FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – Os ventos da chamada Primavera Árabe, deflagrados no início da década por revoltas contra regimes autoritários no Norte da África e Oriente Médio, continuam a soprar em países da região. As recentes rebeliões emergidas no Sudão e na Argélia mostram que populações ainda são capazes de se mobilizar contra governos marcados pela perenidade no poder, práticas ditatoriais e corrupções endêmicas. Mas, a exemplo de movimentos precedentes em que a liberalização reivindicada culminou em restaurações despóticas ou em situações de caos, sudaneses e argelinos que hoje ocupam as ruas correm o risco de ter suas aspirações democráticas frustradas pela capacidade de reação do status quo político e dos militares.
Em teoria, as manifestações em Cartum e Argel poderão resultar em um quadro análogo ao da Tunísia, onde a transição democrática conquistada a partir de dezembro de 2010 ainda resiste, ou à realidade do Egito, comandado por mão de ferro, desde 2014, pelo marechal reformado Abdel Fatah al-Sisi, algoz das esperanças dos protestos nascidos na praça Tahrir. Na prática, especialistas acreditam que o cerco militar se estreita para os atuais manifestantes.
Na Argélia, a renúncia forçada do presidente Abdelaziz Bouteflika, encerrando suas pretensões a um quinto mandato após 20 anos de poder, não arrefeceu os ânimos da mobilização popular. O processo de transição imposto pelo Exército, com eleições presidenciais agendadas para 4 de julho, está sob controle da velha guarda do regime, o que contraria as ambições das ruas. O general aposentado Ali Ghediri já apresentou sua candidatura ao pleito. Já o chefe do Estado-Maior, general Ahmed Gaïd Salah, alertou para o perigo da continuidade dos protestos e declarou que “todas as perspectivas permanecem abertas” para superar a crise.
Solução marroquina
Para Luis Martinez, especialista do Magreb e do Oriente Médio no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), há três cenários possíveis na Argélia. No primeiro, o Exército utilizaria as manifestações de rua para destituir todos os homens do presidente, colocando seus próprios quadros no governo. No segundo, haveria um enrijecimento do regime e da repressão face ao prosseguimento dos protestos. A terceira alternativa, “à marroquina”, é, na sua análise, a mais crível na situação atual:
– Como fez so rei do Marrocos, Mohammed VI, o Exército aceitaria eleições relativamente livres e uma Assembleia bastante representativa, mas, no final, seriam os militares que exerceriam o leadership nas importantes decisões do país. Para muitos argelinos, seria um progresso em relação à era Bouteflika, mas não o cenário à tunisiana, com o advento de uma democracia após a queda do regime. Trabalho sobre a Argélia há 25 anos e não vejo como o Exército aceitaria, hoje, se submeter a um governo civil democrático. Penso que os militares cederão a um certo número de reivindicações e deixarão claro que, para além disso, vão endurecer. Essa é a questão das negociações em andamento.
No Sudão isolado na cena internacional e esgotado pela crise econômica e três décadas de conflitos, a ditadura de Omar al-Bashir deu lugar a um “conselho militar de transição”. Bashir é reconhecido protetor do terrorismo e arauto do islamismo militante, perseguido pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra e contra a Humanidade no genocídio no Darfur. Sua destituição foi seguida de suspensão da Constituição e toque de recolher. Os opositores, que há quatro meses protestam nas ruas, denunciaram um golpe militar.
Para Marc Lavergne, do Centro Nacional de Pesquisas Sociais (CNRS, na sigla em francês), o poder no regime sudanês “totalmente corrompido” é apenas um meio para os oficiais do Exército recuperarem o dinheiro do petróleo, do ouro e dos grandes latifúndios.
– O Estado está a seco, a prioridade sempre foi pagar o Exército e financiar as guerras. Penso que os militares vão jogar com as divisões da oposição civil, o que enfraquece as esperanças democráticas. E podem contar com forças políticas tradicionais como o Partido Oumma, capaz de protagonizar um jogo de fachada para um regime militar. Mas mesmo que os jovens que hoje protestam fracassem, esta experiência deixará marcas. A solução militar não resolverá o problema de trinta anos de guerras e de repressão.
Nova fase
Na análise de Clément Deshayes, especialista da Universidade Paris 8 e da organização Noria Research, o futuro do Sudão tende, hoje, mais a uma “reconfiguração do regime” do que a uma “revolução”. O Exército, segundo ele, procura manter o controle, mas, sem conseguir parar as contestações com concessões simbólicas, se vê obrigado a negociar.
– Governos ocidentais e a União Africana tentam empurrar o regime para uma transição civil, o que é uma evolução notável. O Egito e países do Golfo temem uma propagação da revolta e uma nova forma de Primavera Árabe, e apoiam um governo de transição militar. O Exército sudanês, embora concorra com milícias e outros setores armados, é forte, e a situação ainda está em aberto. O islã político funcionou como uma alternativa em certos países no momento das revoluções árabes. Não é mesma configuração no Sudão, onde o islã político é o poder, que fracassou.
Para Deshayes, as revoltas no Sudão e na Argélia, embora tenham suas especificidades nacionais, representam uma “nova fase da mesma dinâmica” da Primavera Árabe:
– Se veem jovens nas ruas em uma frustração pela concentração de poder das elites políticas e militares há dezenas de anos. As revoluções árabes entraram em um processo bastante longo, com sobressaltos e evoluções. Hoje, é o Sudão e a Argélia. No futuro, ocorrerá em outros países.
Nova candidatura selou o destino de Bouteflika
Prestes a completar 82 anos, Abdelaziz Bouteflika era presidente da Argélia havia duas décadas quando, em fevereiro, anunciou que tentaria o quinto mandato nas eleições originalmente marcadas para 18 de abril.
A decisão revoltou a população, que o via como velho e incapaz de liderar o país, dando início à onda de protestos. Vítima de um derrame em 2013, Bouteflika praticamente não era visto em público.
A insatisfação popular se espalhou, atingindo toda a estrutura política, controlada por veteranos da guerra de independência da França e uma oligarquia empresarial. As eleições foram adiadas e ele prometeu deixar o cargo no futuro. Mas, pressionado pelos militares, saiu em 2 de abril.
Preço do pão foi estopim da queda de Bashir
À frente do Sudão por 30 anos, Omar al-Bashir tomou o poder em um golpe de Estado, sem derramamento de sangue, em 1989. O ditador de 75 anos enfrentou rebeliões armadas, crises econômicas e tentativas do Ocidente de torná-lo um pária.
Seu fim, porém, só veio com uma onda de protestos iniciada em dezembro passado, após cortes nos subsídios do pão e dos combustíveis, a pedido de credores estrangeiros, que mantinham os preços dos produtos controlados.
As manifestações contra o aumento do pão evoluíram para marchas contra Bashir, até que um racha entre forças policiais e militares selou seu destino, com o o ministro da Defesa, Awad Mohamed Ahmed Ibn Auf, anunciando sua deposição em 11 de abril.