FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS — Entre os livros de cabeceira da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, se encontra a obra Tudo vai melhorar, da escritora Almudena Grandes. Nessa novela póstuma, a premiada autora espanhola, falecida no final de 2021, criou um enredo de resiliência e solidariedade em uma realidade distópica pós-coronavírus. Hidalgo revela ser intimamente marcada pelas “impressões futuristas” de pessoas que investigam o mundo, a política e a alma humana, e que são capazes de vaticinar: “Isso poderá acontecer se nada fizermos”.
Ninguém poderá dizer que a prefeita pouco fez em dez anos, em dois períodos consecutivos no comando de uma das capitais mais emblemáticas do planeta — eleita em 2014 e reeleita em 2020, seu atual mandato se encerra em 2026. Seus projetos para Paris receberam numerosos apoios mas também severas críticas, às quais nunca renunciou em rebater. “Como eu resisto? Defendendo minhas ideias, com entusiasmo e alegria. Para mim, não é um sacrifício nem um sacerdócio. Faço o que penso que devo fazer e o que tenho vontade de fazer”, diz com determinação ao receber o caderno ELA, de O Globo, em seu amplo gabinete na secular sede da Prefeitura, no centro da cidade, às vésperas dos Jogos Olímpicos de Paris..
Hoje aos 65 anos, Anne Hidalgo mantém o espírito combativo que sempre a caracterizou. Parte de sua forte personalidade é creditada à sua origem espanhola e condição de imigrante. Nascida em 1959 no vilarejo de San Fernando, na Andaluzia, com dois anos de idade mudou-se com a família para Lyon, na França. Seu pai era eletricista, e sua mãe, costureira. Aos 14 anos, ao naturalizar-se francesa, Ana María tornou-se Anne. Ao longo do tempo, seu engajamento social derivou para a política, culminando com sua eleição como a primeira mulher a dirigir a metrópole parisiense.
“Não posso dizer que tenho uma vida normal, por vezes nem sei em que dia da semana estou”, reconhece. Seu despertador soa por volta das 6h30, e às 8h15 está a postos no chamado Hôtel de Ville, que acolhe desde 1357 a administração municipal de Paris — o prédio atual foi edificado no final do século 19, após os incêndios resultantes da rebelião da Comuna de Paris, em 1871, terem reduzido em cinzas as antigas instalações. Ela não tem hora para voltar para casa. Seu marido, o deputado europeu Jean-Marc Germain, já disse que é no trabalho onde sua mulher mais jubila. Para ela, trata-se de uma meia verdade. “O que me deixa mais feliz é estar com a minha família”, assegura. Mas acrescenta que, na verdade, o trabalho é um prolongamento de si mesma: “Sou apaixonada pelo que faço. Não posso fazer nada sem paixão. Isso me foi transmitido por meus pais, e por uma vontade de mudar o mundo. Tenha essa chance incrível de poder transformar as coisas. Como não ser feliz ao ver pessoas contentes em poder andar de bicicleta em Paris e idosos se deslocarem gratuitamente na cidade?”. Ela reivindica, no entanto, a importância do lar para estar “cem por cento” quando a pressão profissional alcança seu ápice. “Todas as noites ligo para meus filhos e para minha mãe, que vive na Espanha e em breve fará 94 anos. Tenho netos. Reservo tempo para estar com meu marido. Para mim, são esses os momentos mais preciosos, até porque não são muito frequentes”, admite.
Anne Hidalgo administra 2,1 milhões de parisienses, um orçamento em torno de € 10 bilhões e cerca de 50 mil funcionários municipais. Sua missão recrudesceu quando Paris foi escolhida sede dos Jogos Olímpicos de 2024, um desafio para qualquer prefeito nessa situação. Nas Olimpíadas de 2016, ela viajou até o Rio, e recorda de uma conversa com o prefeito Eduardo Paes. “Ele me disse: ‘Anne, o último ano é terrível, porque todo mundo faz muita pressão’. Naquele momento deduzi que deveríamos estar prontos um ano antes. Graças à aceleração exigida pelos Jogos, em dois mandatos fizemos o equivalente ao que teria sido feito em quatro”.
Qual sua visão de uma cidade moderna?
