FERNANDO EICHENBERG/ O GLOBO
PARIS – A seis meses do pleito presidencial francês, em abril de 2022, surpresas aumentam as incertezas no cenário eleitoral. As pesquisas indicavam até o momento uma nova disputa de segundo turno entre o presidente Emmanuel Macron e a candidata de extrema direita Marine Le Pen, como em 2017, com vantagem para a reeleição do primeiro. Mas a potencial candidatura do polemista de ultradireita Éric Zemmour alterou o tabuleiro político e abriu novas possibilidades para o resultado das urnas, em uma pré-campanha marcada até agora por temas caros ao campo conservador, como imigração, segurança e questões identitárias.
Na pesquisa Harris Interactive divulgada na quarta-feira, Macron chegaria ao segundo turno com 24% das intenções de voto, mesmo índice obtido no pleito de 2017. Zemmour, em uma dinâmica ascendente, saltou de 5,5% em junho para 17%, superando pela primeira vez Marine Le Pen, do partido Reunião Nacional (RN), com 15%. O candidato da direita moderada Xavier Bertrand obteve 13%, à frente de Jean-Luc Mélenchon, da esquerda radical França Insubmissa, com 11%. A candidata socialista Anne Hidalgo, prefeita de Paris, e o ecologista Yannick Jadot alcançaram modestos 6% cada. Considerada a margem de erro nas pesquisas, a luta pelo acesso ao segundo turno estaria embaralhada entre Le Pen, Zemmour e Bertrand.
Contrariamente a Marine Le Pen, que ao longo da última década deflagrou um processo de “desdiabolização”, maquiando e suavizando o discurso extremista do partido – e inclusive alterando o nome da sigla -, Zemmour intensificou abertamente sua radicalização direitista. Em suas intervenções como comentarista no canal de TV conservador CNews, em sua coluna no jornal Le Figaro ou em seu livros, acusa repetidamente a imigração e o islã como os males maiores do “declínio francês”. Já defendeu o direito das empresas solicitarem às agências de emprego que não lhe sejam apresentados candidatos negros ou árabes às vagas disponíveis. Mais recentemente, afirmou que se fosse eleito presidente da República proibiria no país a adoção de prenomes não franceses, como Mohammed. Processado sete vezes desde 2010 por provocação ao ódio religioso, à discriminação racial, injúrias racistas e violência verbal, sofreu duas condenações. Três outros processos o aguardam na Justiça.
Para o cientista político Jean-Yves Dormagen, da Universidade de Montpellier, Zemmour “faz pensar em Jair Bolsonaro”:
– É alguém muito à direita, que divide bastante, com posições muito radicais. Hoje, a clivagem em torno do islã, dos estrangeiros, do controle das fronteiras e do que é identidade na França é bem mais forte do que há cinco ou dez anos. São estes temas que pautam este período de pré-campanha. E o sucesso de Zemmour se faz exclusivamente em cima desta clivagem.
Zemmour não esconde sua admiração por Donald Trump e não se priva de copiar tiradas do ex-presidente americano. Philippe Corcuff, autor do ensaio “A grande confusão – como a extrema direita ganha a batalha das ideias”, define seu discurso como um conjunto de “bricolagens ideológicas” associando xenofobia, sexismo e homofobia, em um quadro nacionalista que “fantasia um povo-nação culturalmente homogêneo”. Segundo ele, o fenômeno Zemmour se beneficia do “forte declínio da clivagem esquerda/direita”, e desenha no horizonte uma possível vitória eleitoral da extrema direita.
Embora não tenha oficializado sua candidatura ao Palácio do Eliseu, Zemmour já sinalizou que não tardará a fazê-lo. Por enquanto, aproveita a ampla cobertura de mídia que tem recebido na turnê nacional de lançamento de seu novo livro, “A França não disse sua última palavra”, como a grande novidade desta eleição.
Dilema de Marine Le Pen
Para Dormagen, sua provável candidatura e seu atual desempenho nas pesquisas “reabrem completamente o jogo e redistribuem as cartas” da eleição presidencial:
– Hoje, Marine Le Pen não tem mais assegurada sua presença no segundo turno, o que aumenta as incertezas em relação à reeleição de Macron. A configuração mais complicada para ele seria enfrentar um candidato da direita tradicional, como Xavier Bertrand. Sua base eleitoral seria reduzida, pois teria menos votos da direita, e correria o risco também de uma forte abstenção dos eleitores da esquerda.
