FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS — A campanha para as eleições presidenciais francesas de abril deste ano, oficialmente lançada neste mês, tem sido marcada por uma radicalização à direita dos debates. De acordo com as pesquisas, três candidatos aparecem com chances de passar a um eventual segundo turno para enfrentar o presidente Emmanuel Macron, por enquanto à frente nas intenções de voto e tido como assegurado no duelo final. Valérie Pécresse, da direita tradicional, disputa com dois nomes da ultradireita, Marine Le Pen e Éric Zemmour, o direito de sonhar com o Palácio do Eliseu. Já o campo da esquerda amarga as últimas posições, incapaz de pesar no debate das urnas.
Para superar seus concorrentes mais radicais, Valérie Pécresse, do partido Os Republicanos, deslocou o cursor ideológico de seu discurso, insistindo nas questões de identidade nacional, imigração e segurança. Em sua cartilha, a célebre divisa francesa “liberdade, igualdade, fraternidade” foi substituída pelo tríptico “liberdade, autoridade, dignidade”.
‘Defender a França’
Na teoria, Pécresse, presidente da região de Île-de-France, se proclama herdeira política dos ex-presidentes Charles de Gaulle e Jacques Chirac e se autodefine como “dois terços Angela Merkel e um terço Margaret Thatcher”. Na prática, montou uma estratégia para buscar votos na ultradireita, reivindicando-se como a melhor opção conservadora para derrotar Macron. Suas frases de efeito mostram o tom: “nosso principal desafio é o de refazer a nação”; “temos uma história a defender, uma herança, um modo de vida” ; “quero restaurar o orgulho francês” e “é preciso deter a imigração incontrolada”.
Para Christophe Bouillaud, do Instituto de Estudos Políticos de Grenoble, Pécresse retoma temas habituais dos conservadores franceses mas de forma “muito mais radical”.
— Vemos hoje uma corrida desenfreada para mostrar ao eleitor quem é o mais radical de direita, o mais xenófobo. Percebeu-se que há um eleitorado flutuante à direita que hesita entre Pécresse, Le Pen e Zemmour, e que anseia por soluções para questões de segurança, imigração, Islã. A discussão política hoje se faz muito em cima desses temas. Esses candidatos não têm quase nada a dizer sobre a crise sanitária, por exemplo. O que têm a oferecer é uma radicalização da luta contra a insegurança e a imigração. Sem falar que é muito mais fácil atrair a atenção com proposições as mais radicais possíveis.
De olho nas pesquisas, Pécresse foi uma das primeiras vozes a insuflar polêmica na iniciativa de Macron de hastear uma enorme bandeira europeia sob o Arco do Triunfo para marcar os primeiros dias da presidência francesa da União Europeia, posto rotativo entre os países-membros. Acusou o presidente de ter “um problema com a história da França” e exigiu uma bandeira nacional flamejando ao lado do símbolo continental. Mesmo que tenha rejeitado a proposta de um dos quadros do partido de criação de uma prisão de “Guantánamo à francesa” para combater o terrorismo islamista, acenou ao eleitorado com um projeto de centros de detenção provisórios, em prédios abandonados nos subúrbios desfavorecidos, para acolher delinquentes, e o uso de “parte do Exército” para operações de segurança.
Mais recentemente, prometeu, caso eleita, “tirar o Kärcher do porão” para “limpar” os bairros das periferias e “repor ordem na rua” face à “violência dos novos bárbaros”. Kärcher é uma conhecida marca de lavadora de alta pressão, cujo nome foi utilizado no mesmo sentido em 2005 por Nicolas Sarkozy, então ministro do Interior, em visita ao subúrbio de La Courneuve, nos arredores de Paris. O presidente Emmanuel Macron não quis ficar para trás. Anunciou para março um projeto de lei sobre segurança com um aporte de € 15 bilhões em cinco anos, prometeu um plano para dobrar o número de policiais nas ruas até 2030, além da criação de 200 brigadas de gendarmes para conter a criminalidade no meio rural.
Espaço liberal
Para Thomas Piketty, economista best-seller com seus ensaios sobre as desigualdades econômicas e sociais no mundo, o macronismo tem enorme responsabilidade na direitização da paisagem política francesa. Na economia, o governo aplicou o programa da direita, resume ele. Tendo sua plataforma econômica roubada, a direita se lançou em uma corrida com a ultradireita. Christophe Bouillaud partilha dessa análise:
— Macron liberalizou ainda mais o mercado do trabalho, reformou o sistema de seguro-desemprego, suprimiu o imposto sobre as fortunas, limitou os impostos sobre os dividendos e prometeu a reforma da aposentadoria. Na crise da Covid-19, destinou a maior quantidade possível de dinheiro público para a empresas. Ocupou todos os espaços do liberalismo. Restava, para se diferenciar dele, questões como a da segurança.
A radicalização do discurso de Valérie Pécresse, que supostamente representa a direita moderada republicana, tem também, segundo o cientista político Bruno Cautrès, uma outra explicação: a atual fraqueza eleitoral da esquerda.
— Ao mesmo tempo em que se vê uma direitização da campanha, há uma forte demanda social. O eleitorado está preocupado com a segurança e a imigração, e também deseja a proteção do Estado e um serviço público de qualidade. Nesse contexto, a esquerda deveria poder fazer campanha, mas hoje perdeu a capacidade de criar o sentimento de que pode encarnar a justiça social e a igualdade de oportunidades.
Fim da centro-esquerda
Segundo a média das pesquisas recentes, Jean-Luc Mélenchon, do partido da esquerda radical França Insubmissa, é o mais bem colocado do grupo esquerdista, com apenas 10% das intenções de voto. Mais atrás estão o ecologista Yannick Jadot e a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, do Partido Socialista. Macron tem 25%, Le Pen, 17%, Pécresse, 16%, e Zemmour, 13%. Numa pesquisa Ifop na sexta, Pécresse já apareceu à frente de Le Pen.
— A eleição de Macron em 2017 provocou uma profunda crise nos blocos políticos tradicionais — lembra Cautrès. — Hoje, quem parece se sair melhor é a direita. Já na esquerda, a situação é desesperadora. Ela vai sem dúvida refletir muito após essa eleição presidencial em relação a uma nova estruturação e talvez uma profunda renovação de seu elenco. A situação não é mais equivalente entre a centro-direita e a centro-esquerda nesta crise do sistema de partidos na França. Mas o sistema permanece globalmente em crise, não foi completamente restabelecido após a eleição de 2017.
Na avaliação de Bouillaud, a centro-esquerda esvaziou:
— Hoje, o PS não vale mais grande coisa como marca política. Boa parte de seu eleitorado migrou para Macron. Por ora, temos uma campanha de primeiro turno claramente à direita. Veremos o que vai se passar no segundo turno.
Caso passe ao segundo turno, Pécresse precisará dos votos recebidos por Le Pen e Zemmour para vencer Macron. Para Cautrès, a sociologia diversa do eleitorado poderá dificultar seus objetivos.
— Pécresse tem um eleitorado burguês típico de direita, e Le Pen é muito presente nas categorias populares, de trabalhadores precários. Será mais difícil para ela a transferência desses votos, principalmente se tiver um programa de redução de déficit e de emprego público. Por outro lado, se continuar insistindo nos temas da identidade nacional e da imigração, o eleitor de Zemmour poderá mais facilmente votar nela.