Paris! (risos). Bom, antes de tudo, essa cidade deve ser humana. Deve ser socialmente mista, não pode ser feita para os ricos, com pobres invisíveis. Não é o filme Parasita (do coreano Bong Joon Ho), Palma de Ouro no Festival de Cannes (em 2019). Há pessoas que gostariam que Paris fosse assim, uma cidade reservada aos poderosos, que devem se deslocar muito rápido do ponto A ao B, e demais não deveriam perturbá-los. A cidade não está exclusivamente a seu serviço, e sim ao de todos os habitantes. Paris é 70% de classe média e de categorias populares. Conseguimos isso — e ainda não acabou, porque é preciso lutar todos os dias — graças a uma política de habitação social muito voluntarista. Duplicamos o número de habitações sociais em 20 anos. Então, deve ser sobretudo uma cidade mista e humana, onde são respeitados os direitos de todos, das minorias, das mulheres. É também uma cidade fortemente engajada, consciente que deve se adaptar rapidamente às mudanças climáticas, e diminuir a poluição de forma drástica. Nós reduzimos a poluição de 40% em cerca de 12 anos. Quando se age, funciona. Quando assumi como prefeita há dez anos, por vezes tinha de proibir as crianças de brincar nos pátios das escolas, porque havia picos de poluição,. Há muito tempo não sou mais obrigada a tomar esse tipo de decisão. Deve-se poder respirar em uma cidade, o ar deve ser puro. Outra questão importante é a água, que deve ser preservada, protegida e limpa. Temos uma gestão pública direta da água que consumimos em Paris. Isso nos possibilitou obter progressos na qualidade da água potável. E havia a água do rio Sena. Se vamos na direção de temperaturas anunciadas de 50°C no verão no prazo de 20 anos, necessitaremos nos refrescar na água. Aí entra a questão do Sena limpo. Graças aos Jogos Olímpicos, conseguimos investimentos importantes nesse sentido, mas também uma mudança de comportamento. No ano que vem, após as Olimpíadas, teremos três piscinas no Sena, no perímetro de Paris. E nos próximos anos, serão 30 na área da Grande Paris. Outro tema é ter mais árvores e espaços verdes na cidade, para permitir a infiltração pela permeabilização dos solos. E para plantar mais, era preciso ganhar espaço. Os carros ocupavam 95% do espaço público. Decidimos suprimir 60 mil locais de estacionamento em superfície. Dissemos aos automobilistas que eles poderiam estacionar seus carros nos parkings subterrâneos. E recuperamos esses espaços para fazer ciclovias, plantações de árvores no prolongamento de calçadas e terraços para os cafés e restaurantes. Para mim, na cidade ideal a natureza não está encerrada atrás de grades. Essa é a visão higienista do século 19 na Europa, em que a natureza é protegida do homem. É preciso parar com isso. O homem faz parte da natureza. Vejo nas cidades do norte da Europa, que são muito inspiradoras, uma porosidade completa entre os espaços da natureza e os minerais de passeio. Na cidade ideal, as barreiras são suprimidas, e se cria essa ligação entre o homem e a natureza. Um grande filósofo, André Gorz (1923-2007), pensador da ecologia política e do ecossocialismo, dizia que a questão não era proteger a natureza, mas considerar que homem faz parte dela. Minha cidade ideal é uma cidade sem barreiras.
Um dos eixos centrais de sua política urbana foi limitar a circulação de veículos e favorecer o uso da bicicleta, não sem gerar críticas.
