FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – Face à reverberação de discursos racistas, xenófobos, antissemitas e islamofóbicos na França, exacerbados após os atentados terroristas de 2015, uma escola pública parisiense e uma associação dedicada à amizade judeu-muçulmana se aliaram num trabalho pedagógico com alunos de diferentes origens e crenças para promover o “viver junto” e combater estereótipos e preconceitos. O colégio público Georges-Brassens, no 19° distrito da capital francesa, e a associação Bâtisseuses de Paix (Construtoras de Paz) reivindicam um projeto urgente em tempos de “comunitarismo”, de “importação do conflito Israel-Palestina”, e lamentam a falta de um “diálogo positivo” no ensino francês na abordagem destes temas.
Na escola Georges-Brassens, a professora de Letras, Jacqueline Courier-Brière, adaptou para a escola o ateliê “Povos e culturas do mundo”, em torno de tradições diversas, que havia criado no subúrbio parisiense, e junto com o colega de História, Nasser Dja Bouabdallah, implantou o programa “Humanidades”.
– Introduzimos o estudo dos fatos religiosos, dos mitos, das epopeias, dos textos fundadores, para dar aos alunos uma cultura compartilhada, não somente europeia, mas universal. São sessões abertas, eles têm o direito de perguntar tudo, sem censura, sem tabus, sem restrições – garante a professora.
Os docentes notaram um aumento dos questionamentos dos alunos após os ataques terroristas, com perguntas como: um muçulmano pode entrar numa igreja? Por que aos sábados os judeus não podem acionar o elevador? Pode-se fazer caricaturas de Maomé?
– Sou republicano e laico, e considero que os professores, à força de se desvencilharem da religião, acabaram por evacuar essas questões – diz Bouabdallah. – E quem as retomou? Outras pessoas que, por vezes, não têm forçosamente boas intenções, como sites radicais na internet ou um imã com má formação, sem grande cultura histórica. A religião está de retorno, com força, e é preciso conviver com ela, explicá-la. A laicidade não pode se tornar também uma religião – defende.
EVITAR A MARGINALIZAÇÃO
A boa repercussão do programa levou pais dos alunos a solicitarem a ampliação dos cursos, agora administrados em uma hora por quinzena a todas as classes de 6ª série (11-12 anos) e 3ª série (14-15 anos) da escola. Os alunos fazem ainda visitas ao Instituto do Mundo Árabe, ao Museu de Arte e de História do Judaísmo e à instituições da República (Palácio do Eliseu, Senado, Assembleia Nacional ou prefeituras), sempre em conjunto com uma escola privada confessional do bairro.
– Nossas classes têm alunos de todas as origens e crenças, numa mistura étnica e também social. Não fazemos um curso de religião, mas procuramos ajudar os jovens a não se encerrarem em uma comunidade. Após os atentados, eles ficaram chocados com a violência terrorista e intrigados com as reivindicações identitárias. Devemos oferecer todas as chances para que os alunos não se marginalizem – justifica Courier-Brière.
No ano passado, pesquisadores universitários realizaram um estudo junto aos alunos, submetidos a um questionário sobre variados temas. Segundo o Bouabdallah, o resultado surpreendeu a equipe acadêmica.
– Eles se disseram surpresos porque não foram detectados sinais de antissemitismo ou de islamofobia na escola. Por outro lado, notaram traços de homofobia e de um racismo antichinês.
O professor acredita que sua filiação facilita seu diálogo com os alunos:
– Penso que tenho uma certa legitimidade para falar, porque sou de origem argelina, tenho duas culturas, e os alunos me escutam com mais atenção por causa disso. As tensões estão muitas vezes ligadas ao que se passa nos territórios palestinos e israelenses, e que acabam ressurgindo aqui. Explicamos que, antes de serem judeus ou muçulmanos, eles são franceses, e que não devem importar para cá o que ocorre no Oriente Médio.
IMÃ VÍTIMA DO HOLOCAUSTO
Há dois anos, a escola iniciou uma parceria com a associação Bâtisseuses de Paix, fundada por Annie-Paule Derczansky, que procura a aproximação entre as culturas judaica e muçulmana. Judia, Derczansky descobriu certo dia a história de Abdelkader Mesli, imã da Mesquita de Paris deportado para os campos de concentração de Dachau e de Mauthausen, em 1944, por ter fornecido centenas de falsos certificados de religião muçulmana para salvar judeus da perseguição nazista. O imã chegou a esconder judeus em sua mesquita, e também fornecia cupons de racionamento de alimentação à famílias judias. Entre suas diversas iniciativas, a associação promove em escolas o testemunho de Mohamed Mesli, filho do imã combatente (que sobreviveu aos campos e morreu em 1961), além da exibição de um documentário e da distribuição de um livro publicado sobre o episódio.
– Eu me disse que esta história poderia reconstruir um diálogo positivo. Nós falamos que os irmãos Kouachi e Amedy Coulibaly (autores dos atentados de janeiro de 2015 na França) não são muçulmanos, que isso não é o Islã. Trabalhamos hoje com cinco estabelecimentos, escolas públicas laicas e privadas judias – conta Derczansky.
Na sua opinião, existe na educação francesa uma “terrível ausência” deste tipo de ensino, que ela sugere como obrigatório nas escolas:
– Outras associações fazem a culpabilização dos muçulmanos, e nós somos criticados por defendermos uma abordagem positiva. Um político judeu fez com que cortassem subvenções para a nossa associação, acusando-nos de “comunitaristas”. Numa das melhores escolas judias de Paris, me disseram que os pais reclamaram de nós, argumentando que não colocaram seus filhos lá para que encontrassem árabes e negros. Tenho cultura judia e israelense, mas não vivo na rejeição do outro – defende.
Via o trabalho de sua associação, Derczansky pretende contribuir para diminuir o encerramento de cada indivíduo em sua própria comunidade:
– Uns se tomam por soldados do Tsahal e outros por vítimas palestinas. E não são um nem outro, mas cresceram aqui juntos. É preciso que compreendam que partilham uma mesma história. O desconhecimento cria o medo, e o medo cria a violência. Nós tentamos contornar isso trazendo conhecimento, para derrubar o medo e recuar a violência – justifica.