantes, o Grande Bazar. É uma cidade surpreendente, e tão bela quanto Veneza”. Eram frequentes suas escapadas com Serge Gainsbourg à capital da região de Vêneto, habitués do mítico Hotel Danieli, que hospedou nomes ilustres como Goethe, Wagner, Honoré de Balzac, George Sand, Émile Zola ou Charles Dickens. “O Gritti Palace é ainda mais chique, mas os dois são esplêndidos. Era especialmente lindo estar lá no inverno, quando não havia quase ninguém. Por vezes, cobriam de tábuas a praça São Marcos, por causa das inundações. Era romanesco. Tínhamos a impressão de sermos os únicos em Veneza. Quando íamos embora, o hotel fechava nosso quarto até recomeçar o período mais turístico. Adorava partir na embarcação rumo à estação de trem, observar as persianas cerradas e saber que tudo aquilo adormeceria até a próxima temporada”.
Jane Birkin também é uma viajante engajada. Esteve em Sarajevo, na Birmânia ou no Japão em solidariedade a populações em dificuldades. “O mais curioso foi a viagem ao Haiti, após o terremoto. Apesar da tragédia, foram momentos alegres em todos os hospitais que visitei. Em um deles, uma senhora de 90 anos me perguntou quem eu era. ‘Sou cantora’, respondi. Ela me pediu para cantar algo. E cantarolei ali mesmo. É um povo muito alegre, foi um encantamento estar com eles”.
O nome Birkin evoca também a famosa bolsa da marca Hermès, que leva a assinatura de sua criadora. A peça surgiu por acaso no início dos anos 1980, pela coincidência de um encontro com Jean-Louis Dumas, na época diretor da marca de luxo francesa, em um voo Paris-Londres. “No avião, me vi sentada ao lado de um senhor distinto, perguntei o que fazia, e ele disse que ia para Londres por causa de uma publicidade da Hermès. Indaguei: ‘Por que vocês não fazem uma bolsa quatro vezes maior que a Kelly (inspirada na atriz Grace Kelly), mas a metade do tamanho das malas de viagem?’. Ele me perguntou como seria, e desenhei um pequeno esboço”. Algumas semanas mais tarde, foi convidada a comparecer na sede da marca, no Faubourg Saint-Honoré, para conhecer o protótipo da bolsa que havia criado. “O modelo em papelão já era extremamente bonito. Ele me consultou se poderia dar meu nome à bolsa, e fiquei muito lisonjeada. Anos mais tarde, alguém me disse que era um dos itens mais procurados, não tinha ideia de que estava em voga”. A bolsa Birkin se tornou uma it bag, acessório obrigatório de celebridades, e virou inclusive tema do livro “Bringing Home the Birkin: My Life in Hot Pursuit of the World’s Most Coveted Handbag” (Levando a Birkin para Casa: Minha Vida numa Louca Busca da Bolsa Mais Cobiçada do Mundo, ed. HarperCollins), de Michael Tonello.
Jane Birkin lamenta nunca ter ido à China – “de qualquer maneira, por ser amiga do Dalai Lama, o governo chinês não me concede visto”, explica -, e diz que gostaria de poder falar russo e fazer uma longa viagem de trem pelo país de Dostoievski. Atualmente em turnê internacional com um show de canções de Gainsbourg, acompanhada por uma orquestra sinfônica, costuma, em meio aos seus périplos, ancorar em um porto seguro: sua casa em Lannilis, na região da Bretagne. Recentemente, havia decidido se desfazer da morada, mas duas semanas antes da assinatura da venda, se arrependeu: “Cheguei a fazer um jantar de despedida lá para os meus vizinhos, e na manhã seguinte me dei conta de que seria uma loucura, não poderia me desvencilhar daquela casa. Porque há muitas lembranças. Minha filha Kate gostava muito lá. Ela está por todo lado naquele ambiente. E justo em face está a ilha na qual meu pai vinha salvar pessoas durante a Segunda Guerra Mundial”. Seu pai, comandante da Royal Navy, atravessava o Canal da Mancha de barco para resgatar aviadores ingleses escondidos pela Resistência francesa na ilha de Guenioc.
Além de suas andanças no tempo presente, Birkin acaba de fazer uma viagem ao passado. Lançou o primeiro volume de seu diário, “Munkey Diaries” (ed. Fayard), com suas confissões íntimas iniciadas em 1957, aos 11 anos, nas quais conversa com o melhor amigo Munkey. Em 1962, com 16 anos, se imaginou, décadas mais tarde, folheando as páginas do diário: “Quando serei velha, por volta dos 40 anos, ou perto disso, com centenas de filhos, ficarei, talvez, um pouco triste de ler alguém tão jovem”. Hoje, ela diz: “Quando reli isso, dei risada. Não sabia que era angustiada com o envelhecer. Hoje, penso que 40 anos é a mais maravilhosa das idades. Mas acho que isso se explica porque era apenas bonita, nunca fui conhecida por ser uma formidável atriz ou cantora. E ser somente bonita é algo que não dá muita confiança. Um dia, minha mãe disse: ‘It’s gone’. Perguntei: ‘O que, mamãe?’. ‘Minha beleza, se foi’ (risos). Ela tinha 80 anos. E, hoje, acho que é verdade: ‘It’s gone’. Mas não somos só isso, há outras coisas. Vi Glenda Jackson, com 80 anos, atuar no teatro em ‘Rei Lear’, com um rosto como os joelhos de elefantes. Magnífica. E, de repente, passamos a amar os joelhos de elefantes”.
Já em suas intensas relações amorosas, diz ter sofrido com suas inseguranças. O amor, em suas experiências, é sinônimo de sofrimento. “Creio que no meu caso, se transformou muito rapidamente em sofrimento, pois entro em pânico com a ideia de não merecer a outra pessoa e pensar que ela me deixará por outra. Não é bom viver neste estado de estresse. Obviamente, que isso se baseia na confiança na outra pessoa e em si mesma. Mas é o que há de mais chato nas pessoas que não têm confiança em si mesmas”, admite.
O segundo volume do diário, ainda sem data de lançamento, se encerra em 2013, ano da morte de sua filha Kate. “Fiquei incapaz de continuar a partir dali. Tinha confiança em mim em uma só coisa: ser mãe. Pensava que sabia fazer isso melhor do que todo mundo. Era tudo perfeito. Minhas filhas eram divinas e também se davam muito bem entre elas. A morte de Kate transformou tudo completamente em um tipo de caos. E somos obrigados a viver com isso, como alguém que perdeu um braço, uma perna, duas pernas, e tem de aprender a viver com o resto do corpo. Faz mais de cinco anos. Na preparação do diário, não podia lhe telefonar para dizer: ‘Olha, li no diário que você fazia isso e aquilo…’. Mas todo mundo que perdeu alguém conhece isso”.
Jane Birkin acrescentou alguns textos explicativos em meio ao diário, para contextualizar certas passagens, e também incluiu desenhos feitos por ela na época, que ilustravam suas confissões íntimas. O primeiro tomo, de 350 páginas, termina em 1982, em um período que cobre suas descobertas adolescentes e a formação do lendário casal com Serge Gainsbourg. Entre tantas revelações pessoais e histórias de vida, fica-se sabendo também que, em 1976, o então desconhecido Gérard Depardieu atuou no filme “Je t’aime moi non plus”, escrito e dirigido por Serge Gainsbourg e também estrelado por Jane Birkin, em troca de uma caixa de champagne.