Primeiro, procuro sempre entender de onde vêm as críticas. Será que cometemos erros? Não é isso que deveria ter sido feito? Também tento saber como se orquestram as oposições. Na questão do lugar do carro, da poluição do ar e da bicicleta como alternativa, em Paris temos a chance de ter transportes em comum excepcionais e também uma cidade relativamente plana. Ou seja, tudo para poder desenvolver a prática de bicicleta, mas era preciso que fosse segura para os ciclistas. Para mim, o modelo não poderia ser pistas na calçada, o que havia sido feito antes, mas verdadeiras ciclovias, tomando o lugar dos carros e não dos pedestres. Nós nos inspiramos em Copenhague. Evidentemente, em um período de transformação, há obras, as pessoas ficam descontentes, mesmo aqueles que podem apoiar nossa política, e é preciso explicar e mostrar que, depois que tudo estiver pronto, será um prazer andar de bicicleta. Foi o que, no final, muitos parisienses compreenderam, e o que fez com eu tenha sido reeleita em 2020, apesar dos constantes ataques. Durante três anos, dizia-se que jamais eu teria um segundo mandato e que todo mundo me detestava. Fui eleita e reeleita apesar dessas oposições. Se olharmos de onde vêm essas críticas, podemos admitir que pessoas de boa fé tenham sido enganadas e participem do movimento #saccageparis (movimento criado em 2021, com website e perfil no X, para acolher denúncias sobre problemas na capital francesa). São pessoas que caçam em bandos, tentando criar as condições para que alguém não possa mais governar e agir, e que não sabem combater de forma leal, defendendo suas ideias. Eles usam manobras de obstrução e de destituição. A única coisa que querem é te destruir e te eliminar da paisagem. Mas isso não vai me impedir de agir. Conto sempre com a inteligência das pessoas, que vai além do que as manipulações podem fazer. Hoje, apenas 4% dos deslocamentos em Paris são feitos de carro, 11% de bicicleta, e o restante em transportes em comum (metrô e ônibus). E são esses 4% que fazem barulho. Por vezes, as pessoas se perguntavam: “É um pouco exagerado, não? Será que não é porque ela é uma mulher, quer mudar as coisas e resiste”.
O fato de ser uma mulher também é um fator para as críticas?
Evidentemente. Existe um machismo, um masculinismo muito afirmado nesses homens poderosos. Eles não suportam o fato de uma mulher dizer que eles devem deixar seus carros na garagem algumas vezes e usar o metrô. O sexismo é algo terrível na política. Infelizmente, ainda estamos no tempo de todos esses movimentos fascistas, neoliberais, masculinistas que se apoiam na extrema-direita e defendem que as mulheres sejam submetidas aos homens, ao papel da procriação e ao cuidado de seus maridos. Veja Donald Trump e seus processos judiciais. São pessoas que sempre consideraram as mulheres como objetos sexuais. Isso permanece ainda muito presente hoje. E a falta de distância e de consideração por parte das mídias nesse crescimento da extrema-direita e da diminuição de barreiras é muito inquietante hoje na França.
Você também é criticada por uma forma de governar impondo suas políticas à cidade sem debate e consultas à população. O que diz sobre isso?
Isso é totalmente falso. Eu fui eleita com um programa, e aplico esse programa. Haveria um problema democrático se fizesse o inverso. Além do mais, tudo o que fazemos é sustentado em consultas cidadãs, das quais eu tiro lições. É um exercício bastante interessante. Implantei em 2020 uma assembleia cidadã, constituída de membros sorteados, representativos de todos os bairros, de todas as idades, origens etc. Eles escolhem os temas que querem discutir, nós fornecemos todas as informações disponíveis e também os experts da prefeitura, as mesmas ferramentas que utilizo para tomar minhas decisões. Neste momento, eles escolheram o tema das pessoas que vivem na rua. Ao final deste trabalho, eles propõem ações, deliberações, uma lei municipal para se ocupar dos sem-teto. E o que eles propõem vai ao encontro de nossa filosofia. Hoje, o que está matando a democracia é a relação com a verdade. A chance numa cidade é que se está numa escala diferente a de um estado ou país. Dizem que eu não consulto nunca, mas as pessoas estão sendo ouvidas e intervém bastante. Eu fui eleita com um programa para fazer ciclovias, essas pessoas que votaram por isso não dizem que eu não as escuto. Eu escuto a maioria, que quer eu siga nessa direção, sinto muito.
Recentemente, o site ecologista americano Planetezien publicou um ranking de 100 urbanistas contemporâneos mais influentes do mundo, eleitos pelos internautas. Você aparece em quarto lugar e é a primeira das 21 mulheres da lista, atrás apenas do arquiteto e designer dinamarquês Jan Gehl e de dois americanos, o urbanista Andrés Duany e o pesquisador em planejamento urbano Donald Shoup. Entre 2016 e 2019, você presidiu o Grupo C40 de Grandes Cidades para a Liderança Climática. Você sente mais prestigiada no exterior do que aqui na França?
