FERNANDO EICHENBERG/ O GLOBO
PARIS – Candidato à reeleição na França, o presidente Emmanuel Macron coloca à prova nas urnas seu mandato, marcado por críticas à verticalidade do poder, pelo movimento protestatório dos coletes amarelos, a crise sanitária da Covid-19 e, no final de governo, a guerra da Ucrânia. O vencedor do segundo turno, no dia 24, presidirá um país ameaçado pelas consequências econômicas do conflito europeu, o retorno da inflação, os desafios da transição energética e uma crescente insatisfação e fratura sociais.
O balanço do governo Macron é considerado como mais positivo do ponto de vista da gestão da diplomacia e menos em relação aos resultados de suas políticas domésticas. No plano internacional, o presidente se destacou como um ardente defensor da construção europeia, e com a saída de cena da chanceler alemã Angela Merkel se tornou o principal interlocutor pela unidade do continente. Como atual presidente da União Europeia, a forma como enfrenta a grave crise provocada pelo ataque russo ao regime de Kiev lhe rendeu pontos de popularidade nas pesquisas.
Para o analista Henri Rey, do Centro de Pesquisas Políticas de Sciences-Po (Cevipof), foi neste domínio que Macron mais se empenhou:
– Foi talvez onde ele mais tenha obtido sucesso, sem, no entanto, ter conseguido algo de Vladimir Putin para evitar a guerra da Ucrânia, sem resolver as divergências históricas com a Argélia ou sem ter alcançado reais progressos nas negociações com a China, que atesta sua potência. Se houve sucesso diplomático, foi na forma como suas convicções europeias puderam se afirmar em relação aos aliados da França no quadro da UE. Ao longo do quinquênio, ele buscou uma política comum com a Alemanha e reforçou os laços no interior da UE, isso não lhe pode ser negado.
Longe do andar debaixo
No âmbito interno, a avaliação é menos generosa. Alcunhado de “presidente dos ricos”, Macron é acusado de não ter atentado para as dificuldades das camadas médias e baixas da população ao ser surpreendido pelo movimento dos coletes amarelos, revolta deflagrada em novembro de 2018 pelo aumento dos preços dos combustíveis e que se estendeu pelo país em meses de violência nas ruas, com reivindicações pela melhoria das condições de vida e da democracia.
Segundo Michel Wieviorka, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), a origem da contestação escapou totalmente ao presidente por causa de seu perfil de governo.
– É um poder tecnocrático, vertical, que acreditava que as coisas se resolviam de cima para baixo. Sua tentativa de fazer uma reforma da aposentadoria foi um fracasso, mal preparada, em uma decisão de passar à força, e acabou sendo adiada. Foi uma catástrofe – sentencia.
O relativo sucesso no campo da política internacional não esconde os aspectos negativos no plano interno, principalmente em relação ao aperfeiçoamento democrático, diz Luc Rouban, cientista político do Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS). Na sua opinião, o primeiro desafio a ser enfrentado pelo presidente eleito será a “reconstituição do tecido social”:
– Será preciso refazer a unidade nacional. O país se fragmentou muito nos últimos anos, com uma crise de confiança muito forte, não somente no nível local do serviço público, mas em tudo que é política nacional.
Já o cientista político Pascal Perrineau define a França de hoje como “extremamente inquieta”, um sentimento que precede as preocupações surgidas com o conflito russo-ucraniano. Trata-se de uma inquietação “social e política”, diz ele:
– Há incógnitas em relação à capacidade da França de se adaptar ao mundo global. E a crise da política é conhecida em todas as democracias do mundo, seja no Brasil, no Reino Unido ou na Alemanha, mas penso que na França ela é ainda mais pronunciada. Os franceses perderam completamente suas referências políticas. A clivagem direita-esquerda, que inventamos na Revolução Francesa, está em profunda crise. As pessoas veem cada vez mais a política como um espetáculo do qual não participam.
Além da inquietude, o analista vê a sociedade francesa “extremamente fraturada”, em um retorno dos antagonismos sociais e mesmo da luta de classes, entra a França do “andar de baixo que vai mal” e as elites das grandes metrópoles urbanas:
– Clivagem política, social e territorial. Há uma profunda divisão na França. Nossa nação tinha a paixão da unidade, mas hoje o que vemos é o país descrito no livro “O arquipélago francês – nascimento de uma nação múltipla e dividida”, de Jérôme Fourquet. E de certa forma, Macron é a expressão dessa fratura, da qual também se alimenta.
Ruínas de partidos
Em novembro de 2016, então candidato à eleição presidencial, Macron publicou o livro “Revolução”, no qual expunha os fundamentos de uma nova sociedade em um mundo sob grande transformação. Para Perrineau, o presidente malogrou em suas ambições:
– Ele prometeu uma verdadeira revolução no país para liberar as forças de mudança no interior da sociedade e inventar um novo tipo de ação política. Em relação as esses objetivos, os franceses se frustraram. Ele destruiu a esquerda em 2017, hoje está destruindo a direita clássica, mas sobre estas ruínas não construiu nada. Sua sigla, República em Marcha, não é um partido, mas uma espécie de grupo em torno do presidente, muito mal implantado no país. Ele parece relativamente um homem só.
Para Wieviorka, a França de 2022 se encontra confrontada a novos desafios e antigos debates. Como primeira dificuldade, lista o retorno da inflação, com um aumento generalizado dos preços no país, uma tendência reforçada pelo contexto bélico no leste europeu e a crise de abastecimento. O segundo importante desafio, segundo ele, é o estado de desindustrialização do país, revelado pela crise sanitária da Covid-19, quando a França se deu conta de sua dependência para o suprimento de máscaras e mesmo paracetamol. O terceiro, exacerbado pela guerra da Ucrânia, seria a dependência energética.
– Nos anos 1970, se contestava a energia nuclear por ser considerada perigosa e ter sido imposta de forma não democrática. Hoje, o debate mudou. Se tem consciência de que é preciso evitar a poluição, mas as energias renováveis ainda não estão totalmente disponíveis.
De liberal a estatista
E há ainda um quarto ponto: a questão da imigração, acrescenta ele:
– Desde o início dos anos 1980, é um tema explorado pela extrema direita, e que ganhou força ao ser associado ao Islã e ao terrorismo. Hoje, se fala em imigrantes “brancos, europeus e cristãos” com a guerra na Ucrânia. A questão se deslocou um pouco, mas permanece importante.
Eleito com a promessa de reformas liberais, Macron encerra seu mandato com marcos econômicos do Estado-Providência, em uma mudança de cursor provocada pela pandemia e o conflito ucraniano, o que levou a um forte aumento da dívida pública. Segundo Henri Rey, o “capital de cólera e descontentamento”, demonstrado pelos coletes amarelos, ainda está presente na sociedade, mas resta a incógnita sobre como poderá novamente se manifestar no próximo governo.
– Com a Covid-19 e a guerra na Ucrânia, a impressão é que os coletes amarelos estão um pouco longe na História como movimento estruturado. Na pandemia, a revolta se cristalizou em torno dos ativistas antivacinas, mas a política sanitária prevaleceu. Nas circunstâncias atuais, não vejo uma ameaça de retomada do movimento, há uma dificuldade de mobilização. Mas tudo pode mudar.