FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS — E se fosse possível ter presenciado, como um voyeur, o momento em que Prince compôs “Purple rain”, um de seus maiores hits? O exemplo é citado pelo artista Xavier Veilhan para dar o tom de sua mais recente obra, atração do pavilhão francês na 57ª edição da Bienal de Veneza, de 13 de maio a 26 de novembro deste ano. Batizada de “Studio Venezia”, sua criação foi concebida como um estúdio de gravação, por onde, durante todo o tempo de duração da mostra internacional na cidade italiana, passarão mais de uma centena de músicos convidados, livres para compor novas obras diante do visitante da hora.
O artista francês, de 54 anos, ressalta, no entanto, não estar focado na expectativa do surgimento de uma potencial composição de sucesso: “O que me interessa é que no momento da criação alguém esteja lá para ver. Mas talvez esse momento simplesmente não exista, e seja como a definição de “serendipity” (termo em inglês que indica uma feliz descoberta ao acaso). Talvez a arte seja criar a situação que permita que esse momento exista”, pondera Veilhan, ao receber O GLOBO em seu estúdio de criação parisiense, nos arredores do cemitério Père-Lachaise.Visualmente caótico
Entre 14 de janeiro e 16 de fevereiro de 2015, a britânica PJ Harvey gravou parte de seu álbum “The hope six demolition project” às vistas do público do centro cultural Somerset House, em Londres, em seu chamado “Recording in progress”. “Studio Venezia” explora outras dimensões dessa relação, assinala Veilhan: “Na experiência de PJ Harvey havia um vidro de separação com a audiência, o que ampliava o aspecto zoológico. No meu projeto, o espectador está dentro da jaula, é um outro tipo de situação”.
O artista projetou em uma área de 360 metros quadrados um estúdio inspirado nos anos 1970, desconstruído, visualmente caótico, “como se tivesse sido atingido por um terremoto”, mas de qualidade acústica e sonora. A ideia é que o visitante descubra o espaço escondido como se penetrasse por uma porta secreta, e então se torne cúmplice — embora sempre como espectador, sem intervir — de um momento raro de criação, no caso, musical. “Trata-se de criar situações abertas para que coisas inesperadas possam acontecer, que é a origem de algo que não vou controlar. Tentamos controlar coisas, pessoas tentam se controlar umas às outras, mas não funciona assim. Não se controla o outro, mas se vive com o outro. E cada um de nós é também bastante incontrolável, na minha opinião”.
A interação de artes visuais com música não é inédita em sua trajetória criativa, vide suas colaborações artísticas precedentes com Sébastien Tellier (2006), o grupo Air (2007), Nicolas Godin (2012-14) ou Éliane Radigue (2013). Em 2015, sua exposição “Music”, programada nas salas da Galeria Perrotin de Paris e de New York, prestou uma homenagem, em forma de esculturas feitas a partir de um sistema de scanner 3D, a renomados produtores musicais, como Quincy Jones, Rick Rubin, Philippe Zdar, Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter (Daft Punk).
O “Studio Venezia” acolherá uma variada gama musical: jazz experimental, rock, pop, indie, música barroca, eletrônica ou trilhas de filmes. Para compor a partitura da programação, Veilhan conta com a ajuda de dois curadores: Lionel Bovier, diretor do Museu de Arte Moderna e Contemporânea de Genebra (Mamco), e do artista plástico Christian Marclay, reconhecido por seu trabalho de relações entre o visual e o auditivo. Entre os músicos confirmados estão os já citados Tellier, Éliane e Godin, e também Alain Planès, Alexandre Desplat, Christophe Chassol, Zombie Zombie, provavelmente Nigel Godrich (produtor do Radiohead), além de nomes da cena musical de Veneza. “Não buscamos a diversidade total, nem estabelecer cotas. As escolhas provêm do resultado de minhas experiências anteriores e das sensibilidades dos programadores a quem delegamos a eleição dos músicos. No início, achava que teríamos uns 10% de ocupação do estúdio, mas já estamos com a agenda completa, e também enfrentando problemas de logística, tipo como receber por uma semana uma orquestra de 21 músicos”, conta Veilhan.
Os músicos são convidados, não recebem cachê, e terão à disposição engenheiros de som e equipamentos para gravar suas sessões. Estão sendo projetados também aplicativos e formas de divulgação digital das performances. Veilhan se interessa pela criação e também pela duração do projeto — ele mesmo se mudará para Veneza durante os sete meses da Bienal —, e tem consciência do risco assumido pelos compositores e do fato de que em um estúdio por vezes não acontece nada, hipótese que não o incomoda, segundo diz: “Acredito muito na reabilitação dos momentos tediosos, porque a vida não é feita só de coisas interessantes. Há momentos em que navegamos na internet durante horas e tudo é meio vazio. Eu surfo, e antes pensava que estaria todo o tempo pegando ondas, mas fazer surfe é também procurar o melhor lugar e ficar sentado na prancha esperando. É preciso um equilíbrio. No estúdio, nem sempre haverá música, mas mesmo sem criação haverá técnicos em ação, coisas acontecendo, e o lugar em si”.
Planos para o Brasil
Veilhan valoriza a instalação da exposição em sua dimensão física, e também todo o seu entorno, como o odor, a acústica, o fato de se estar na presença de outras pessoas, a cidade: “O pavilhão é um tipo de dispositivo para sintetizar o visual e o sonoro. Tudo influi no visitante. A situação da exposição não está cortada desse contexto, mas integrada nele”.
No seu horizonte, estão igualmente os afluentes do projeto, na infinita possibilidade de geração de novos encontros pessoais e de colaborações musicais e artísticas durante e após a Bienal. Inclusive, a obra prolongará sua temporada em outras cidades, e em 2018 se transformará em “Studio Lisboa” e depois “Studio Buenos Aires”, também com a participação de músicos locais. O Brasil, país em que realizou sua primeira mostra individual na América Latina (“Horizonte verde”, na galeria Nara Roesler, de São Paulo), também está na sua mira, embora ainda não tenha nenhuma confirmação. “A ideia de utilizar o conceito da exposição como um tipo de refletor para captar a cena musical seria maravilhosa no Brasil. Não conheço muito bem a música brasileira, mas uma vez me vi numa festa em que havia Seu Jorge, Caetano Veloso, Mosquito, uma roda de samba, e foi simplesmente incrível. Era uma mistura de música acústica, de palavras, de cultura coletiva, sem palco e com pouca amplificação. Era como uma festa de aldeia com uma música de alta qualidade”.
Com Xavier Veilhan, que alcançou maior reputação internacional a partir de sua exposição no Château de Versalhes (2009), os franceses esperam competir pelo Leão de Ouro de melhor representação nacional na Bienal de Veneza, troféu que não recebem desde 2005, com a premiação de Annette Messager e sua obra “Casino”.