É verdade que tenho uma papel internacional como prefeita de Paris, principalmente nas questões relacionadas ao clima. Há um olhar sobre Paris lá fora que penso mais honesto do que aqui. Mas mesmo aqui penso que as pessoas se dão conta quando é demais (as críticas), e acabam se conscientizando do que se passa. Elas notam que há coisas que não são honestas é no que é dito. Não é possível que não se ache nada de positivo em alguém que é eleito há 20 anos, prefeita há dez anos, eleita e reeleita. Há algo errado na forma de apresentar as coisas.
Que lição você tira de seu fracasso na eleição presidencial, onde obteve apenas 1,74% dos votos como candidata do Partido Socialista (PS)?
Um fracasso é quando você é destruída. Eu me apresentei voluntariamente. E se não o tivesse feito, não haveria mais Partido Socialista hoje. E o fiz porque me inscrevo numa longa história de um movimento político humanista, aberto à questão da ecologia, da solidariedade e dos trabalhadores. Não tive o resultado que gostaria, mas aprendi muito. Tudo que não te mata, te torna mais forte. E penso que saí mais forte desta experiência única.
Como você vê o crescimento da extrema-direita não só aqui na França, mas no mundo?
Vivemos uma crise mundial de democracia. Não sei se o capitalismo pode ter uma face humana, mas nem que fosse para preservar seus próprios interesses soube, junto com a economia de mercado, se adaptar. Tivemos leis para proteger os trabalhadores, a saúde, o meio ambiente. Existe um direito internacional que mostrou que os excessos do sistema em se querer fazer muito dinheiro muito rapidamente deveriam ser enquadrados. Isso funcionou por um certo tempo. Hoje vemos algo novo: o lucro acima de tudo, pouco importa o resto. E uma escolha deliberada por parte dos grandes interesses econômico, em sua maioria ligados às energias fósseis, que consideram que a democracia não é o que garante a sua prosperidade financeira. Porque a democracia regula, e eles não querem mais regulação. Querem que a mão de obra se torne um mercado como qualquer outro, sem proteções. O meio ambiente é algo que bloqueia a exploração das energias fósseis, e é um problema para eles. Com seus meios poderosos de comunicação e de desinformação, via as redes sociais e as mídias que possuem, eles colocam no poder ultraliberais, tomados por um tipo de fanatismo que agrada aqueles que querem prosseguir com a exploração sem limites dos recursos do planeta e dos humanos. E para isso, precisam de populistas, da extrema direita e de fascistas. O mais difícil é que isso ocorre de forma veloz. É um cálculo de curto prazo e extremamente perigoso, porque por trás disso há conflitos, o caos, sociedades desestabilizadas, pobreza para a grande maioria e riqueza para uma ínfima minoria. É preciso lutar, explicando as coisas e tentando encontrar os canais para atingir as pessoas. Quando falo tudo isso, minha palavra será esmagada por todos aqueles que têm interesse em me deslegitimar, ridicularizar. Lula e Dilma Rousseff viveram isso no Brasil. Tentaram fazer isso com Pedro Sánchez (primeiro-ministro espanhol), atacando sua mulher. Trump ganhou sua primeira eleição pegando como alvo Hillary Clinton, se comportando de uma forma nunca antes vista. Putin é um ditador. Estamos num mundo em que é muito difícil para os cidadãos se sentirem menos sós diante de certas convicções. É preciso que todos os humanistas, democratas, todas as pessoas que têm consciência da necessidade de se ter leis nacionais e internacionais, sejam mais unidos e façam eco. Aqui na França temos Macron em um liberalismo em vias de um ultraliberalismo, e se continuar assim ele dará as chaves do governo para Marine Le Pen (líder da extrema-direita) na eleição presidencial de 2027. Estamos em um momento terrível da História, que pode gerar muito sofrimento. Mas na política, a morte ocorre apenas quando o coração para de bater. Uma das lições do passado é que nada dura para sempre. As pessoas acabarão entendendo, infelizmente muitas vezes após a guerra e o caos, que esse não pode ser o horizonte para a humanidade. Precisamos escrever uma história democrática e de respeito dos povos e da natureza.
Você acompanhou a recente tragédia climática no Brasil com fortes enchentes no Rio Grande do Sul?