Em sua ascensão nas pesquisas, Zemmour rouba votos dos eleitores de Le Pen e também da direita republicana. O próprio Jean-Marie Le Pen, pai de Marine e cofundador da Frente Nacional (atual RN), declarou que se o polemista ultraconservador for o “candidato melhor colocado do campo nacionalista”, certamente receberá seu apoio. E não perdeu a oportunidade de criticar a filha por ter abandonado suas “posições fortificadas”.
O partido de Marine Le Pen teve resultados decepcionantes nas últimas eleições municipais e regionais, e sua líder se encontra hoje, diz Dormagen, em uma armadilha:
– Ela desmobilizou seu eleitorado, deixando um espaço vago. Sua estratégia de desdiabolização acabou por ter efeitos negativos na dinâmica de campanha. E uma parte de seus eleitores estão passando para o lado de Éric Zemmour.
Para Mathias Bernard, especialista em história contemporânea da Universidade Clermont Auvergne, a maior dificuldade para Zemmour é o fato de não ser um “profissional da política”:
– É sabido que não é fácil encarar o combate de uma eleição presidencial quando não se tem um aparelho político, militantes, financiamentos. Não é simples para uma personalidade da sociedade civil transformar um potencial eleitoral em realidade no dia do voto.
Para Macron, os obstáculos são, na sua avaliação, de outro teor. A equação política de 2017 não será a mesma em 2022, ressalta.
– Macron foi favorecido em 2017 pela onda de “degagismo” (desejo de remoção do poder dos políticos do sistema vigente). Ele encarnava algo novo, em termos geracionais – é o presidente mais jovem da Vª República -, de personalidade, e com uma oferta política diferente. Três anos antes da eleição, não era praticamente conhecido de ninguém. Hoje, não é mais novidade, e o degagismo pode se voltar contra ele.
Bernard assinala que no primeiro turno de 2017 o centro de gravidade do eleitorado de Macron se situava na centro-esquerda. Já a evolução de seu quinquênio, resume, foi marcada por uma “direitização política de governo e de seu corpo eleitoral”.
– A estratégia de Macron é de recuperar na direita o que perdeu na centro-esquerda. Ele não poderá fazer a mesma campanha de 2017. O interessante será ver como formulará uma nova oferta política sob bases diferentes em relação ao pleito passado. Outro dado a ser observado é o abstencionismo eleitoral. As eleições intermediárias ocorridas desde 2017 registraram índices inéditos de abstenção na França. A questão é saber se o pleito presidencial será poupado ou não desta onda. Isso poderá desequilibrar. As incertezas ainda são muitas para 2022. Há cinco anos, neste estágio da campanha, Macron tinha pouco mais de 10% das intenções de votos.
Ponto a favor de Macron
A favor de Macron, Dormagen cita um alto índice de aprovação da população, em torno de 46%, superior à média para um presidente em exercício. No mesmo período de seus quinquênios, os presidentes Nicolas Sarkozy e François Hollande registravam, respectivamente, 32% e 18% de opiniões favoráveis.
– Na França, os índices de popularidade dos presidentes têm tendência a derreter de forma bastante rápida, sobretudo no fim de seus mandatos. No caso de Macron, continua elevado, o que o mantém em posição de força.
Na pesquisa citada, o atual presidente se reelegeria no segundo turno contra Le Pen (53% a 47%) e Zemmour (55% a 45%). Para o analista, os eleitores que o elegeram em 2017 e que hoje continuam a apoiá-lo são conservadores favoráveis ao status-quo.
– São eleitores pró-sistema. Sondagens e estudos revelam que estão satisfeitos com Macron, com a maneira como governou o país e geriu a crise sanitária da Covid-19. Deste ponto vista, ele permanece como o candidato melhor colocado junto a este eleitorado. Derrotá-lo será complicado, mas não impossível. Em seis meses isso poderá mudar.