Acompanhei isso daqui. O Brasil faz parte desses países que sofrem mais com as mudanças climáticas, por um lado com terríveis secas e, por outro, com inundações. O que ocorre hoje no Brasil é o que vão viver muitos territórios por todo lado no planeta. Aqui, o desregulamento climático provoca também situações extremas, tivemos fortes chuvas com inundações neste inverno, e agora nos anunciam um verão muito quente. Não tem as mesmas proporções em relação ao que se passou no Brasil, mas é urgente agir. Teremos a COP30 no Brasil (Belém, 2025), com a questão do papel da Floresta Amazônica para o planeta. Continuarei a me engajar nisso. É preciso que os políticos parem de brincar e de se deixarem impressionar pelos neoliberais e fascistas. Querem fazer crer que poderemos avançar permanecendo no mundo de antes, o mundo fóssil, onde não mudaremos nosso modos de vida. É necessário, de Paris ao Brasil e pelo mundo, que todos aqueles que têm uma voz se unam. Acredito que somos bem mais numerosos no planeta a querer levar em conta o aquecimento global, porque temos consciência, vivemos num mundo real, não estamos nos dizendo que se não der certo na Terra pegaremos uma nave espacial para Marte. As pessoas normais não pensam isso. E estamos nas mãos de pessoas ávidas por dinheiro e poder que só pensam em seus interesses a curto prazo, em maximizar os lucros em um tempo mínimo. Se o capitalismo continuar a pensar assim, morrerá, e nós todos juntos. Mesmo na pátria do capitalismo, que é os Estados Unidos, há regulações antitrustes, não para salvar o planeta, mas sim a economia capitalista. Penso que estamos num momento em que a palavra de Lula e do Brasil é muito importante, bem como a dos países Sul Global como um todo em relação às mudanças climáticas. Na COP30 no Brasil, que marcará os dez anos do Acordo de Paris, será preciso falar duro para agir muito forte.
Em relação aos Jogos Olímpicos, o que está pronto, o que está atrasado e o que não será finalizado em tempo?
Todas as infraestruturas estão prontas, mas não tínhamos muitas para construir. A arena da Porte de La Chapelle, a vila dos atletas em Seine-Saint-Denis, a piscina de Aubervilliers, tudo isso foi feito. O rio Sena limpo, idem. Agora é preciso esperar que as águas baixem, porque quando o fluxo é importante não se pode nadar. Não tem nada a ver com a qualidade da água, mas simplesmente com a força da correnteza. As provas serão feitas no Sena, com uma qualidade de água que nunca se teve para competições externas em água ou triátlon em Jogos Olímpicos. Uma parte dos transportes está pronta, penso na linha 14, que é muito importante, pois liga ao aeroporto de Orly. Mas havia um calendário que não estava completamente alinhado entre o desenvolvimento dos transportes na Île-de-France e os Jogos Olímpicos, o que levará ainda algum tempo (caso do trem expresso até o aeroporto Roissy-Charles-de-Gaule, previsto para 2026). As ciclovias estão prontas. As provas de atletismo se darão no Stade de France (no subúrbio), mas a grande maioria das competições ocorrerá em Paris. As pessoas vão se deslocar em curtas distâncias, de metrô, a pé ou de bicicleta. Será uma festa absolutamente excepcional. O trabalho sobre segurança se faz de uma forma extremamente séria. Trabalhamos muito bem e de uma forma muito metódica com o ministro do Interior e o chefe de polícia, que interage com todos os serviços de inteligência do planeta, para evitar qualquer ameaça de ataque terrorista. Há um risco de ciberataque muito importante. Estamos permanentemente sob ataque dos russos, do Azerbaijão e do Irã, e devemos também prestar atenção na China. Tudo isso está sob vigilância e exige muito trabalho.
Acusou-se Paris de querer se desafazer dos sem-teto sem a preocupação de providenciar um lar decente no longo prazo, em uma “limpeza social”. O que você tem a dizer sobre isso?
Eu disse ao presidente Emmanuel Macron, em uma reunião no Palácio do Eliseu, que não aceitaria que afirmassem que os Jogos seriam um momento de limpeza social, e que depois a vida retomaria como antes. Abrigar 3.500 pessoas não é nada na escala da França e da metrópole parisiense. Infelizmente, não é algo da competência direta do município, e temos uma discussão difícil com o Executivo, que não coloca muitas soluções sobre a mesa e quer nos impedir de agir. Nós temos prédios vazios que poderíamos utilizar. É um tema no qual precisamos avançar. E vamos lutar, como de hábito.
A efervescência dos Jogos contaminará a cidade, contrariamente ao que muitos sugerem?
Os parisienses que têm casas no campo ou em outros lugares, vão sair em férias no verão como sempre fazem. Isso não mudará o mundo. A Paris popular, que não pode parar de trabalhar por dois, três meses, estará aqui. Vamos distribuir 55 mil ingressos gratuitos para moradores de bairros populares poderem assistir à cerimônia de abertura. Vamos convidar as pessoas que realmente trabalham por Paris, e que não têm meios de comprar ingressos. E haverá um total de 26 espaços de celebração gratuitos na cidade, com telões, jogos para crianças, encontros com esportistas.
O legado do Jogos para a cidade sempre é um dos pontos polêmicos. O que as olimpíadas deixarão para Paris?
Muitas coisas ficarão. A Porta de La Chapelle sempre foi um bairro muito difícil, com acampamentos de refugiados ou o chamado “morro do crack”. Tudo isso está sendo transformado, com novas áreas verdes e um novo parque. A quadra de basquete, de 8 mil lugares, ficará para as crianças do bairro, além de mais dois ginásios, É uma metamorfose. Essa será uma importante herança. Teremos também o legado das ciclovias. Graças às associações de bicicleta, teremos 60 quilômetros de ciclovias adicionais em relação aos 1.400 quilômetros atuais. Em dez anos, fiz 550 quilômetros de ciclovias. Isso ficará, e vamos prosseguir ainda mais nesse caminho. Há também as piscinas banháveis no Sena, que será uma das heranças maiores. Desejo que haja um legado também para o alojamento de urgência para os sem-teto. É preciso que os jogos não sejam uma extraterritorialidade que venha se aplicar no espaço da cidade, mas sim algo alinhado ao atual projeto municipal e ao Acordo de Paris sobre o clima. Também abordamos a questão de como manter essa cidade mista, e desenvolvemos uma política habitacional e de alojamento de urgência. E houve a grande conquista do ar, reduzimos drasticamente a poluição do ar e da água. Também houve uma preocupação em construir à cidade a partir da altura das crianças. Demos as ruas às escolas, o que chamo de revolução de veludo, pois não houve nenhuma polêmica em relação a isso. E você sabia que há mais de 300 mil gatos e 60 mil cães em Paris, e que 93% dos parisienses vivem a menos de cinco minutos a pé de uma padaria?
Após os Jogos, você pretende avançar na renovação da avenida de Champs-Élyées e na recomposição da praça Concorde?
Certamente. Já começamos a estudar isso no âmbito do comitê de Champs-Élysées. Já fizemos todo um trabalho nos terraços, com a introdução de um verde uniformizado. Mudamos as calçadas, os pés de árvores, com mais verde em torno. Reduzimos o espaço para os carros no Arco do Triunfo. Plantamos mais árvores na parte baixa da avenida. Retomamos a história de Champas-Élysées, que era um espaço de passeio bucólico dos parisienses, então exterior à cidade. E engajamos todo um trabalho de reflexão sobre a praça Concorde. Todo mundo está de acordo que metade da praça seja destinada exclusivamente aos pedestres. A circulação inclusive melhora. Formei um comitê com arquitetos, paisagistas e pesquisadores do patrimônio de Paris, para elaborar uma proposição o mais rápido. A ideia é que em 2026 possamos ter uma praça reconfigurada por meio de um trabalho patrimonial importante.
Que pessoas foram ou são referências para você e por quê?
Há muitas. Na política, admiro muito a resiliência de Lula: pode-se viver o pior muitas vezes e tirar uma força dessas experiências. Há também Barack Obama, alguém que pensou o mundo e fez coisas formidáveis. Entre os escritores, tenho uma paixão por Victor Hugo, que foi ao mesmo tempo político, poeta, romancista, viveu o exílio e amou Paris acima de tudo. Seus textos sobre Paris são incríveis. Também a escritora espanhola Almudena Grandes, capaz de projetar uma visão sobre as democracias absolutamente impressionante. O pensador André Gorz, que já citei, hoje de uma grande modernidade. E também tenho como referência Jean Jaurès (líder socialista assassinado em 1914 na capital francesa). Ele tinha uma posição que considero muito contemporânea: defendia que não precisamos insultar nossos adversários, propagar mentiras, difamar e rebaixar o outro.